Raphael 31/12/2014"Histórias Extraordinárias", de Edgar Allan Poe, foi contemplado com diversas traduções para o nosso idioma, inúmeras. A edição aqui em questão foi traduzida por ninguém menos que a famosa e competente Clarice Lispector. Após fazer o cotejo entre algumas dessas edições, posso afirmar que, embora o livro tenha sido adaptado para o público jovem, a versão aqui é bastante satisfatória, não ficando atrás das outras edições traduzidas para o público comum.
Bom, sobre o livro propriamente dito, ele foi lançado em 1840 e seu título original era "Contos do Grotesco e do Arabesco". Infelizmente, com a tradução para o francês, feita por Baudelaire, foram misturadas outras histórias com os contos trazidos neste livro, algumas suprimidas, e o título foi mudado para "Histórias Extraordinárias". Particularmente, prefiro o título original, mas a mudança é justificável tendo em vista que a publicação original sofreu profundas alterações: mais da metade dos contos originais não foram republicados e a nova edição foi contemplada com outros textos do Poe.
No tocante a edição brasileira da Clarice Lispector, podemos observar alguns contos que aparecem em "Histórias Extraordinárias" (Assassinatos na Rua Morgue, Manuscrito Encontrado numa Garrafa, etc.) e outros encontrados nos "Contos do Grotesco" (Willian Wilson, Os Dentes de Berenice, etc.) e, por fim, vemos contos que não foram publicados em nenhum dos dois (O Barril de Amontillado). Resumindo, virou uma salada. No entanto, a coletânea escolhida pela C. Lispector foi bem razoável e abrangente, sendo que, talvez, o único clássico que tenha ficado de fora e que salta aos olhos de quem observa o índice seja "o poço e o pendulo".
Por outro lado, a edição nos apresenta 18 clássicos do escritor norte-americano e, numa avaliação geral, o livro não deixa nada a desejar, seja na escolha dos contos, seja na tradução que, embora adaptada, em alguns momentos até mesmo supera outras edições consagradas no mercado. Vejamos um exemplo no conto "Gato Preto":
"(...) o gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de levar-me a perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido (...)" (Editora Abril, 2002, Tradutor: Brenno Silveira). Esta tradução foi utilizada quase literalmente pela editora Martin Claret que a atribuiu a uma suposta pessoa chamada Pietro Nasseti.
Vejamos outra tradução do mesmo trecho, esta também bastante consagrada entre os leitores:
"(...) o gato me seguiu pelos íngremes degraus e, quase me fazendo cair de frente, exasperou-me ao ponto da loucura. Erguendo um machado, e esquecendo, em minha ira, o pavor infantil que até então detivera minha mão, dirigi um golpe contra o animal que, sem dúvida, teria se provado instantaneamente fatal caso houvesse descido como eu desejara. Mas o golpe foi interrompido pela mão de minha esposa. Instigado por essa interferência numa fúria mais que demoníaca, libertei meu braço e enterrei o machado em seu cérebro. Ela tombou morta imediatamente, sem um gemido (...)" (Editora Tordesilhas, edição ilustrada, 2012, Tradutor: Cássio de Arantes Leite).
Por fim, o mesmo trecho na edição da Clarice Lispector:
"(...) o gato descera os degraus, seguindo-nos. De repente embaraçou-se nas minhas pernas, quase me atirando ao chão. Fiquei possesso. Enlouquecido pela cólera, esqueci o medo infantil que até ali detivera minha mão. Ergui o machado e descarreguei um violento golpe no animal, que certamente teria morrido se não fosse a intervenção da minha mulher. Essa intervenção deixou-me com uma raiva mais do que demoníaca. Puxei o meu braço de sua mão e enterrei o machado no seu crânio. Ela caiu morta, sem um gemido (...)" (Editora Ediouro, edição adaptada - 2009).
Vejamos, portanto, como a edição adaptada, com a precisão das palavras de Clarice Lispector, não deixa nada a desejar em relação a outras traduções do mercado, sendo forçoso reconhecer, inclusive, que, em alguns momentos, ela a supera. "Berenice", por exemplo, foi traduzido como "Os Dentes de Berenice", bem melhor e mais pertinente, a meu ver.
No mais, "Willian Wilson", "A Queda da Casa de Usher", "O Coração Denunciador" (o preferido do famoso escritor Ítalo Calvino), "Ligéia" (que virou um filme bacana), "O Barril de Amontillado" (particularmente meu preferido - que vingança sinistra!), "O retrato Oval", etc. Será que é preciso falar algo sobre esses contos? Acredito que não. Justamente por isso, restringi-me a falar sobre a tradução, muito competente, ressalta-se. Edgar Allan Poe é um mestre da arte do conto. Em três, quatro páginas ele já te envolve no clima "grotesco e arabesco" de seus contos, as vezes com um toque sobrenatural, outras vezes não, apenas revelando o lado podre do ser humano. Obra simplesmente essencial.