Thalya.Amancio 18/04/2021
Existência, resistência e guerra: ciclo de dor, sofrimento e luto
"Mas ele não soubera o que quisera dizer e ficara assustado por não saber para onde seus pensamentos o estavam levando. Sendo assim, será que ele tinha tão pouco controle sobre a própria vida? Ele se lembrou de nadar na praia uma manhã, esperando que ela voltasse da cidade. Uma correnteza o havia apanhado e arrastado algumas centenas de jardas até ele conseguir escapar".
Depois de mais de um mês de leitura, terminei o livro com muitas reflexões e incertezas. Contudo, uma coisa que tenho certeza: não é uma obra para pessoas que estão imersas em dificuldades ou muitas dores. Ainda mais nesse momento. Mas pode ser, que para alguns, da angústia e da náusea que o romance traz, surjam resistência e ressignificações da existência.
"Minha única ideia, Dorrigo havia confessado, é avançar e investir contra o moinho de vento. Taylor dera uma risada, mas Dorrigo quisera dizer aquilo mesmo. É nossa fé em ilusões que torna a vida possível, Squizzy, ele havia explicado (...). Era tudo ridículo e, no entanto, viver, ele dizia a si mesmo, requeria acima de tudo uma crença ridícula de que se poderia viver".
Além disso, não é uma leitura completamente trágica, obviamente. Há beleza ou a procura por ver beleza; a esperança que não abandona a mente da humanidade. Dorrigo Evans é o personagem chave dessa busca. E com ele aparecem outros tantos narradores e narradoras, pululando a história de vida, de vozes. E de esperança. Essas características o transformam em um romance polifônico, como analisou Mikhail Bakhtin sobre a produção de Dostoievski.
A crueza com as quais Flanagan faz uso durante sua narração e a descrição dos sofrimentos cotidianos dos australianos prisioneiros de guerra, é difícil de ser digerida. E a indigestão perpassa toda a narração da construção da famosa Ferrovia da Morte, a Thai-Burma que ligava Bangkok, Tailândia, Rangum e Birmânia (atualmente Myanmar).Construção vale lembrar, empreendida pelo Império Japonês durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente, em 1943.
O uso dessa linguagem crua, direta e seca incomoda, cutuca as feridas esquecidas da memória. Exatamente por essa razão, a leitura se torna dolorosa. Como os personagens, ou melhor, os prisioneiros, é quase impossível fugir dessas imagens suscitadas. E só de imaginar que estamos diante de um Romance Histórico, nosso estômago embrulha.
Relembramos das nossas próprias memórias. E o que faremos com elas?
"Por um instante, ele pensou ter captado a verdade de um mundo aterrador no qual não se podia escapar do horror, no qual a violência era eterna, a grande e única verdade, maior do que as civilizações que ele criara, maior do qualquer deus que o homem adorava, pois era o único deus verdadeiro. Era como se o homem existisse apenas para transmitir a violência a fim de garantir de que seu domínio fosse eterno. (...)"
Privados de alimentação, higiene básica, saneamento e descanso, muitos morrem durante a empreitada e esse trauma acarreta na dor que o protagonista carrega durante sua vida, tal como leremos logo no início, quando já o conheceremos mais velho, solitário e amargurado. Fica claro que essa é uma narrativa de cunho histórico com uma outra perspectiva sobre a tal temida e famigerada, Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, para além desse pano de fundo e contexto histórico, teremos a história de amor entre Dorrigo e Amy, a mulher de seu tio. Um amor proibido. Um elemento que pareceria clichê, mas que é explorado de forma fenomenal pelo autor australiano quando apresenta descrições que nos conectam e nos tornam conscientes dos pensamentos do casal.
Por fim, enfatizo que vale a pena conferir o aprofundamento de perspectivas, de histórias, de dores e o limiar entre passado e presente surgindo constantemente para nós, leitoras e leitores, enquanto lemos e conhecemos mais uma nuance de um fato histórico.
Boa leitura!