Alê | @alexandrejjr 06/03/2021
Políticas da memória
Poucas eram as ficções escritas por mulheres sobre o período da ditadura militar brasileira quando “Tropical sol da liberdade” foi lançado, em 1988. É só fazer o exercício: tente puxar rapidamente da memória um livro escrito por uma mulher que aborde esse momento. E aí, não lembrou de muita coisa, certo? Pois é.
Os mais antenados, quando pensam nesse tema, lembram das obras do ponto de vista masculino da história, casos de Erico Verissimo, Bernardo Kucinski, Marcelo Rubens Paiva e Fernando Gabeira - os dois últimos exemplos de não ficção.
Hoje temos mais mulheres abordando o tema em retrospecto, como a maravilhosa Maria Valéria Rezende e Adriana Lisboa, gema nacional ainda desconhecida por mim, mas uma grande escritora pelo que já li e ouvi. Antes de Ana Maria Machado é provável que somente uma autora no Brasil tenha conseguido encontrar eco com suas obras para abordar a nossa principal ferida histórica recente: a nossa dama da literatura, Lygia Fagundes Telles. Ela abordou o período em seus romances “As meninas” e “As horas nuas”, sendo este lançado um ano depois da ficção de Ana Maria Machado.
Em “Tropical sol da liberdade” podemos acompanhar as agruras deste triste momento, como definido perfeitamente pela nossa protagonista Lena, através de um olhar “periférico da história”. E esse ponto é muito interessante: por que do ponto de vista periférico? Ora, porque quem nos conta sobre a repressão, sobre os medos, desejos e aflições é “ela” e não “ele”. Entendem o ganho que nós, leitores, temos com isso? É o olhar feminino sobre a violência e a desordem. E tudo isso através das políticas da memória.
Entre os diversos pontos interessantes do romance, destaca-se, com certeza, sua estrutura. Mesclando formas narrativas como teatro, cartas e diálogos, a narração dos acontecimentos e a transição temporal são muito bem conduzidas pela autora que, além de possuir uma excelente prosa, nos brinda com belíssimas citações da cultura brasileira a cada novo capítulo, enaltecendo essa riqueza que atualmente alguns governantes - mais uma vez! - estão tentando apagar.
Mas também tenho leves críticas que devem ser salientadas. É inegável que a dor de quem sofreu com a ditadura militar no Brasil é imensurável, mas o fato do círculo social da protagonista, uma jornalista, ser composto de artistas, advogados e intelectuais, cabeças pensantes em momentos necessários de ruptura, distanciou, em certa medida, meu interesse das personagens, apesar do drama bem construído e da proposta de um novo olhar. É, de algum modo, um ponto de vista “confortável”. Explico: gostaria de saber das histórias de gente como minha avó, que no mesmo contexto do romance era faxineira, moradora da periferia real. Como as pessoas da classe dela se portaram politicamente naquela época? Qual a real importância que elas deram ao golpe militar? O que mudou no dia a dia delas? O que quero dizer é: e se esse olhar feminino sobre a tragédia social fosse de alguém realmente periférico, muitas vezes alheio às preocupações políticas? Uma dona de casa da periferia, por exemplo. Eu tenho essa curiosidade mórbida de querer saber como essas pessoas reagiram ao desmonte do país àquela altura. Além disso, temos ainda, por vezes, uma confusa introdução de personagens secundárias. Mas esses são problemas menores se analisados no conjunto da obra.
Através de uma voz narrativa feminina forte, Ana Maria Machado reconstrói um passado recente a partir do papel libertador da literatura. Vale a leitura.