Paulo 26/12/2023
Depois de Tigana, este foi o segundo romance de Guy Gavriel Kay que pude ter o privilégio de ler. Desta vez, livre dos preconceitos do primeiro livro dele publicado no Brasil e tendo os superado, pude curtir mais a leitura. Posso dizer com tranquilidade que o autor é um ser único entre os escritores de fantasia. Alguém que não se preocupa em escrever séries ou trilogias e que realiza um trabalho para lá de competente em seus livros com histórias bem amarradinhas e interessantes. The Lions of Al-Rassan não é um livro sensacional, que vai mudar as nossas vidas, mas o autor é tão tecnicamente habilidoso que você não vai encontrar falhas na narrativa dele. Seja em ritmo, em construção de personagens, em tom, em temas. Nada. É uma escrita tranquila e perfeita que parece saída de um sábio da montanha que tem muito a nos ensinar. Aliás, fica a minha recomendação aos amigos escritores para lerem esse livro (e os outros, se puderem) e buscar anotar as artimanhas e ferramentas que ele usa. Conseguiria passar horas explicando o que me surpreendeu no que ele escreveu, na forma como escreveu e em como ele sai do lugar comum e dos clichês com decisões simples. Kay faz com que escrever pareça ser o ato mais simples do mundo... e não é. Ele torna simples.
Tudo começa com uma escolha errada. Ammar ibn Khairan está acompanhando o seu velho companheiro, o rei Almalik de Cartada em uma ida a Fezana onde ele vai confirmar sua autoridade. No evento que vai ficar conhecido como o Dia do Fosso, Almalik decide demonstrar sua autoridade e intimidar os habitantes de Fezana decapitando todos os homens importantes da cidade. Isso vai provocar uma ruptura em uma amizade de décadas e o conselheiro vai se tornar o algoz de seu rei. Mas, nesse mesmo dia, no quarteirão dedicado aos Kindath, um povo cuja religiosidade é vista com maus olhos por Asharitas e Jadditas, se encontra a bela Jehane. Ela é a filha de um orgulhoso médico chamado Ishak que foi o médico real até que teve seus olhos cegados por ter feito o seu trabalho. Jehane assume suas funções e em um dia comum de atendimento médico, ela é levada por Khairan para atender Husari ibn Musa, um de seus velhos pacientes que tem problemas renais. Nesse dia, Jehane proíbe Husari de ir até o evento do rei para não piorar seus problemas de saúde. Esse ato pode tê-lo salvado e condenado a família de Jehane que pode ser acusada de cumplicidade. Jehane foge junto de Husari e acaba esbarrando nos soldados Jadditas do famoso Rodrigo Belmonte, o Algoz de Al-Rassan. Em uma sucessão de acontecimentos, Rodrigo acaba indo ajudar a apagar um incêndio na vila de Orvilla, onde um de seus companheiros realiza um ato de extrema violência ao saquear a cidade. Seguindo sua honra, Rodrigo faz valer sua vontade, o que o faz ser exilado pelo seu rei. Os destinos de Khairan, Rodrigo e Jehane vão se interligar quando os três forem parar na cidade de Ragosa quando servirão ao rei Badir. Mas, uma guerra entre Asharitas, Jadditas e Kindathianos se aproxima; e a justificativa de uma guerra santa fará emergir o que há de pior no coração dos homens.
Como já expliquei na resenha de Tigana, Kay pega um cenário ou uma conjuntura que já existe e faz uma história transportando para outro lugar com maior ou menor interferência de magia. The Lions of Al-Rassan se passa em um mundo inspirado pela península Ibérica do século XI, quando o território era dividido em diversos pequenos reinos, alguns deles cristãos e outros muçulmanos. Castela, Leão e Aragão eram reinos que ainda buscavam seu espaço e o sul era totalmente dominado por pequenos reinos de taifa, cidades-estado governadas por chefes militares que viviam em guerra entre si. Os judeus sefarditas habitavam algumas das cidades muçulmanas desta região além de algumas cidades no norte da África. No livro, temos três reinos Jadditas que são fieis a um deus a quem eles se referem traçando um disco com os dedos. Estes reinos Jadditas exploram as cidades de Al-Rassan cobrando tributos chamados parias, que são como se fossem uma proteção (deles mesmos). Os Asharitas se consideram a si mesmos como as crianças das estrelas, e são uma sociedade criada na rigidez das areias do deserto. Uma sociedade estrita onde as mulheres possuem poucas liberdades e a religião deve ser levada à risca. Os Kindathianos pertencem a uma religião odiada por todos e a todo momento precisam se mudar de cidade em cidade, como em uma diáspora constante, sem que possam usufruir de uma vida confortável. Eles desenvolveram uma medicina bastante avançada e conseguem até conviver bem com alguns grupos de Asharitas mais moderados. Assim é Fezana, onde Jehane mora. Uma cidade que convive com os Kindathianos, apesar de considerá-los quase que como uma escória, mas precisam deles para algumas tarefas. O mesmo pode ser dito dos Jadditas que também empregam Kindathianos para trabalhos subalternos.
O tema base deste livro é o conflito constante entre as três religiões, os judeus, cristãos e muçulmanos, ops, kindathianos, jadditas e asharitas. Lógico que o autor não vai ficar preso somente a associações ou comparações. Há uma história a ser contada. Por todo o livro somos colocados diante da intolerância existente entre as três religiões, principalmente vindo de Jadditas e Asharitas. Os jadditas desejam conquistar Al-Rassan a todo custo para espalhar sua fé. Primeiro destruíram a cidade de Sorenicca, um lar conhecido de Kindathianos e os passaram na lança. A seguir desejam realizar uma guerra de Reconquista, tendo os Asharitas como seus principais inimigos. Seu desejo por destruir os chamados filhos da estrela é quase uma obsessão. O rei Ramiro, rei de Valledo, um dos três reinos jadditas, sabe como funciona a dinâmica da península. Não há necessidade para uma guerra total, em que muitos homens morrerão pela espada. Mas, a guerra santa é entendida quase como uma necessidade, como respirar, e o Alto Clérigo que vem de Ferrieres praticamente obriga os três reis católicos a se unirem e partirem em uma missão insensata no sul da península. Por outro lado, os asharitas estão lidando com uma série de intrigas de corte, algo comum em sua cultura. O emprego de venenos, de assassinos e de traições já se tornou comum entre os pequenos governantes. Somente Almalik conseguiu manter o prestígio dos grandes khalifas de outrora. Nessa conjuntura estranha, um homem como ibn Khairan se torna o conselheiro perfeito em um mundo hostil. Mas, entre os asharitas existem os muwardis, os guerreiros do deserto. Se pudermos fazer uma associação, os muwardis representam o credo xiita dentro do islamismo enquanto os wadjis seriam os sunitas. Os muwardis não conseguem tolerar infieis como os kindathianos e os jadditas coexistindo em seu território. Na visão deles, os asharitas se tornaram frouxos e preguiçosos. Esse caldeirão explosivo começa a mudar e transbordar quando novos personagens são inseridos na trama. E a guerra e o desastre se tornam inevitáveis.
Outro tema forte presente na trama é o da intolerância. A intolerância religiosa muitas vezes aparece a partir do temor e do desconhecimento. Ou meramente pelo preconceito e etnocentrismo. Nos momentos iniciais da trama, Garcia de Rada, um importante comandante das forças jadditas que veio a mando de seu irmão, o conselheiro do rei, decide atacar a pequena vila de Orvilla. Um lugar pacato onde moram agricultores e pessoas simples. Ele decide queimar a cidade apenas porque ela é um lar de asharitas e ele se achava no direito de saquear, queimar e estuprar. Não há nenhuma outra motivação específica nisso. Mais tarde, a população de Fezana, formada principalmente por asharitas fica sabendo que vários cavaleiros jadditas estão vindo sitiar a cidade. Ao invés de se preocupar em fugir, eles decidem queimar o bairro kindathiano que, segundo eles, são amaldiçoados e devem ter atraído os jadditas para a cidade, mesmo sem ter provas disso. Kay consegue transmitir o ódio que permeia as três religiões e como esse sentimento puro e primitivo vem de situações que nem eles conseguem explicar direito. Se baseiam em interpretações falseadas de seus credos. Consigo perceber a existência de algumas noções saídas de Santo Agostinho que entendia uma guerra como justa quando havia uma causa justa, seja ela uma vingança, uma reparação ou algo mais doutrinário. Para o filósofo cristão, isso justificava atrocidades cometidas durante o conflito. Claro que esses critérios criados por ele, foram usados mais tarde pelo Papa Urbano ao convocar as cruzadas contra os muçulmanos em Jerusalém. A verdade é que na guerra não existe certo ou errado, mas interesses em jogo. Todas as ações são violências contra outros seres humanos. Não existe justiça no ato de matar centenas de pessoas.
Kay consegue criar todo um elenco de personagens. Mesmo aqueles que mal aparecem, possuem suas características bem delineadas. Mas, de uma visão de protagonismo temos quatro personagens: Jehane ben Ishak, Ammar ibn Khairan, Rodrigo Belmonte e Alvar de Pellino. Jehane é a ligação entre esses vários personagens e começo falando dela. Uma médica no bairro kindathiano de Fezana, ela se dedica diariamente a tratar aqueles que não podem pagar por tratamento médico. Seu pai foi médico por quase toda a sua vida até que teve seus olhos cegados após ter feito a cesariana da antiga rainha de Cartada. No credo asharita, nenhum homem a não ser o marido, pode ver a esposa nua. Principalmente se essa pessoa for um infiel kindathiano. Mesmo tendo feito o impossível, que foi salvar os dois filhos de Almalik, Ishak foi punido severamente tendo seus olhos cegados e sua língua cortada. Segundo Almalik, ele poupou o médico, pois a pena era a decapitação. Mais do que ninguém, Jehane entende a intolerância e a vive na pele. Quando salva Husari de um encontro mortal na corte de Almalik, salvamento esse que foi acidental pois ele apenas deixou de comparecer ao compromisso, ela se depara com os dois homens que serão os mais importantes de sua vida: Ammar e Rodrigo. Ammar a ajuda a escapar da cidade e Rodrigo lhe dá um propósito e a trata de igual para igual. Ao chegar em Ragosa, Jehane vai precisar compreender qual é o seu lugar no mundo. Ela precisa escolher entre permanecer como uma médica da corte do rei Badir ou entrar para a companhia de Rodrigo onde pode ajudar homens que ela passou a respeitar profundamente. Por outro lado, Jehane descobre que nutre sentimentos por Ammar, um homem cercado de mistérios.
E temos Ammar, o matador de reis. A mando de Almalik, ele matou o último grande khalifa de Al-Rassan e ajudou a criar este ambiente instável de cidades-estado. A fama deste assassinato o persegue por onde vai. Ao mesmo tempo em que fornece a ele um ar de respeito, provoca temor nas pessoas que o cercam, incertas de sua lealdade. Seu próximo ato vai apenas corroborar essa visão, vindo de uma ruptura com seu antigo companheiro. Ou seja, na visão de outras pessoas, Ammar é um homem que não desperta a menor confiança e cujos objetivos são desconhecidos. Mas, ele é alguém movido por um forte senso de lealdade e honra. Ele faz aquilo que considera justo e muitas vezes se atropela com escolhas que lhe são impostas por um destino cada vez mais cruel com ele. Ter sido exilado de Cartada por alguém a quem ele ajudou foi o golpe certo dado pelo seu novo aliado, mas uma traição inesperada por ele. A mente de Ammar acaba perdida no meio dessa rede de mentiras e meias-verdades. Chegando em Ragosa, ele volta a ter contato com Jehane a quem ele ajudou em Fezana e passa a conviver com Rodrigo, um homem que ele pode considerar como seu igual. Jehane desperta no soldado sentimentos que ele imaginava estarem mortos. Só que este exílio em Ragosa tem um prazo de validade: um ano e o novo aliado de Ammar o quer de volta para colocar em ação seus planos de expansão militar. Resta saber aonde estará inclinada a mente do soldado.
Por falar em honra e justiça, não podemos nos esquecer de Rodrigo Belmonte. O famoso cavaleiro jaddita, que derrotou inúmeros exércitos asharitas e conhecido como o Algoz de Al-Rassan. Um homem de orgulho e com uma inteligência quase inigualável. Não é o conselheiro do rei Ramiro de Vallona por um golpe político de seu rival Gonzalo de Rada. Rodrigo possui dois filhos gêmeos, Diego e Fernan e uma selvagem esposa chamada Miranda, o amor de sua vida. Diego nasceu com um dom especial, uma espécie de visão ou precognição que permite a ele saber aonde sua família se encontra. Não é exatamente prever o futuro, é prever o futuro de sua família apenas. Rodrigo acaba sendo exilado depois de confrontar Garcia, irmão de Gonzalo, na tragédia que foi o ataque a Orvilla. Ramiro precisa exilar Rodrigo por algum tempo também segundo as leis jadditas. Tendo como destino Ragosa ao lado de sua cavalaria de 150 homens, Rodrigo conhece Ammar e Jehane e se tornam companheiros. As preocupações do cavaleiro estão com sua família, obrigada a permanecer em Vallona como uma espécie de garantia de seu retorno. Seu medo é terrível de que seus filhos possam ser o alvo de alguma família rival ou de alguma guerra insensata. Infelizmente para ele, nem tudo ele consegue imaginar que possa acontecer e algumas situações fogem de seu controle. Ao mesmo tempo ele desenvolve um sentimento forte de companheirismo e de amizade por Ammar e Jehane. E no fim das contas, quando os exércitos jadditas vem realizar sua guerra no sul, aonde estará a lealdade de Rodrigo?
Pouco se fala sobre Alvar de Pellino, mas ele é um personagem crucial na história. Ele é o símbolo da possibilidade de coexistência. No começo, ele é um jaddita fervoroso e não consegue entender estar ao lado de Jehane e de Ammar. Isso porque ele nutre sentimentos por Jehane. Talvez movido por eles é que Alvar começa o seu processo de questionamento do status quo. Junto de Rodrigo, ele vai viver em Ragosa, uma cidade que abraça as culturas e não se importa com as diferenças. No paraíso criado pelo rei Badir, os problemas existem mas eles não acontecem a partir de uma incompreensão religiosa. Alvar vai compreendendo e gostando da cultura asharita e chega a um tal ponto que até mesmo Ammar brinca dizendo que Alvar parece mais asharita do que ele que nasceu no deserto. A visão intolerante dos clérigos de Ferrieres passa a incomodá-lo porque ele vê seus amigos entre aqueles que fazem parte da cultura. Essa associação acaba sendo transmitida a outras pessoas. Em seu desenvolvimento como personagem, ao final ele entende asharitas e kindathianos como pessoas iguais a ele. Ele não os enxerga pelas diferenças, mas pelas similaridades. E isso faz com que ele desenvolva bons sentimentos por eles e condene as ações de seus iguais. Alvar também precisa lidar com sua auto-estima. Estando ao lado de lendas do seu mundo, ele sente a todo momento que precisa se provar. Mal sabe ele que caminha para se tornar uma lenda por si mesmo.
Esses quatro são os leões de Al-Rassan. Um livro sensacional que mistura história e fantasia na medida certa. Com uma escrita calma e paciente, onde o leitor consegue acompanhar a trajetória destes e de outros personagens. O autor consegue entregar também sutilezas que somente o leitor mais atento vai conseguir perceber. É um livro que pode ser facilmente trazido para os nossos tempos, onde condenamos nossos semelhantes por ter hábitos e tradições diferentes do que é meu. Do etnocentrismo puro e enraizado, que desperta o ódio e a intolerância. Somente se formos como Alvar é que seremos capazes de superar essas diferenças.
site: https://www.ficcoeshumanas.com.br/post/resenha-the-lions-of-al-rassan-de-guy-gavriel-kay