Lucas 07/05/2022
A nostalgia que amarra vida e obra de Erico Verissimo em suas derradeiras linhas
Erico Verissimo (1905-1975), o gaúcho de Cruz Alta, construiu um robusto legado literário no cenário nacional do século XX. Dono de uma incomparável habilidade em contar histórias, ele, como que a pedido do destino, terminou esse legado deixando a obra da sua vida. Não que Solo de Clarineta (lançado em dois volumes em 1973 e 1976) tenha sido o melhor trabalho de sua carreira, longe disso, mas ele corresponde às memórias da vida deste ilustre escritor tão importante para a literatura do Brasil.
As páginas dos dois volumes que compõem Solo de Clarineta desnudam o menino, o adolescente, o homem e o pai de família, nuances quase ignoradas diante do escritor e sua obra. A tônica das primeiras páginas é justamente a de ilustrar todo este caráter multifacetado do personagem protagonista e narrador (todo o livro é narrado soltamente em primeira pessoa), através de um cenário tipicamente interiorano do Rio Grande do Sul do início do século XX. Seja de forma explícita (como o tio Nestor Verissimo que serviu de base para o inesquecível Toríbio Cambará, da saga O Tempo e o Vento) ou de maneira mais velada e indireta, são nítidas as influências que este cenário exerceu sobre a escrita e o estilo do futuro autor.
Individualmente falando, Erico nas suas memórias é bem detalhista (em excesso) a respeito de questões íntimas da sua existência, tecendo algumas informações de caráter biológico (!) inerentes à sua puberdade que soam desnecessárias, apesar do tom de humor com que estas passagens são descritas. O cenário a qual ele pinta, entretanto, traz momentos de descobertas, influências, idas e vindas e dramas domésticos. O pai de Erico, Sebastião Verissimo, era um senhor apaixonado pela vida, dono de um caráter contraditório que acabou por distanciá-lo da esposa, Abegahy Lopes (Dª Bega) e dos filhos (além de Erico, o primogênito, havia também o caçula Enio). A relação com o pai, obtusa (para dizer o mínimo) em fontes biográficas paralelas, reserva em Solo de Clarineta cenas e conflitos internos representativos de vários dilemas que um filho mais velho acaba desenvolvendo diante de um eminente desmantelamento familiar.
A vida de Erico Verissimo em sua cidade natal, com as suas experiências e ocupações (seu pai era dono de uma farmácia e ele mesmo, posteriormente, era o balconista de uma "botica" a qual ele era um dos donos), acabaram por moldar o futuro escritor bem-sucedido, traduzido para vários idiomas. Esse processo, entretanto, passou por fases conturbadas, seja interna ou externamente ao escritor. Tímido, recatado e apaixonado por leitura desde pequeno, Erico Verissimo tinha os mais significativos traços de alguém não talhado para o gauchismo. Até o fim da vida, jamais aprendeu a cavalgar, no que seria um acinte para a sua gente e para grande parte dos seus personagens fictícios... Por sorte, o menino e depois adolescente jamais se sentiu deslocado por isso (fica perceptível a compreensão da família ou amigos da infância mais chegados que eram capazes de entender ou talvez simplesmente não se importar com o jovem lendo Dostoiévski ao invés de frequentar lugares obscuros ou tomar parte em pelejas envolvendo "chinas").
Além disso, a primeira ocupação de Erico quando ele muda-se para Porto Alegre já casado com Mafalda Halfen Holpe é na Revista do Globo, atuando como secretário de redação. Este contato com as letras, associado à sua própria personalidade acima descrita, explica a tônica "urbanista" do autor em seus primeiros trabalhos maduros, como Clarissa (1933), o polêmico Caminhos Cruzados (1935) e Música ao Longe (1936). Romances de alcance mais localizado, eles pavimentaram o caminho para o lançamento de Olhai os Lírios do Campo (1938), seu primeiro grande livro, a qual trouxe-lhe representatividade nacional e até internacional. Misturando materialismo, relações familiares e religião, Verissimo lançava as bases do que seria a sua literatura: mulheres fortes (neste caso, simbolizadas pela inesquecível Olívia Miranda), protagonistas contraditórios (como Eugênio Pontes, o médico que renega certos valores), uma estrutura narrativa com várias voltas ao passado e uma infinidade de reflexões indestrutíveis à ação do tempo.
É com base nessa sistemática que, depois de morar entre 1943 e 1945 nos Estados Unidos (trabalhou como professor de literatura brasileira) e entre romances menores, Erico Verissimo lançou em 1949 O Continente, o cerne da trilogia O Tempo e O Vento, que o imortalizou para a literatura universal. Dali em diante, Solo de Clarineta descreve os dilemas práticos que fizeram o "não talhado para o gauchismo" Erico Verissimo a escrever uma obra que comportasse dois séculos de existência do Rio Grande do Sul, bem como as particularidades e desafios próprios do escritor diante dos personagens por ele criados para essa descrição. Aqui, o criador comenta sobre eles, indicando suas predileções e influências, oferecendo um deleite único ao leitor que já leu O Continente (sou suspeito: a obra que apresenta a estirpe dos Terra-Cambará é o meu livro nacional predileto da vida, ocupando um posto aparentemente inalcançável). Depois, em 1951, surge a segunda parte da trilogia, O Retrato, certamente o menos sensacional livro d'O Tempo e o Vento, mas essencial quando avaliado dentro da série. Novamente, entre outros romances e uma nova estada nos Estados Unidos, Erico fecha a saga com o maravilhoso O Arquipélago (1962), que além dos percalços citados, teve que conviver com um infarto do autor (o qual é narrado em pormenores no primeiro capítulo do segundo volume de Solo de Clarineta). Neste incrível fechamento da saga, Erico em suas memórias volta a fazer comentários sobre a estrutura do livro e seus personagens, num renovo do deleite despertado nas reflexões d'O Continente.
Deixando-se de lado os contornos de síntese que esta resenha está adquirindo, é importante salientar que Solo de Clarineta, além de descrever praticamente toda a vida de seu idealizador (infelizmente, Erico faleceu enquanto escrevia o volume final. O que ele não tinha finalizado foi organizado pelo professor Flávio Loureiro Chaves (1944-), em parceria com os familiares do autor), oferece perspectivas mais práticas sobre ele mesmo e sua obra. É curioso, neste escopo, imaginar que, salvo alguns personagens marcantes d'O Tempo e o Vento, o típico arquétipo de Verissimo é alguém normalmente indeciso, com opiniões ponderadas, cheios de imperfeições e atitudes passivas. O que seria uma crítica se torna uma característica marcante: são poucos os autores que simplesmente descrevem o homem/personagem comum, sem colocar nele artimanhas heroicas, psicológicas ou mesmo imprevisíveis. Estes personagens "sem cor", além de trazerem consigo um pouco do retraimento do seu criador, pertencem (e é aí que está a genialidade disso) a algo maior, a uma lição de vida ou história a qual normalmente está estruturada nas entrelinhas ou contextos de sua respectiva realidade literária. Os personagens imperfeitos ou sem decisão podem ser enfadonhos se tomados isoladamente; mas Verissimo traz a eles um papel de destaque no todo, que não teria o mesmo encanto sem essa tal "passividade personificada".
Outro aspecto, este mais recorrente de forma crítica no estilo de Erico Verissimo e brevemente citado acima, relaciona-se com a eventual "pobreza" psicológica dos seus personagens. Mesmo nos personagens mais inesquecíveis d'O Tempo e o Vento, há uma falta de profundidade psicológica: os tipos não são totalmente bons ou totalmente ruins, mas essas imperfeições derivam muito mais do ambiente em que atuam e da origem que possuem. A consciência dos personagens de Verissimo não é abrangida pelas suas obras, elas não desenvolvem mirabolantes teorias "dostoiévskianas" que trazem justificativas aos fins. Contudo, as reflexões que Erico traz em Solo de Clarineta, mesmo que de forma indireta, contrapõem essa visão "imprescindível" de adentrar-se aos recônditos da mente de um personagem, assumindo e utilizando seus eventuais distúrbios psicológicos como elementos vivos da narrativa. Isso porque a literatura de Erico Verissimo é fortemente influenciada por aspectos mais práticos e "terrenos", como os seres humanos em si, suas experiências e seus "causos". Fundamentalmente, o escritor nos ensina que um bom contador de histórias é um ótimo observador, capaz de moldar exemplos que ele vê/viu ao seu redor em torno de uma ficção por ele montada, utilizando vieses sociais e históricos.
Essa característica é tão dominante em Erico Verissimo que ela sobrepõe outras habilidades de um bom romancista. A criatividade, por exemplo, cujos traços são indispensáveis em outros estilos literários (como o realismo mágico ou a fantasia), é empregada com reserva pelo autor na imensa maioria de suas obras, seguindo um traço não apenas dele, Erico, mas do movimento a qual ele simbolizou (o regionalismo). Numa conclusão um pouco temerária, para fazer uma boa literatura o indivíduo não precisa necessariamente conhecer como poucos a mente humana ou ser intensamente criativo: "basta" ter a habilidade de observação e ser sensível ao que as pessoas têm pra contar. Logicamente, entre falar e fazer há um abismo considerável, mas os traços estilísticos e até mesmo pessoais de Erico Verissimo tornam a tarefa de escrever, aos olhos de meros mortais ou não estudiosos da literatura, um exercício menos complexo do que pode parecer. Acredito que suas ideias, nesse caso, são encorajadoras para que bons observadores tornem-se bons escritores, tal como um certo Erico Verissimo foi um dia.
Solo de Clarineta, como o último ato literário de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos (vitimado por um novo infarto em 1975) é simbólico da obra e da vida de Erico Verissimo (apesar dos monótonos relatos de viagens expostos no último volume, as quais são interessantes mas travam pontualmente a leitura). E em se tratando de um autor que tão bem soube trazer aos seus escritos a sua origem e influências, ambos os aspectos (vida e obra) confundem-se, oferecendo ao leitor uma sensação ininterrupta de nostalgia em seus mais diversos entendimentos.