jota 15/08/2017O absurdo do mundo...Quem leu Morte a Crédito conhece bem a literatura de Céline, então não vai estranhar tanto assim as histórias por ele contadas em Viagem ao Fim da Noite nem o jeito como ele as conta. Tampouco vai achar estranho o modo de pensar, sentir e agir do personagem Ferdinand Bardamu, que em grande parte é o próprio autor uma vez que que ambos os livros são altamente biográficos. É só comparar um pouco a vida e a obra do escritor nascido em 1894 e falecido em 1961 para perceber isso.
Para quem não leu, Bardamu é colonialista, racista, sexista e outras coisas condenáveis (nem tanto assim no tempo em que o livro foi escrito, 1932) que vamos encontrando pelas longas páginas de Viagem... , livro de estreia de Céline (são 536 páginas na edição da Companhia de Bolso, 2009). O escritor também era um antissemita ferrenho, tendo sido julgado e condenado pela República Francesa em 1950: ficou preso durante um ano, pagou multa pesada, teve bens confiscados, perdeu direitos políticos etc.
Na Apresentação, a tradutora Rosa Freire D’Aguiar traz diversas informações sobre Céline e aí podemos conhecer um pouco melhor o polêmico e provocador (também genial) autor francês. Seus defeitos (ou preconceitos) não tiram os méritos de seus livros, pois como alegam alguns intelectuais, é preciso separar o antissemitismo que exerceu de sua obra literária. Desse modo, em Viagem... acompanhamos Bardamu como soldado durante a I Guerra Mundial, depois seus giros pela França e pela África, depois ainda por Nova York e novamente de volta à França.
Tudo isso é narrado em linguagem falada (ou fabricada, estilizada, como querem alguns críticos), popular, cheia de palavrões e quase sempre áspera, mal-educada, raivosa, ofensiva etc. E sobretudo extremamente preconceituosa, como quando Bardamu fala de sua estadia em terras africanas. Mas no fundo mesmo Viagem ao Fim da Noite é sobre a fragilidade da condição humana; é a respeito daquela viagem que todos os homens, cada qual a sua maneira, fazem em direção à morte indefectível. E como tal, uma viagem pessimista, desesperançada, povoada de embates, mentiras e crueldades...
Por outro lado, a obra é igualmente uma viagem pelas primeiras décadas do século XX, pois Bardamu/Céline é um arguto observador da sociedade de seu tempo e dispara seu olhar e sua metralhadora de palavras para todos os lados. Então, a obra vai além da visão pessimista da humanidade: ao mesmo tempo ela denuncia a torpeza da sociedade humana seja em qual tempo for. Há tanta coisa para se ver (ler) e refletir (ou se divertir por vezes) em Viagem... quanto numerosa é a quantidade de suas páginas.
Da mesma forma que em Morte a Crédito, é pegar ou largar: não que a leitura de Viagem... seja difícil, mas seu conteúdo grande parte do tempo é complexo, amplo, exagerado, por vezes absurdo, como é o mundo. Então, conforme li antes em um comentário ou resenha, não me lembro mais onde foi, se a algum leitor parecer de imediato que esse livro possa ser aborrecido, longo ou complicado demais, que o deixe de lado rapidamente e vá tentar algo na linha de cinquenta tons de alguma cor...
Lido entre 31/07 e 15/08/2017.