Lucas 07/12/2020
Estadismo e democracia: Somente um brasileiro simbolizou esses dois conceitos simultaneamente
Não é exagero algum afirmar que Tancredo de Almeida Neves (1910-1985), mineiro de São João del-Rei foi um dos maiores político brasileiros do século passado. Apesar disso, sua importância no cenário político nacional da segunda metade do século XX foi relativizada com o passar dos anos. Talvez em função da inabilidade quase universal de nós brasileiros em preservarmos a nossa memória ou em razão de outras características culturais tão discutíveis, a trajetória de Tancredo é cruamente avaliada pela tragédia que o cercou nos seus últimos dias: eleito de forma indireta como o primeiro presidente civil do Brasil após vinte anos de regime militar, ele adoeceu na noite anterior à posse e acabou sucumbindo 38 dias depois, em 21 de abril de 1985 (dia de Tiradentes, numa coincidência histórica).
Mas Tancredo foi muito maior que este fato; sua capacidade política, baseada no diálogo e na busca por entendimentos comuns sem a tão obscura troca de favores que caracteriza a política brasileira são marcas que ele deixou para a eternidade (não necessariamente no que tange a seu neto, Aécio Neves, mas esta é outra história que foge do que está sendo discorrido por aqui). Assim, quando o jornalista José Augusto Ribeiro (1938-) lançou Tancredo Neves: A Noite do Destino em 2015 estava suprindo-se um vazio considerável em termos de biografias de personalidades brasileiras importantes e que, no caso do biografado, possuem repercussões até os dias atuais.
Trata-se de uma obra, portanto, pomposa, e as quase 900 páginas da boa edição da Editora Brasil Cultural reforçam esta impressão. Mas, narrativamente falando, é justo dizer que o livro carece de consistência; não em termos de fontes, todas confiáveis e relacionadas nos anexos, mas sim no que se relaciona à narrativa em si, que é breve e mais rasa em alguns momentos e se alonga em outros.
Antes, contudo, de adentrar nas ressalvas que precisam ser feitas diante da obra, é preciso reconhecer, e isso o livro faz muito bem, o papel relevante que o biografado exerceu na política brasileira durante mais de três décadas. Tancredo Neves é coadjuvante dos dois grandes acontecimentos políticos do Brasil na segunda metade do século XX: o dramático suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954) em 1954 e o golpe militar ocorrido dez anos depois, com o seu resultante regime repressivo.
A carreira política de Tancredo a níveis federais começa quando ele é eleito deputado federal em 1950 pelo PSD (Partido Social Democrático, que nada tem a ver com a sigla atual), partido que hoje seria equivalente ao MDB, dada a alta variabilidade dos seus quadros (em Minas Gerais mesmo, Tancredo tinha vários adversários dentro da sua sigla, como José Maria Alkmin (1901-1974), tio-avô de Geraldo Alckmin). E assim como o MDB, por não ter um ideal definido dentro do espectro político, o PSD era um partido numeroso: agradar ele seria fundamental para, naquele momento, o presidente eleito Getúlio Vargas ter as condições de governabilidade necessárias diante de um congresso traiçoeiro, que se revelou destrutivo. Por isso, em acordo com Juscelino Kubitschek (1902-1976), Getúlio nomeou Tancredo (que tinha formação em Direito) como seu Ministro da Justiça em junho de 1953. Este escopo, os quase 14 meses que ele passou a frete do ministério, é o grande alicerce narrativo da primeira metade da biografia. É fascinante acompanhar todas as pressões e desdobramentos que conduziram ao suicídio de Vargas pelos olhos de Tancredo (ele estava no Palácio do Catete quando houve o suicídio em 24 de agosto de 1954).
Falar dos fatos posteriores a isso dentro da biografia escrita por José Augusto Ribeiro é expor as limitações narrativas que o livro traz. Além das lacunas por vezes inexplicáveis, a trajetória que se apresenta de Tancredo especialmente a partir do início do regime militar em 1964 peca por omitir fatos importantes demais para serem esquecidos. Os "anos de chumbo", por exemplo, que se confundem com o mandato do gaúcho Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), que durou de 1969 a 1974, são relatados de forma excessivamente tímida, com, acreditem, duas ou três frases. Não justifica-se essa atitude; fica a impressão de que falta algo, como a ausência da descrição de como Tancredo via estas restrições de liberdade e o aparente desenvolvimento econômico no cenário nacional ocorrido nesse mesmo período.
A questão essencial destes "espaços vazios" é que o livro debruça-se sobre o Tancredo Neves "político", em detrimento do homem, do pai de família, do advogado, do empresário, e assim por diante. Só que o biografado é um personagem, deveria ter-se explorado todas as suas faces. Não que fosse preciso fazer uma "devassa" na vida pessoal e familiar de Tancredo, mas algumas coisas são importantes demais para serem deixadas de lado: como Tancredo conheceu a D. Risoleta, sua esposa até o fim da vida, por exemplo? Outro ponto: apenas perto da página 600 aparece, pela primeira vez no texto, o nome dos filhos do presidente eleito. Não fica claro, por exemplo, quem é o pai/mãe de Aécio Neves, neto do presidente e familiar mais conhecido atualmente. Assim, por mais que a política seja o fio condutor de toda a narrativa, é quase contínua a sensação de que algo está faltando.
Estes problemas, contudo, não devem ser o esteio de qualquer conclusão sobre o trabalho de José Augusto Ribeiro. Ele é muito preciso em contextualizar quatro momentos nevrálgicos da carreira política de Tancredo Neves: a já citada experiência como derradeiro ministro da justiça de Getúlio Vargas, a nomeação dele como primeiro-ministro em 1962 (na breve e malsucedida experiência do parlamentarismo no Brasil), o golpe militar de 1964 e as eleições indiretas para presidente em janeiro de 1985.
São as eleições do colégio eleitoral que correspondem àquilo que pode ser entendido como o ponto alto da obra, até em termos narrativos: é o primeiro processo político descrito no livro que possui Tancredo como protagonista irretocável. Aqui, o autor é mais detalhista por descrever toda a campanha política do candidato, que percorreu o Brasil fazendo comícios a uma população que ainda não podia votar para presidente. O trabalho investigativo de José Augusto Ribeiro é favorecido neste momento porque ele foi um dos chefes da assessoria de imprensa da campanha. Muitos diálogos, discursos e várias entrevistas são transcritos, não apenas da campanha, mas da grande viagem internacional que Tancredo, já eleito, fez pela Europa, Estados Unidos e América Latina.
Já de volta à TV Bandeirantes, onde trabalhava antes de ser assessor da campanha à presidência, José Augusto Ribeiro assiste "de fora" à toda a agonia que cercou os 38 dias em que Tancredo permaneceu convalescido. Talvez por isso na parte final da biografia são recorrentes as citações a "Assim Morreu Tancredo", excelente livro lançado em 1985 pelo jornalista Antônio Britto (1952-), secretário de imprensa da presidência e responsável pela divulgação do estado de saúde do presidente. Esta dependência de fontes não afeta, contudo, na percepção precisa da enorme angústia que aqueles dias causaram ao povo brasileiro e que atravessam o tempo e atingem o leitor, separado daquele contexto por três décadas e meia.
Concluídas as quase 900 páginas da obra, o que fica no leitor não são as já citadas lacunas que a narrativa traz, nem o aspecto superficial com que alguns assuntos são tratados. O que o livro mostra de forma inefável é o caráter estadista de Tancredo Neves. Este mineiro, de honestidade irretocável (nunca, nem antes nem depois houve uma comoção nacional tão grande em torno da morte de um político brasileiro) ensinou à posteridade que estadismo não é bravata; não são dedos em riste; não é necessariamente falar alto; não é ideologia; não é impor condições; não é ameaçar, coagir ou ridicularizar; não é "falar umas verdades"... É um conceito que apenas uma pessoa verdadeiramente humana é capaz de possuir: é ouvir antes de falar, é contingenciar ao invés de dividir, é trazer mensagens de esperança e não de ódio... Em tempos tão radicalizados como os atuais, é uma ofensa à memória deste grande brasileiro que se associe estes termos à corrupção ou demagogia. São técnicas utilizadas por muitos políticos mal intencionados, de fato, mas não são práticas condenáveis, nem devem ser. O Brasil de hoje, tão melancolicamente radicalizado, precisa muito de alguém com essa visão, que, aparentemente, não existe ou é podado em nossos quadros políticos.
Se o tiro que estraçalhou o peito de Getúlio Vargas na manhã de 24 de agosto de 1954 adiou em dez anos um golpe que instalou a ditadura militar, a teimosia de Tancredo em não dar sinais de fraqueza médica impediu o surgimento de qualquer espírito revanchista em torno dos militares radicais: foi a pá de cal num regime que, em duas décadas trouxe grandes e inegáveis avanços estruturais e econômicos ao Brasil, mas a um preço muito alto, pago por, além da corrupção oculta, centenas de cidadãos desaparecidos e vários comprovadamente assassinados (o próprio Tancredo pensava assim). Se Getúlio "saiu da vida para entrar para a história", Tancredo não ficou muito atrás: seu sacrifício garantiu que a história do país que ele tanto amava fosse significativamente transformada por ideais cidadãos de igualdade, patriotismo e liberdade.
Ler Tancredo Neves: A Noite do Destino é lembrar que sim, o exercício da política no Brasil vale a pena. O biografado e boa parte dos seus contemporâneos precisam ter seus exemplos reavivados para que se reforce na geração atual e nas futuras a crença de que os caminhos feitos pela intransigência são espinhosos e obscuros: o que deve prevalecer, sempre, é a busca pelo diálogo agregador, que é a essência da democracia.