Leonardo.H.Lopes 12/03/2023O Pagamento das Dívidas e Abuso de Direito: O Mercador de VenezaAntônio, um mercador da cidade de Veneza, empresta do judeu Shylock uma quantia em dinheiro para possibilitar que o amigo Brassâmio viaje à cidade de Belmonte para passar em um teste e desposar a bela Pórcia. A garantia dada pelo pagamento em dinheiro é uma libra da carne do mercador, caso a dívida não seja paga a seu tempo e modo.
Contudo, Antônio, que colocava fé que seus navios retornaram com mercadorias restaurar suas contas, se vê sem saída ao ter notícia dos naufrágios de seus bens e, ante ao vencimento da dívida, é levado à julgamento para que o judeu Shylock tenha a tão almejada carne do cristão que sempre lhe tratou mal, que lhe cuspia e lhe atrapalhava os negócios. No meio do julgamento, um advogado chega em defesa de Antônio e, ao ler o contrato, verifica que não estava previsto o derramamento de sangue. Assim, o judeu até poderia retirar carne do cristão Antônio, mas não poderia deixar derramar uma só gota de sangue, sob pena de inversão dos papéis. Shylock, assim, decide receber a quantia em dobro que antes lhe havia sido oferecida por Brassâmio, o amigo para quem Antônio contraiu a dívida e que se casa com Pórcia, que era rica. Tarde demais. O tribunal entende que o judeu deveria receber a multa ou nada e, quando Shylock desiste do processo, é acusado de tentativa de assassinado e, como forma de perdão, tem seus bens expropriados em favor da filha que foge para se casar com um cristão e do Estado, além da obrigação de ter que se tornar cristão.
Com algumas outras subtramas que se desenvolvem, o narrado acima é o coração da peça O Mercador de Veneza, um texto difícil de se classificar. Com certeza não se trata de um drama histórico e, muito menos, de uma tragédia. Mas classificar o texto como comédia, da forma costumeira, soa um pouco em descompasso com a narrativa. Em primeiro lugar, não há personagens bons nessa trama. Antônio é um cristão que escarra e humilha judeus; Shylock é um judeu que não consegue perdoar as humilhações de um cristão; Brassâmio pede dinheiro ao amigo para se casar com Pórcia visando a fortuna da moça; Jéssica, filha de Shylock, rouba o próprio pai e foge com um cristão, trocando o anel que era de sua mãe, uma joia com um peso sentimental enorme para o pai, por um macaco; Pórcia engana a todos ao fazer se passar por um operador do direito, ferindo a dignidade da justiça de Veneza … Em meio a pessoas com tantos defeitos (tão humanas?), o final da peça nos faz refletir se acabou bem para quem? Não há redenção dos pecados de nenhuma das partes, sendo que Shylock foi, sem dúvida, o que saiu mais ferido do julgamento, sendo obrigado a renunciar às próprias origens judaicas e se converter ao cristianismo.
Aliás, a peça tem sido largamente interpretada como antissemita por muitos estudiosos, com uma compreensível acentuação após os acontecimentos na Alemanha nazista. Entretanto, ao ler as entrelinhas, parece haver uma crítica muito maior aos cristãos, que são retratados com seus defeitos e suas intolerâncias. Shakespeare coloca na boca de Shylock, na Cena I do Ato III:
“Ele (Antônio) me desgraçou, prejudicou-me em meio milhões; riu-se de minhas perdas, caçou de meus lucros, encarneceu minha estirpe, atrapalhou meus negócios, esfriou minhas amizades, afogueou meus inimigos; e por que razão? Eu sou judeu. Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, aflições, paixões? Não é alimentado pela mesma comida, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, esquentado e regelado pelo mesmo verão e inverno, tal como um cristão? Quando vós nos feris, não sangramos nós? Quando nos divertis, não rimos nós? Quando nos envenenais, não morremos nós? E se nos enganar não haveremos nós de nos vingar? Se somos como vós em todo o resto, nisso também seremos semelhantes. Se um judeu enganar um cristão, qual é a humildade que encontra? A Vingança. Se um cristão engana um judeu, qual deve ser o sentimento, segundo exemplo cristão? A Vingança, pois. A vileza que me ensinais eu executo, e, por mais difícil que seja, superarei meus mestres.”
Então é isso, a irredutibilidade de Shylock em não remir a dívida, insistindo em arrancar a libra de carne do devedor, advém de uma certeza de que, se fosse Shylock, um judeu, no lugar de Antônio, um cristão, a carne seria, invariavelmente, arrancada.
Por fim, digo que é uma peça estranha, que nos leva a pensar em algumas coisas até, mas que não é uma das melhores de Shakespeare. Merece ser lida, com toda certeza.