wevertonaguiiar 16/04/2020
‘A montanha que devemos conquistar’, de Istvan Mészáros e a superação do Estado, capital e trabalho
O título da obra pode confundir algumas pessoas, criando nelas a ideia de que o autor defende a conquista do Estado na sociedade capitalista. Mas não é nada disso. Mészáros lança críticas poderosas ao Estado, principalmente ao afirmar que muitas delas são inerentes a qualquer constituição de Estado em qualquer sociedade e em qualquer época. “[…] é totalmente irrelevante debater o tamanho da estrutura regulatória defendida sem tratar, ao mesmo tempo, a questão muito mais relevante e fundamental do tipo — e, assim, as determinações qualitativas — das estruturas de tomada de decisão e das formas correspondente de controle”.
O Estado é falho não apenas pelo seu tamanho, mas sim pela sua formação qualitativa básica; é a sua estrutura. O Estado sempre atuou dentro de “limites bem demarcados, já que seu mandato primordial não era a superação, mas a preservação da centrifugalidade competitiva do capital”.
Mészáros quebra com diversas ilusões defendidas por pessoas de esquerda. O autor afirma em diversos momentos que os principais problemas que aparecem latentemente em nossa sociedade correspondem a constituição mais básica do Estado e do capitalismo. E que, pensar em soluções dentro do Estado é ingenuidade, já que o
"estado na sua composição na base material anatagônica do capital não pode fazer outra coisa senão proteger a ordem sociometabólica estabelecida, defendê-la a todo custo, independentemente dos perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade".
O Estado tem a capacidade de defender e proteger a qualquer custo a ordem sociometabólica estabelecida, e de criar soluções para os problemas sociais que passem pela sua perpétua manutenção; para o Estado e seus representantes, não há soluções possíveis para as mazelas da sociedade que possam ser alcançadas fora da sua tutela.
Pensar em soluções para os problemas do capitalismo dentro do capitalismo é perda de tempo. O capitalismo funciona em conjunto com o Estado, e, ao mesmo passo que se pensa em superar ou conquistar um, deve-se superar e conquistar ambos. Mészáros chama atenção para uma questão que as vezes pode passar despercebida: como podemos pensar em resolver os problemas da sociedade vivendo em um sistema que ocasiona tais problemas, e sob a tutela de uma instituição que inerentemente existe para mantê-los?
"O que sempre importou, e continua a importar enquanto o sistema de expropriação e dominação superimposto do trabalho excedente sobreviver sob qualquer forma, e a substância em si, que muda sua forma. E o quadro de referência regulatório geral é inseparável disso. A questão fundamental, portanto, em seus termos materiais de referência, é a expropriação e a apropriação alienada do trabalho excedente enquanto tal, não apenas esta ou aquela forma particular disso […]. Ambos permanecem ou caem juntos".
A emancipação humana passa pela conquista e pela superação do Estado e do capital. Estado, capital e trabalho andam juntos no capitalismo; uma sociedade que tenha como objetivo a superação da ordem sociometabólica estabelecida deve conquistar e superar os três. Como já argumentou no Para Além do Capital, capital, trabalho e Estado se sustentam mutuamente — são “três pilares interligados”. “Nenhum deles pode ser eliminado por conta própria. Tampouco podem ser simplesmente abolidos ou derrubados.”
Ponto importante na obra de Mészáros é o “fenecimento” do Estado. Usando Marx como apoio, Mészáros insite que qualquer abolição do Estado que passe pela conspiração ou por qualquer decreto de cunho jurídico, tende a fracassar. “[…] a viabilidade real da mudança social radical defendida […]” tinha de ser concebida “[…] como decorrente de desdobramentos historicamente sustentáveis de processos sociais apropriados, explicando-os em sua realidade tangível na medida em que se cosolidavam de acordo com a transformação dialética mediadora de seus requisitos objetivos e subjetivos multifacetados”.
O futuro de qualquer novo sistema sociometabólico, que vise a emancipação humana como objetivo máximo, precisa e deve planejar o fim do Estado na medida em que desenvolve uma ação política e tomada de decisão global. Fazendo isso, o futuro não só deve mas também só pode trazer o “fenecimento” do Estado. Mészáros afirma que não existe a possibilidade de um socialismo real sem o “fenecimento” do Estado, acompanhado da superação do capital e do trabalho tal como é na sociedade capitalista. Essa é a montanha que devemos conquistar.
Mészáros não poupa críticas a autores que formularam teorias do Estado, como Hegel. Para Mészáros, Hegel idealiza um Estado que é a encarnação do Espírito do Mundo. Hegel não questionou a legitimidade do Estado, apenas deu a ele importância máxima na sociedade; como se a “sociedade civil” não pudesse existir sem a tutela do Estado criado para administrar os antagonismos de classe existentes na sociedade. Hegel vê os Estados, as nações e os indíviduos como “os instrumentos inconscientes e os membros dessa ocupação interna do espírito do mundo”.
"encontramos os equivalentes filosóficos que representam a ausência de autoconsciência nos atores históricos e nas realizações defenidas pelo próprio Hegel como a ‘astúcia da razão’ (List der Vernunft) na ‘providência’ de Vico, na ‘mão invisível’ de Adam Smith e no ‘plano da natureza’ providencial de Kant. Todos esses esquemas explicativos, bastante misteriosos e destinados a iluminar a verdadeira natureza dos objetivos históricos, foram postulados com os poderes correspondentes de sua realização. E os poderes postulados eram considerados capazes de afirmar e se imporem, com legitimidade inqustionável, contra as intenções, os desejos, as ideias e os projetos conscientes dos seres humanos historicamente existentes. Pois, mesmo na fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, era totalmente inconcebível visualizar a partir do ponto de vista da burguesia — que teve de eternizar a ‘sociedade civil’ sob sua dominação constante — um sujeito coletivo alternativo e real, materialmente identificável e socialmente eficaz, como o portador das transformações históricas sustentáveis".
Mesmo que Hegel tenha reconhecido a existência dos antagonismos e das classes sociais, não deu a eles a devida importância. Imaginou que a figura do Estado fosse capaz de administrar antagonismos latentes dentro da estrutura social. Qualquer análise ahistórica do Estado acaba por idealiza-lo. E, ao fazer isso, o Estado ganha super poderes e uma autoconsciência que só pode ter sido fornecida pelas mãos divinas. O Estado, sem um estudo sério que leve em conta os desenvolvimentos histórios, aparece simplesmente como algo dado; como uma instituição divina que não precisa de legitimidade.
Em uma sociedade de transição, como a socialista, o Estado ganha um papel importantíssimo no caminho da superação do capitalismo e do capital, já que um processo revolucionário nunca termina de fato, como “transições dentro da transição”. Mesmo que se tenha superado o capitalismo, o capital continuará existindo dentro de uma nova ordem sociometabólica, mesmo que essa nova ordem seja o socialismo. Mészáros aponta que a “relação normalmente prevalecente entre ‘sociedade civil’ e Estado político amplia em muito o poder ideológico de mistificação do Estado político burguês […] e, por meio de sua própria inércia, constitui um obstáculo material paralisante a qualquer estratégia de transição”.
O funcionamento do Estado e do capital depende do domínio de classes. Onde há Estado, há o movimento do capital. É impossível pensar em emancipação humana enquanto a figura do Estado — e do capital — continuarem a existir. E, a condição universal e revolucionária do proletariado se dá por conta da latente e inerente contradição e antagonismo entre trabalho e capital. Em uma sociedade eternamente socialista (que não faça a transição), a relação contraditória entre capital e trabalho continuará existindo. Só que, dessa vez, a expropriação não ocorrerá pelas mãos da burguesia, seja como classe ou como indivíduos, mas sim pelas mãos do Estado, já que o capital pode se expandir através de políticas coloniais externas e internas, explorando cada vez mais a sua mão de obra.
"Enquanto as funções controladoras vitais do sociometabolismo não forem efetivamente ocupadas e exercidas autonomamente pelos produtores associados, mas deixadas à autoridade de um pessoal de controle separado (ou seja, um novo tipo de personificação do capital), o próprio trabalho continuará a reproduzir o poder do capital contra si mesmo, mantendo materialmente e dessa forma estendendo a dominação da riqueza sobre a sociedade".
Isso seria, basicamente, a imagem que Lukacs projetou do proletariado “virando sua ditadura contra si mesmo”.
Nenhuma resenha ou comentário pode exprimir o tamanho dessa obra de Istvan Mészáros. A montanha que devemos conquistar não poderia ser nada mais que um eufemismo. Pois, mesmo que a montanha tratada no livro seja o Estado, junto com ele vem capital e trabalho; sem falar de todas as dificuldades de uma sociedade de transição. Esse é o tamanho da montanha que devemos conquistar e superar.
"Algum tempo atrás falei do “obstáculo do tamanho do Himalaia”. Isso parece um verdadeiro eufemismo. Nossa montanha corresponde a muitos Himalaias um em cima do outro. E não há xerpas nativos a serem explorados para o trabalho duro. Teremos de fazê-lo nós mesmos e só poderemos fazê-lo se estivermos dispostos a enfrentar os verdadeiros riscos e os reais obstáculos".
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