Pablo 18/12/2021
Excelente, embora limitado pela proposta reformista da autora
Uma grande coleção de dados e pesquisas sobre as relações do empreendedorismo com o Estado. Com análises de setores estratégicos nas últimas décadas, como as empresas de tecnologia (com foco na Apple), as grandes farmacêuticas, e as empresas de energia limpa, a autora revisa os argumentos desenvolvimentistas clássicos, e também traz uma análise inovadora sobre o papel ativo do Estado no progresso tecnológico.
Com uma abordagem mista baseada em Keynes e Schumpeter, a professora italiana derruba os principais mitos sobre inovações empresariais que tomaram conta do imaginário popular, da grande mídia, e até de governos de países como EUA e Reino Unido, graças ao esforço de demonização do estado pregado pela ideologia neoliberal desde a década de 80.
A autora combate os mitos do estado ineficiente e do mercado maximizador de resultados, passando pelas mais recentes teorias da inovação, e abordando temas interessantíssimos de políticas fiscais e monetárias, de patentes e propriedade intelectual, e dos diversos papéis que os Estados podem assumir na economia.
Alguns conceitos clássicos são revisados, como a incerteza knightiana, e sua diferença crucial para o conceito de risco, muitas vezes propositalmente confundidos nos discursos anti-estado. "Risco" é algo mensurável ou estimável de alguma forma, com que todas as empresas trabalham em algum grau. Já a incerteza knightiana se refere ao completo desconhecido, um risco que não pode ser se quer estimado, e que empresa nenhuma quer correr. As pesquisas de fronteira, que se deparam com a incerteza knightiana, são as que geram as grandes rupturas tecnológicas (microeletrônica, internet, computadores, energia éolica e solar, novos medicamentos...). O mercado trabalha com riscos, lucra para se submeter a eles. Mas só os Estados encaram a incerteza knightiana, em qualquer lugar do mundo, em qualquer época da história, pois esses investimentos simplesmente não apresentam perspectivas imediatas de lucro, e o mercado só se mexe por lucro.
A autora traz muitos dados chocantes: menos de 1/4 do investimento em Pesquisa e Desenvolvimento dos EUA em 2010 se justificava por externalidades econômicas. Externalidades econômicas são efeitos, bons ou ruins, que cruzam a fronteira das empresas e não podem ser individualizados, devendo necessariamente ser equalizados por intervenção do Estado (exemplo mais clássico é a poluição, mas existem muitas externalidades em qualquer economia). Essa e outras falhas de mercado são investigadas de forma crítica, com base nos argumentos tradicionais do desenvolvimentismo, com grande apoio estatístico.
É impressionante como a autora traz exatamente os mesmos fatos que um bilionário da tecnologia traria para contar a história da ascensão da Apple, Microsoft, Google, entre outras grandes empresas atuais. Mas, munida dos conceitos certos, a versão da professora Mazzucato deixa explícito como os governos foram cruciais para o nascimento e crescimento dessas empresas, se envolvendo desde as pesquisas de base, até o desenvolvimento das tecnologias de fundo, e em muitos casos até mesmo de crescimento da escala da produção, para baratear custos. O iPhone, por exemplo, é composto de 12 tecnologias bases, todas desenvolvidas pelo Estado (Microprocessador, microdisco rígido, tela de cristal líquido, compressão de sinal, baterias de lítio, memória RAM, click wheel, tela multitoque, gps, SIRI, htto/html e internet). Investimentos maciços de impostos dos contribuintes estadunidenses (valor gerado pelos trabalhadores, em termos marxistas) chegaram a Steve Jobs para que ele, genialmente, os combinasse num smartphone e mudasse para sempre as tecnologias de comunicação. Mas ele só pode aplicar sua genialidade graças ao trabalho gigantesco, profundo, caro e demorado do Estado. Na versão dessa história que os bilionários contam essa parte geralmente é minimizada ou totalmente ocultada, criando o mito do bilionário gênio que inovou APESAR do Estado.
Aqui a autora critica, economicamente, os super lucros que as empresas tem em cima das inovações estatais. Não é economicamente eficiente que o Estado arque com os gastos (socialização das perdas) e o setor privado fique com os resultados (privatização dos lucros). Repara que o argumento não é moral, ela não diz que é "errado", mas simplesmente não é eficiente. Assim as empresas viram parasitas dos Estados, que ficam cada vez mais fragilizados e não conseguem investir em novas tecnologias disruptivas. Curioso que ao mesmo tempo em que fazem isso, as empresas acusam os Estados de serem os parasitas. Como em tantos outros pontos, neste também há uma inversão da realidade no discurso hegemônico. Este seria o principal fator da crise de inovações que vive os EUA frente a China e a Ásia em geral, onde os Estados não foram demonizados e paralisados.
A autora também traz uma excelente análise da história das empresas verdes, principalmente de energia eólica e solar. Mostra como só o Estado pode coordenador o processo de mudança de matriz energética, essencial para o controle do cataclisma ambiental.
Outro capítulo traz uma análise específica do Estado Empreendedor nos Estados Unidos. A autora propositalmente usa o país que se diz a terra do "livre mercado" para demonstrar a hipocrisia estadunidense: usam e abusam do Estado para proteger suas empresas, criar novas tecnologias, ganhar mercados, enfim, dominar economicamente o mundo, mas juram que são liberais e pregam o liberalismo aos países menos desenvolvidos. A citação de Reinert aqui é indispensável:
"... desde sua fundação, os EUA sempre estiveram divididos entre duas tradições, as políticas ativistas de Hamilton e a máxima de Jefferson segundo a qual "o governa que governa menos, governa melhor!"... essa rivalidade foi resolvida com os seguidores de Jefferson encarregando-se da retórica e os seguidores de Hamilton cuidando da política."
Dois destaques interessantes que a autora aborda superficialmente em vários momentos: China e Brasil.
As políticas da China mostram um Estado altamente empreendedor, subindo rapidamente a escada tecnológica, hoje já alcançando a fronteira em diversas áreas e a hegemonia em algumas. O livro foi escrito em 2014, e desde então a China vem cada vez mais aumentando a interferência do Estado na economia, controlando cada vez mais o capital privado, e crescendo cada vez mais, as maiores taxas da história do mundo, ao mesmo tempo em que eliminou a pobreza e extrema e caminha aos passos mais largos do mundo para um estado de bem estar social moderno e sem as travas do capitalismo.
O Brasil, em 2014, era bem visto pela autora, como andando, a passos bem mais lentos que a China, rumo a um Estado mais ativo, via BNDS (citado várias vezes como exemplo de banco de desenvolvimento), políticas públicas de distribuição de renda e de valorização do trabalho, crescimento da demanda interna e integração regional. Mazzucato via o Brasil como muito promissor em 2014. Naturalmente, o golpe de 2016 mudou tudo, o Brasil inverteu a direção, e a eleição de 2018 acelerou a marcha para trás. Como esperado, hoje estamos no subsolo do fundo do poço.
É importante lembrar que, como economista "vulgar", isto é, não política, Mazzucato se retém (pelo menos nesta obra) as medidas econômicas necessárias para dinamizar e acelerar o desenvolvimento econômico. Na minha humilde opinião, teorias econômicas descoladas da política não resolvem a vida dos trabalhadores: de nada adianta saber o que deveria ser feito se não soubermos como obter o poder de fazer. É claro que a crítica da autora ao neoliberalismo é excelente, e bastante didática. Só não podemos esquecer que a política e a economia, na prática, não se separam. Precisamos sempre pensar a economia e a política juntas: como fazer a política para desenvolver a economia, e como fazer a economia para obter o poder político para os trabalhadores.