Tauana Mariana 16/02/2012
O cinema ou o Homem Imaginário
MORIN, Morin. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia. Lisboa: Moraes Editores, 1970.
Prólogo
A arte do cinema, a indústria do filme, são sómente os dados presentes à nossa consciência dum fenómeno que é necessário captar em toda a sua plenitude. 9
Interrogar o cinema, encará-lo na sua totalidade humana, é o que ambicionamos com este nosso trabalho. 10
O presente volume é uma tentativa de elucidação segundo um método de antropologia genética que perde por ser exposto in abstrato; apenas se justifica pela eficácia com que testemunhar da unidade e da complexidade do fenómeno estudado. 10
Capítulo I – O cinema, o avião
O século XIX lega, ao morrer, duas máquinas novas. Nascem, tanto uma como a outra, quase na mesma data, e quase no mesmo sítio, posto o que se lançam simultâneamente sobre o mundo, cobrindo os continentes. 11
A visão objectiva [...] captava a vida para reproduzir, para a “imprimir”, segundo a expressão de Marcel Lherbier. 11-12
Ao passo que o avião se evadia do mundo dos objectos, o cinematógrafo pretendia apenas reflecti-lo, a fim de melhor examinar. 12
O avião não se desprendeu da terra. Dilatou a terra até à estratosfera. Abreviou-a. 12
O filme é que ascende, cada vez mais alto, a um céu de sonho, ao infinito das estrelas – das stars –, a esse céu banhado pela música, povoado por adoráveis e demoníacas presenças, que assim se escapa deveria ser o servo e o espelho. 12-13
O cinema reflecte a realidade, mas, mais do que isso, comunica com o sonho. É que todos os testemunhos nos asseveram: e são precisamente esses testemunhos que formam o cinema, que nada é sem os espectadores. O cinema não é a realidade, pois que todos no-lo dizem. 14
Se é ilusão a sua irrealidade, é evidente que essa ilusão é, apesar de tudo, a sua realidade. Sabemos, porém, ao mesmo tempo, que a objectiva é destituída de subjetividade, e que nenhum fantasma virá perturbar o olhar que ela fixa ao nível do real. 14-15
Será possível limitarmo-nos a opor, lógica e cronológicamente, a ciência à imaginação? “Foi, a princípio, uma ciência, e apenas isso. Foi preciso imaginação grandiosa do homem...”, observa Élie Faure. 15
Apenas uma ciência? 15
Será uma ciência apenas uma ciência? Não será ela sempre, na sua fonte inventiva, filha do sonho? 16
O aparecimento do cinematógrafo fácilmente nos levaria a problemas duma sociologia comparativa da invenção; queremos, no entanto, chamar a atenção para este facto: inventores, engenhosos e sonhadores pertencem todos à mesma família navegam todos nas mesmas águas onde o génio vai beber. 16
A técnica e o sonho andam, de nascença, a par. Em nenhum momento da sua gênese e do seu desenvolvimento se pode confiar o cinematógrafo ao campo exclusivo do sonho ou da ciência. 16
Donde vem então o cinema? [...] Na realidade, esse enigma é, acima de tudo, fruto da incerteza duma corrente que ziguezagueia entre o jogo e a pesquisa, o espetáculo e o laboratório, a decomposição e a reprodução do movimento é o nó górdio entre a ciência e o sonho, a ilusão e a realidade que preparam a nova invenção. 18
Capítulo II – O encanto da imagem
O cinematógrafo aumenta duplamente a impressão de realidade da fotografia, restituindo, por um lado, aos seres e às coisas o seu movimento natural, e projectando-os, por outro, libertos tanto da película como da caixa do Quinetoscópio, sobre uma superfície em que parecem autónomos. 19
Fotogenia
Desde o seu aparecimento, e mesmo antes (quinetoscópio), a imagem filmada revestiu-se, realmente, de exotismo e de fantasia, serviu o burlesco [...], o fantástico [...], a História [...], a brejeirice [...], o dramalhão [...], e as festas, as actualidades falseadas, as coroações, as batalhas navais. 20
Titubear de ideias em gestação, candura no modo de expressão, pobre e rico como o balbuciar da revelação mística; a grande e enorme verdade custa a definir-se: a fotogenia é a qualidade inerente ao cinematógrafo e a qualidade inerente ao cinematógrafo é a fotogenia ... 21-22
Breton admirava que no fantástico só real houvesse. 22
Invertamos os termos e admiremos o fantástico que se irradia do simples reflexo das coisas reais. Dialectizemos finalmente: real e fantástico estão interligados na fotografia, e identificam-se, ao mesmo tempo, como numa exacta sobrimpressão. 22-23
Génio da fotografia
Foi a fotografia que, em 1839, deu origem à palavra fotogenia. Palavra que continua a ser utilizada. Descobrimos, nos retratos, que somos ou não “fotogénico”, mediante uma melhoria ou pejoração misteriosas. A fotografia ou nos lisonjeia ou nos trai; confere-nos ou nega-nos algo de indefinível. 24
A mais banal das fotografias detém ou apela para uma certa presença. 25
[...] as fotografias sucedem às estatuetas ou aos objectos de que se rodeava o culto dos mortos. 25
Não terá vindo a difusão d fotografia reanimar as formas arcaicas da devoção familiar? Ou melhor: será que os anseios do culto familiar não vieram a encontrar, na fotografia, a representação exacta daquilo que amuletos e objectos realizavam de forma imperfeitamente simbólica: a presença d ausência? 25
Neste sentido, é possível dar um nome exacto à fotografia: recordação; identificação que nos leva longe. A própria recordação se pode chamar vida reencontrada, presença perpetuada. 25-26
Toda a película é com uma pilha que se carrega de presenças: rostos amados, objectos admirados, acontecimentos “belos”, “extraordinários”, “intensos”. Por isso surge o fotógrafo, profissional ou amador, naqueles momentos em que a vida sai do seu leito de indiferenças: viagens, festas, cerimónias, baptizados, casamentos. Só o luto – interessante tabu que não tardaremos a compreender – permanece inviolado. 27
As paixões do amor carregam a fotografia duma presença quase mística. A troca de fotografias vem fazer parte do ritual dos amantes unidos de corpo ou, pelo menos, de alma. 27
A troca das imagens realiza mágicamente essa troca de individualidades, em que cada um se torna não só ídolo como escravo, e que constitui o amor. 27-28
A fotografia pode igualmente ser dotada de um génio visionário, aberto ao invisível. Aquilo a que se chama “fotogenia” não passa do embrião duma extralucidez mítica que não só fixa na película os ectoplasmas materializados das sessões espíritas, como também os espectros invisíveis ao olhar humano. 29
A imagem e o duplo
A imagem mental é “estrutura essencial da consciência, função psicológica” (Sartre, L’imaginaire, p. 122). Não é possível dissociá-la da presença do mundo no homem, da presença do homem no mundo. É, para ambos, o intermédio recíproco. Ao mesmo tempo, contudo, a imagem não passa dum duplo, dum reflexo, isto é, duma ausência. 31-32
Sartre diz que “a característica essencial da imagem mental é uma certa forma do objecto estar ausente na sua própria presença”. Acrescenta-se também o recíproco: de estar presente na sua própria ausência. Como igualmente Sartre o diz, “o original encarna-se, desce à imagem”. A imagem é uma presença vivida e uma ausência real, uma presença-ausência. 32
É como se a necessidade que o homem tem de lutar contra a erosão do tempo se fixasse, privilegiadamente, na imagem. 33
Esse mesmo movimento que valoriza a imagem impele-a, ao mesmo tempo, para o exterior, tende a dar-lhe corpo, relevo, autonomia. Trata-se aqui dum aspecto particular dum processo humano fundamental, o da projecção ou alienação. 33
Quanto mais poderosa é a carência subjetiva, tanto mais a imagem a que ela se fixa tende a projectar-se, a alienar-se, a objectivar-se, a alucinar-se, a fetichizar-se [...], tanto mais essa imagem, e bem que aparentemente objectiva, e exactamente por essa razão, se apresenta rica daquela carência, a ponto de adquirir um carácter surreal. 33-34
O duplo é, efectivamente, essa imagem fundamental do homem, imagem anterior à íntima consciência de si próprio, imagem reconhecida no reflexo ou na sombra, projectada no sonho, na alucinação, assim como na representação pintada ou esculpida, imagem fetichizada e magnificada nas crenças duma outra vida, nos cultos e nas religiões. 34
O duplo é efectivamente universal na humanidade primitiva. Talvez seja mesmo o único grande mito humano universal. 34
Mito experimental: a sua presença e a sua existência não nos deixam qualquer dúvida: é visto no reflexo e na sombra, sentido e advinhado no vento e na natureza, presenciado, uma vez mais, nos sonhos. Cada um vive acompanhado do seu próprio duplo: não tanto uma cópia conforme, e mais, contudo, que um alter ego: ego alter, um eu-próprio outro. 34-35
O duplo é a sua imagem, imagem exacta e ao mesmo tempo irradiante, como uma aura que ultrapassa – o seu mito. 36
A imagem mental e a imagem material ampliam ou reduzem potencialmente a realidade que dão a ver; irradiam a fatalidade ou a esperança, o nada ou a transcendência, a amortalidade ou a morte. 39
O mundo das imagens desdobra incessantemente a vida. A imagem e o duplo são modelos recíprocos um do outro. 40
Uma potência psíquica, projectiva, cria um duplo de tudo, para depois o vir a desenvolver no imaginário. Uma potência imaginária desdobra tudo numa projecção psíquica. 40
A imagem é detentora da qualidade mágica do duplo, mas uma qualidade interiorizada, nascente, sunjectivada. O duplo é detentor da qualidade psíquica, afetiva da imagem, mas uma qualidade alienada e mágica. 40
Tudo o que é imagem tende, em certo sentido, a tornar-se afectivo, e tudo o que é mágico tende a tornar-se afectivo, e tudo o que é afectivo tende a tornar-se mágico. E, noutro sentido, tudo o que é mágico tende a tornar-se afectivo. 41
A fotografia é uma imagem física, com a riqueza duma qualidade psíquica. 41
Extraordinária coincidência antropológica: técnica dum mundo técnico, reprodução físico-química das coisas, produto duma determinada civilização, assemelha-se a fotografia ao mais espontâneo e universal produto mental: contém os genes da imagem (imagem mental) e do mito (duplo), é, por assim dizer, a imagem e o mito, na sua origem. 44
[...] a fotogenia é essa complexa e única qualidade de sombra, reflexo e duplo, que permite às potências afectivas próprias da imagem mental fixarem-se na imagem dada pela reprodução fotográfica. 45
Dificuldade e génio do cinematógrafo
Foi aos gritos de “Fogo, é bruxaria!” que em 1898 os camponeses de Nijni Novgorod incendiaram a barraca de projecção Lumiére. Entre as velhas civilizações e populações primitivas dos cinco continentes, a difusão do cinematógrafo passou, efectivamente, por um fenómeno de magia. 47
A estrela tem duas vidas: a dos filmes em que entra e a sua vida real. Na verdade, a primeira tende a comandar ou a apagar a segunda. 52
Basta às vezes um tudo-nada de devaneio, de imaginação, de antecipação, para que a emocionante imagem cinematográfica se veja súbitamente exaltada às dimensões míticas do universo dos duplos e da morte. Consideremos o cinema o futuro imaginado pelas ficções de antecipação. 54
Vemos desenhar-se o mito último da cinematografia, que ao mesmo tempo é o seu mito primeiro. O cinema total, que catapulta para um futuro insondável o que germina no próprio núcleo da imagem, pode revelar-nos os poderes latentes desse mito. 54
A invenção de Morel propõe-nos o mito cinematográfico final: a absorção do homem pelo universo desdobrado, para que – finalmente – tal como si próprio a eternidade o salve. E com isso nos mostra que, se o mito latente do cinematógrafo é a imortalidade, o cinematógrafo total é, em si mesmo, uma variante da imortalidade imaginária. 57
O passarinho
São os fenômenos extremos da visão autocinematográfica, do ocultismo fotográfico ou cinemato gráfico, da mitologia do cinema total que permitem aclarar o complexo indiferenciado dos fenómenos normais. 57-58
O cinematógrafo [...]. É uma maravilha antropológica, devido, precisamente, a essa sua adequação para projectar como espetáculo uma imagem apercebida como reflexo exacto da vida real. 58
O mais espantoso complexo afectivo-mágico que já alguma vez a imagem conteve não podia deixar de procurar libertar-se, de tentar abrir o seu próprio caminho para o imaginário ... 59
Capítulo III – Metamorfose do cinematógrafo em cinema
A corrente de invenções que, durante todo o século XIX, se mostrou viável, encontra agora um leito e nele se fixa. Estabiliza-se o aparelho e o sistema de projecção. 61
Ontogénese
Enquanto, retrospectivamente, tal como se procuram antepassados e uma linhagem para o enobrecido, baptiza-se de arte as alquimias do estúdio de Montreuil; Canudo numerou-a de sétima arte, e assim passam ao esquecimento as primícias plebéias, ou seja, natureza do cinema. 63 (no livro ta antureza).
Ao absoluto realismo (Lumiére) responde o absoluto irrealismo (Méliés). Admirável síntese que teria agradado a Hengel, síntese donde haveria de nascer e desenvolver-se o cinema, fusão do cinematógrafo Lumiére e de toda a mágica de Méliés. 64
A metamorfose
A brusca aparição do fantasmático faz com que se revele a magia que se esconde por detrás do “encantamento da imagem”. 65
Não é possível apresentar ainda os caracteres essenciais desta visão mágica do mundo, pois só o cinema os irá revelar, tal como serão eles que irão revelar o cinema. Precisemos, entretanto, que nos referimos à magia, não como a uma essência, mas como a determinado estádio e a determinados estados do espírito humano. 68
Tudo o que é fantástico tem, no fundo, que ver com o duplo e com a metamorfose. 68
A outra metamorfose, o tempo
Truques, maravilhoso, fantástico, metamorfose são as várias faces duma mesma realidade, e realidade méliésiana, que transforma o cinematógrafo em cinema. 71
O filme deixa de ser uma fotografia animada para se dividir numa infinidade de fotografias animadas heterogéneas, ou planos. Mas torna-se, ao mesmo tempo, num sistema de fotografias animadas, com novas características espaciais e temporais. 72
O tempo do cinematógrafo era exactamente o tempo cronológico real. O cinema, por seu lado, expurga e compartimenta a cronologia; estabelece uma concordância e um raccord entre os fragmentos temporais, segundo um ritmo particular que vem a ser, não a da acção, mas o das imagens em acção. 72-73
Será este ritmo que, a partir das séries temporais divididas em pequeníssimas parcelas, irá reconstituir um tempo novo, um tempo fluido. 73
Há um só tempo para o passado e o presente. 76
A idéia de que o passado não se dissolve, mas se refugia algures, já existe, em germe, como vimos, em toda e qualquer recordação. A magia dá-lhe corpo. Esse passado que se vai e que perdura é o mundo dos duplos: dos mortos. 76
Entre a qualidade subjetiva da imagem-recordação e a qualidade alienada da supra-vivência dos espectros, insinua-se um mito, mito que se irá desenvolver no romance de antecipação moderno: o da demanda do tempo perdido. 76-77
Metamorfose do espaço
Ao pôr a câmara em movimento e o dotá-la de ubiqüidade, operou o cinema, ao mesmo tempo que a do tempo, a metamorfose do espaço. 78
[...] o filme é um sistema de ubiqüidade integral, que permite transportar o espectador a qualquer ponto do tempo e do espaço. 79
Universo fluido
Espaço-tempo, eis a dimensão total e única dum universo fluido que Jean Epstein definiu numa passagem em que apenas se pede ao leitor que, em vez de cinematógrafo, leia cinema: “Por sua própria construção, representa o cinematógrafo, duma maneira inata e inelutável, o universo como uma continuidade, em perpétua e total mobilidade, continuidade essa bem mais fluida e ágil que a continuidade directamente sensível (...). 81-82
[...] é o cinema, na sua totalidade, que, como diz René Clair, “dá uma alma ao cabaré, ao quarto, a uma garrafa, a uma parede”. 84
[...] “o cinema é o maior apóstolo do animismo” (Bilinsky). Tudo ganha efetivamente uma alma [...]. 86
O desenho animado nada mais faz do que exagerar o fenómeno normal: “o filme revela a fisionomia antropomórfica de cada objecto”, escreve Bela Balazs. 87
A paisagem do rosto
Ao antropomorfismo, que tende a carregar de presença humana as coisas, vem juntar-se, mais fraca e obscuramente, o cosmomorfismo, ou seja, a tendência para carregar o homem de presença cósmica. 87
Os truques de Méliés são, segundo a expressão de Bouman, as “chaves dum novo mundo”. As características desse novo universo são, além da metamorfose (e do negativo, a ubiquidade), a fluidez dum espaço-tempo circulável e reversível, a incessante transferência entre o homem microscosmo e o macrocosmo e, finalmente, o antropomorfismo e o cosmomosfismo. 90
A visão mágica
O próprio mecanismo das perpétuas metamorfoses que regem o universo é, no fundo, o da morte-renascimento. 91
O universo, num determinado estádio de evolução, não passa duma inumerável tribo de espíritos anichados no seio de todas as coisas. A isso se chamou animismo. 92
Da imagem ao imaginário
A imagem do cinematógrafo, literalmente submergida, é arrastada num fluxo de imaginário, que não ficará por aí. O cinema torna-se sinónimo de ficção. 95
Uma vez mais notamos aqui que o fantástico foi a primeira, decisiva e grande vaga de imaginário, através da qual se processou a passagem do cinematógrafo a cinema [...]. 95
Entra-se no reino do imaginário no momento em que as aspirações, os desejos, e os seus negativos, os receios e os terrores, captam e modelam a imagem, com vista a ordenarem, segundo a sua lógica, os sonhos, os mitos, as religiões, as crenças, as literaturas, ou seja, precisamente todas as ficções. 95-96
Mitos e crenças, sonhos e ficções, são os rebentos da visão mágica do mundo. São eles que põem em acção o antropomorfismo e o duplo. O imaginário é a prática espontânea do espírito que sonha. 96
A imagem é o estrito reflexo da realidade, a sua objectividade está em contradição com a extravagância imaginária. Porém, esse reflexo é já, ao mesmo tempo, um “duplo”. 96
O imaginário enfeitiça a imagem, porque esta é já uma feiticeira em potência. O imaginário prolifera sobre a imagem como seu cancro natural; vai cristalizar e revelar as humanas necessidades, mas sempre em imagens; é o lugar comum da imagem e da imaginação. 96
É, pois, segundo uma mesma continuidade que o mundo dos duplos passa ao das metamorfoses, que a imagem se exalta no imaginário, que o cinema desenvolve as próprias potencialidades nas técnicas e ficção do cinema. 96
Sonho e filme
A imagem objectiva passa, doravante, a aparentar-se com a do sonho – museu imaginário do nosso pensamento em infância: a magia. 96
Música (prelúdio)
[...] não há dúvida de que a música de filme é o elemento mais inverosímil do cinema ... 99
Ainda que o espectador não se aperceba disso, o cinema é tão musical como a ópera. 100
Elie Faure disse que o filme “é uma música que chega até nós por intermédio da vista”. 101
Irrealidade, magia, subjetividade
O cinema vem impulsionar o que na imagem cinematográfica-mãe havia em estado latente: é o cinema esse próprio impulso, mercê do qual logo o irreal se espalha pelo real. 103
Irreal: eis a qualificação negativa, vazia. 103
[...] de modo nenhum identificamos o cinema com a magia: apenas pomos em relevo as analogias, as correspondências. 103-104
Capítulo IV – A alma do cinema
A projecção-identificação
A projecção é um processo universal e uniforme. 105
Na identificação, o sujeito, em vez de se projectar no mundo, absorve-o. 106
[...] o sonho é projecção-identificação em estado puro. 108
A magia deixou de ser uma crença tomada à letra para se tornar sentimento. 108
O antropo-cosmomorfismo, que já não consegue suster-se no real, bate asas para o imaginário. 109
A participação afectiva
A vida subjetica, a alma íntima, por um lado, e a alienação, a alma animista, por outro, polarizam as participações afectivas, embora estas possam englobar diversamente, tanto umas como outras. 109
A participação cinematográfica
Os comentadores ingênuos, e mesmo espíritos tão penetrantes como Balazs, crêem que a identificação ou a projecção [...] nasceram com o filme. Da mesma forma que, sem dúvida, cada um crê ter inventado o amor. 112
Temos uma personalidade de confecção, ready made. Vestimo-la como se veste um fato com quem desempenha um papel. Representamos um papel na vida, não só perante os outros, mas também (e sobretudo) perante nós próprios. O vestuário (esse disfarce), o rosto (essa máscara), as palavras (essa convecção), o sentimento da nossa importância (essa comédia), tudo isso alimenta, na vida corrente, esse espetáculo que damos a nós próprios e aos outros, ou seja as projecções-identificações imaginárias. 112
O poder de participação formou bola de neve; veio revolucionar o cinematógrafo e, ao mesmo tempo, projectá-lo para o imaginário. 117
Imaginário estático e participação
O imaginário estético é, como todo imaginário, o reino das necessidades e aspirações do homem, incarnadas e situadas estas no quadro de uma ficção. Vai alimentar-se às fontes mais profundas e intensas da participação afectiva e, por isso mesmo, alimentar mais intensas e profundas participações afetivas. 121
Os processos de aceleração e de intensificação
As técnicas do cinema são provocações, acelerações e intensificações da projecção-identificação. 121
A alma do cinema
A magia integra-se e reabsorve-se na noção mais vasta da aprticipação afectiva. Determinou esta a fixação do cinematógrafo em espetáculo e a sua metamorfose em cinema. 130
O que é a alma? É estas zona imprecisa do psiquismo no seu estado nascente, no seu estado transformante, esta embriogénese mental em que tudo quanto é distinto se confunde, em que tudo o que é confundido se encontra na âmago da participação subjetiva num processo de distinção. 133
Técnica da satisfação afectiva
[...] o cinema não deixa de responder a necessidades... 136
Essas necessidades já nós as sentimos: são as necessidades de todo o imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de toda a estética: aquelas que a vida prática não pode satisfazer ... 136
Capítulo V – A presença objetiva
A vida subjectiva estrutura o cinema e fá-lo derivar sob os grandes ventos do imaginário. 140
Objectividade cinematográfica
O movimento é a força decisiva da realidade: é nele e através dele que o tempo e o espaço são reais. 142
A conjunção da realidade do movimento e da aparência das formas provoca a sensação da vida concreta e uma percepção da realidade objectiva. 142
A percepção no cinema
O cinema quebra o quadro espácio-temporal objetivo do cinematógrafo. Capta os objetos sob ângulos de visão inusitados, submete-os a prodigiosas ampliações, confere-lhes movimentos irreais. 146
Movimento e vida
Ainda aqui teremos que voltar às fontes, àquilo que diferencia o cinematógrafo da fotografia, ao que, igualmente, diferencia o cinema do cinematógrafo: real no primeiro caso, artificial no segundo: o movimento. 154
O movimento restitui-nos a corporalidade e a vida que a fotografia congelara. Traz consigo uma irresistível sensação de realidade. 155
A ortodoxia fotográfica
No cinema, a película fornece química, psíquica e ópticamente, sem erro nem enfraquecimento, os suportes da objectividade. A objectividade é dada à partida como um padrão, um modelo. 161
Cinema total
Efectivamente, o filme mudo falava; ou melhor, era mesmo capaz de fazer silêncio e, exagerado, pudera Brasillech dizer que o silêncio fora o grande contributo do sonoro. Silêncio não é mutismo. 164
O malogro do cinematógrafo total
Podemos agora explicar porque é que o som, a cor e o écran ampliado só universalmente se difundem a partir de 1925. 173
Foi preciso a crise da Warner para se lançar definitivamente o som, a grande depressão de 1929-35 para se lançarem as superproduções em tecnicolor, a baixa de freqüência do público e a concorrência da televisão em 1947-53, para se lançar o cinemascópio e outros processos de écran largo. 176
Então, e só então, graças aos meios publicitários postos em jogo, um novo interesse se cristalizou, se estabilizou, se enraizou – se tornou uma necessidade. Foram as crises capitalistas que integraram, no cinema, o som, a cor e o écran grande. 176
Esta explicação poderia bastar-nos. Mas não explicaria ainda totalmente o paradoxo. Na exposição de 1900, é o cinematógrafo, e não o cinema, que tende a tornar-se total, ao tentar adquirir um som, uma cor, um écran mais largo. 177
Há sem dúvida nenhuma uma correlação fundamental entre o progresso do cinema e a imobilização da invenção mecânica. 177
O cinema fez economia de som e de cor durante 30 a 50 anos e ainda hoje faz economia de cinema total. O relevo, é a música que o dá e por menos dinheiro!... 177
Capítulo VI – O complexo de sonho e da realidade
As participações subjetivas, ao fixarem-se na imagem objectiva, dão-lhe uma alma e uma carne: a presença objectiva. 180
No seio da percepção, no momento infinitesimal da correcção objectiva, tende o cinema a suscitar uma visão, no sentido visionário do termo. 181
Os atributos do sonho, a precisão do real
Apontamos já as analogias que aparentam o cinema com o sonho: as estruturas do filme são mágicas e correspondem às mesmas carências de imaginário que as do sonho; a sessão de cinema revela características para-hipnóticas (obscuridade, encantação através da imagem, descontracção “confortável”, passividade e impotência física). 182
Mas ainda que objectivamente apercebido, ainda que reflexo de formas e de movimentos reais, o filme é tido como irreal pelo espectador, ou seja, é tido como imaginário. 182
[...] no cinema, como dizia Paul Valéry, todos os atributos do sonho se revestem da precisão do real. 183
Cinema e visão primitiva do mundo
Neste sentido, é possível aproximarmos o universo do cinema do da percepção primitiva. 184
Os processos psíquicos, que tanto presidem ao aparecimento da visão mágica como ao da percepção prática, encontram-se de facto, muito mais diferenciados entre os primitivos que entre os “civilizados”. 184
[...] na visão imaginária, não estão ausentes os quadros da percepção prática, que mesmo na extravagância do sonho se conserva presente o real. Mesmo na Alice no país das maravilhas se respeita a consciência e o princípio de contradição, na medida capital que permite a narrativa, o discurso. 185
Inversamente, como já vimos, a percepção prática implica ainda, atrofiados, os processos imaginários e é, em parte, determinada por eles. 185
O nosso mundo prático vive todo rodeado de superstições; o imaginário está latente nos símbolos, e sempre reinante na estética; sempre ao mínimo fraquejar da percepção, nos são possíveis as alucinações. 185-186
As emoções toldam, de repente, as diferenças, e confundem as duas realidades. Os amigos que temos, o que nos pertence, os nossos bens, as nossas alegrias, os nossos males, de novo misturam as duas ordens. 186
Novos sincretismos mágico-afectivo-práticos se reconstituem (no livro está escrito recontituem), como no amor. Como no cinema... 186
O que no fundo impede a verdade objectiva do filme de se integrar na seriedade da prática, é a consciência estética. 187
A estética, vigilante e sonhadora
A visão estética é a visão duma consciência desdobrada, duma consciência participante e, ao mesmo tempo, céptica. 187
Dialéctica incessante no seio dum extraordinário complexo de real e de irreal. O irreal mágico-afectivo é absorvido pela realidade perceptiva, que, por sua vez, é irrealizada pela visão estética... 188
O complexo de real e de irreal
O real é banhado, cotejado, atravessado, arrastado pelo irreal. O irreal é moldado, determinado, interiorizado pelo real. 189
Mas a originalidade revolucionária do cinema está em haver dissociado e oposto, como dois eléctrodos, o irreal e o real. 189
Tudo se passa como se a exigência de realidade se não mostrasse uniforme em relação a tudo quanto faz parte dum mesmo filme. 190
Os objectos e as formas
Não é, ainda, nosso propósito descrever e analisar o filme de ficção em si, mas sim tomarmo-lo como exemplo do sincretismo dialéctico de real e de irrela que caracteriza o cinema. 190
Assim é o estranho destino do cinema: fabricar uma ilusão com seres reais, de carne e osso, fabricar uma realidade com ilusões de pasta de carvão. 192
O maravilhoso envolve como um halo natural. Uma dialéctica incessante liga estes vários estados da realidade e da irrealidade até à completa reversibilidade em que o objecto se torna alma.
Som e música
No domínio do som, foi em volta da irrealidade musical que primeiro o complexo de realidade e de irrealidade se formou. 195
Mas, se a vista é intransigente, o ouvido é tolerante. 80% dos espectadores franceses prefere, às versões originais, o filme dobrado. 195
Um complexo de real e de irreal rodeia a música, esse pólo da irrealidade. Do objecto à música dois complexos, portanto, se opõem: complexos, no entanto, semelhantes, pois que tanto um como o outro se alimenta das contínuas transferências, transmutações e reconversões que o desenvolvimento do filme implica. 196
Ficção
Na grande maioria dos filmes, tal desenvolvimento é obra de ficção. 196
A ficção, como o nome indica, não é a realidade, ou melhor, a sua realidade fictícia não é senão a irrealidade imaginária. 196-197
A camada imaginária pode ser muito fina, quase translúcida, um simples pretexto em torno da imagem objetiva. Ou pode, pelo contrário, envolvê-la numa ganga fantástica. 197
Pode-se definir cada tipo de ficção segundo a liberdade e a virulência das projecções-identificações imaginárias em relação à realidade, segundo a resistência ou a intransigência do real em relação ao imaginário, ou seja, no fim das contas, segundo o seu sistema complexo de credibilidade e de participações. 197
A característica essencial da fantasia é a racionalização do fantástico. 199-200
Com maior ou menor profundidade, com mais ou menos tacto, sempre o mito é reduzido às normas da objectividade ou, pelo menos, envolto em verossimilhança. Ora, com efeito, se destrói a magia, ora ela é camuflada com mil ínfimos toques stendhalianos de objectividade e de racionalidade. 200
O cinema exige o que o teatro, não raro, negligenciava: a beleza do corpo e do rosto. Tal como a beleza da alma... O Star System leva essa idealização a uma divinização... 202
Nessas transmutações e turbilhões, em que sonho e realidade, renascendo um do outro, se encadeiam, reside a especificidade do cinema, cuja estranha essência tão ardente se procura: essência essa que é precisamente uma não-essência, ou seja, o movimento dialéctico. 203
Visão-mãe
O cinema não só abarca todo o campo do mundo real, que nos põe ao alcance da mão, como também todo o campo do mundo imaginário, pois que tanto participa da visão do sonho como da percepção do estado de vigília. 203-204
[...] o cinema é como que uma espécie de grande matriz arquetípica, que em potência embriogenética contivesse todas as visões do mundo. Daí a sua analogia com a visão-mãe da humanidade [...]. 204
Porém, ao contrário desta, a visão do cinema desvia-se da prática, para se ir englobar na estética, e assim corresponder desde logo à grande estética mãe, aquela que abarca todos os espetáculos da natureza e todo o campo do imaginário, todos os sonhos e todos os pensamentos. 204
Capítulo VII – Nascimento de uma razão. Desenvolvimento de uma linguagem
A imagem não é mais que uma abstração: algumas formas visuais. 205
A imagem representa – é a palavra – : restitui uma presença. 205
O símbolo é, ao mesmo tempo, sinal abstrato, quase sempre mais pobre do que o que simboliza, e presença concreta, pois que sabe restituir-se a riqueza. O símbolo é uma espécie de abstração concreta. 205
Do símbolo à linguagem
O plano do cinema possui, doravante, uma carga simbólica de alta tensão, que decuplica, não só o poder afectivo, como o poder significativo da imagem. 206
[...] o cinema desenvolve, por si mesmo, um sistema de abstração, de discursão, de ideação. Segrega uma linguagem, isto é, uma lógica e uma ordem – uma razão. 207
Última maravilha: o cinema patenteia-nos o nascimento de uma razão, a partir do próprio sistema de participação de onde nasce uma magia e uma alma. 207
Da participação ao entendimento
O cinematógrafo, tal como o teatro, não era mais que um espetáculo. O cinema veio introduzi-lo uma narrativa análoga à do romance. Sintetizou, de certa maneira, as estruturas do teatro e do romance. 211
A linguagem dos sons
Participação e logos
Magia e sentimento são também meios de conhecimento. 218
É por toda a imagem de filme ser simbólica que o cinema contém todas as riquezas do espírito humano em estado nascente. 219
O símbolo está na origem de todas as linguagens, que mais não são que um encadeamento de símbolos que efectuam a comunicação, ou seja, a evolução de uma realidade total, por fragmentos, convenções, abreviaturas ou acessórios. 219
É por isso que, de início, os suportes e os instrumentos do cinema são os do tom afectivo e da decifração racional, e, simultâneamente, constroem um imaginário e um discurso. 219
Eisenstein [...]. Demonstra ele, experimentalmente, como o sentimento não é fantasia irracional, mas momento do conhecimento. 221
O cinema, com a sua linguagem de imagens, e só de imagens, tornou-se pedagogia. 222
Linguagem conceptual, linguagem musical, linguagem do filme
A linguagem não é um sistema de sinais arbitrários; as palavras-sinais são também, pelo seu conteúdo, símbolos ricos de presença afectiva. 223-224
A linguagem do cinema é, no seu conjunto, fundada, não em reificações particulares, mas em processos universais de participação. 227
Um esperanto natural
O cinema é ainda mais universal que o cinematógrafo, na medida essencial em que é vertebrado pelas estruturas antropológicas nascentes. 228
A. Marzi, por seu lado, também notava que os débeis mentais eram capazes de compreender o cinema. 230
O cinema, tal como a música, contém a percepção imediata da alma por si própria. Como a poesia, desenvolve-se no campo do imaginário. 237
Capítulo VIII – A realidade semi-imaginária do homem
O cinema dá-nos, não só o reflexo do mundo, mas também o do espírito humano. 241
O filme é precisamente o momento de junção desses dois psiquismos, o que se acha incorporado na película e o do próprio espectador. 241
O psiquismo do cinema não só elabora a percepção do real, como também segrega o imaginário. Autêntico robot do imaginário, o cinema “imagina por mim, imagina em meu lugar e, ao mesmo tempo, fora de mim, com uma mais intensa e precisa imaginação”. 242
O filme, ao mesmo tempo que representa, significa. 242
Os inventores do cinema trouxeram empírica e inconscientemente para o ar livre as estruturas do imaginário, a prodigiosa mobilidade da assimilação psicológica, os processos da inteligência. 243
O cinema reflete o comércio mental do homem com o mundo. 247
É este comércio uma assimilação psíquica prática de conhecimento ou de consciência. Ao revelar-nos que a magia e, mais amplamente, as participações imaginárias vêm inaugurar esse comércio activo com o mundo, o estudo genético do cinema ensina-nos com isso que a penetração do espírito humano no mundo se mostra inseparável duma eflorescência imaginária. 247
Originados pelo mesmo psiquismo embrionário, a secreção do imaginário e a compreensão do real acham-se, no seio da actividade psíquica concreta, ou seja, do comércio mental com o mundo, complementarmente ligadas uma à outra. 247
A substância imaginária confunde-se com a nossa vida anímica, com a nossa realidade afectiva. 247
A participação é a fonte permanente do imaginário. 248
[...] os seus mitos se fundam em realidade, que exprimem, mesmo, a realidade vital primária do homem. Mito de todos os mitos, a magia não é apenas mito. 248
Mas a irrealidade de tal mito fundado na realidade vem-nos mostrar a realidade duma necessidade que se não pode realizar. 249
O homem, no decorrer de todas estas transferências imaginárias, vai-se enriquecendo genéticamente; o imaginário é o fermento do trabalho do eu sobre si próprio e sobre a natureza, através do qual se constrói e desenvolve a realidade do homem. 249
Assim, não se pode dissociar o imaginário da “natureza humana” – do homem material. 249
Homem imaginário e homem prático (homo-faber), eis as duas faces dum mesmo “ser de carência”, segundo a expressão de D. Mascolo. Ou, como disse Gorki: a realidade do homem é semi-imaginária. 250
Imaginário e técnica apóiam-se um no outro, ajudam-se mutuamente. 250
O imaginário confunde, numa mesma osmose, o real e o irreal, o facto e a carência, não só para atribuir à realidade os encantos do imaginário, como para conferir ao imaginário as virtudes da realidade. 251
O homem sujeito do mundo ainda não é, nem talvez venha a ser, mais que uma representação, que um espetáculo: o do cinema. 252
O cinema é a máquina-mãe, geradora de imaginário, assim como, reciprocamente, o imaginário é determinado pela máquina. 255