Guilherme 18/06/2023
O cheiro de cravo, a cor da canela, eu vim longe, vim ver Gabriela
Gabriela, cravo e canela é um retrato claro e preciso do entrelace entre as mudanças sociais, econômicas e políticas em um período de transição entre o poderio dos senhores de terra, ainda ligados aos costumes feudais, e a chamada modernidade.
Ilhéus, uma terra rica em cacaueiros, é comandada de todas as formas possíveis por coronéis de jagunços: ditam eleições, leis, cultura, economia. Ditam, sobretudo, os costumes sociais, a moral ou a ética, como queira chamar. Costumes indiscutíveis - esposa em seu devido lugar, em casa cuidando da casa e da família, serva do marido, e este aonde bem entender - cuidando das fazendas, dos negócios, visitando frequentemente cabarés.
Alguns mais intelectuais já entendem e se opõem a esses costumes antigos, mas pouco fazem ou pouca energia têm para o embate. É preciso que venha algo novo, jovem. O contraponto a esse povo preso ao passado, resistente a mudanças, vem por meio de um homem de família rica, com ares de progresso, e forte influência política, o exportador de cacau Mundinho Falcão. É importante comentar que é, sim, rico e influente. Apesar de parecer rejeitar ajuda de sua família inteiramente política - irmãos e pai - seu sobrenome e fortuna, não somente sua determinação e coragem, como dá a entender, é um fator importantíssimo para que ele consiga sucesso em suas empreitadas em Ilhéus.
Mas o livro não trata somente de entraves políticos e econômicos. O desenrolar da crônica da cidade do interior se entrelaça continuamente com a paixão de Nacib e Gabriela, um árabe naturalizado brasileiro dono de um popular bar na pequena cidade e uma moça humilde vinda do interior do interior, em busca de emprego. Gabriela é encantadora por si só. Não precisa explicar, pois explicar é limitar. Gabriela apenas é: humilde, serena, radiante, apaixonada pela vida, pela dança, por homens. Faz o que tem vontade, o que da prazer. Não se limita a opinião alheia. Sua ingenuidade encanta e diverte. Impossível não se apaixonar por Gabriela.
Jorge Amado vai muito além da discussão política: disserta sobre a liberdade do corpo, liberdade de amar e liberdade de ser. Gabriela ama Nacib; Nacib ama Gabriela. Na crônica, Gabriela, em sua ingenuidade, não vê problema em estar também com outros homens. Gosta de ser desejada, e de desejar. Gosta do prazer - com Nacib e com outros. Isso não faz com que ela goste menos de Nacib. A naturalidade com que Gabriela pensa sobre sua relação com o outro é enfatizada quando o autor muda de terceira pessoa, como narrador, para primeira pessoa, com Gabriela em seus pensamentos. Para se ter uma noção história, o livro data de 1958. Jorge Amado estava discutindo sobre o corpo feminino numa época em que as mulheres não podiam trabalhar fora de casa sem a permissão do marido, que só veio a ocorrer em 1962.
Gabriela, cravo e canela é uma leitura surpreendente. A trama tem um desenrolar natural, mostrando o embate entre o novo e os velhos costumes. Consegue, ao final, satisfazer o leitor ao instaurar um certo progresso na cidade e dar um desfecho condizente para os personagens, inclusive para o relacionamento amoroso de Gabriela e Nacib. Mesmo a troca de poder sendo realmente um grande feito dada as circunstâncias, é certo imaginar que o ciclo vai se repetir, com o opositor agora no poder se tornando o próximo coronel, embora mais moderno e com outro nome.
Por fim, um trecho bem no começo do livro é bastante preciso:
"Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente porém evoluíam os costumes, os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades"
E os costumes vão, pouco a pouco, se modificando.