Arsenio Meira 30/11/2013
"mas as pessoas na sala de jantar/ estão ocupadas em nascer... e morrer"
Como dramaturgo, além de ser responsável pelo marco inicial do teatro moderno com a peça Vestido de Noiva, Nelson ajudou a quebrar o tabu que envolvia a sexualidade, tornando o assunto mais presente na vida dos brasileiros. Sua grande obra dramatúrgica, em suma, realça o confronto entre os mundos do puritanismo religioso e das traições, do homossexualismo e do incesto. Com Toda Nudez Será Castigada não é diferente.
Encenada pela primeira vez em 1965 (importante atentar para a data: 1965), a peça conta a tragédia de Herculano e aborda os assuntos acima listados, e isso em período turbulento. Como se isto fosse pouco, Nelson agitava mais ainda os padrões vigentes. Era um furacão, não dispensava uma polêmica; algumas ele próprio criava diariamente, na colunas que assinava brilhantemente em jornais com Correio da Manhã e O Globo.
Mas voltemos ao enredo: após a morte da esposa, até então sua única mulher, Herculano mergulha num estado de depressão, e agarra-se à ideia do suicídio. Uma presa fácil para o seu irmão Patrício, que culpa Herculano pela sua ruina financeira. Prevendo que a castidade do irmão seria sua fraqueza, Patrício o estimula a conhecer Geni, uma prostituta a quem ele deve uma quantia. Assim, ele poderia se vingar de Herculano colocando-o entre o desejo sexual e a promessa que fez ao filho, Serginho, de que nunca mais teria outra mulher na vida e, ao mesmo tempo, garantir seu sustento pago pelo irmão.
O cardápio é variado (fato corriqueiro em se tratando de Nelson Rodrigues): diálogos obscenos travados por Herculano e Geni; um estupro sofrido na cadeia, traições em família e a revelação final de tons homossexuais. O efeito corrosivo da peça de Nelson Rodrigues mostra-se ainda mais virulento quando é apresentado o comportamento conservador e moralista de Serginho e das suas três tias. Os quatro nutrem um fanatismo que beira o doentio em relação à esposa falecida de Herculano, a ponto de Serginho visitar o túmulo da mãe e sonhar com a sua presença todos os dias.
São passagens tão estranhas que, perto delas, os hábitos extravagantes de Geni tornam-se aceitáveis e naturais como um água de coco. O toque de mestre de Nelson, porém, está no fato de não ceder, não restringir a crítica à religião, mas, sobretudo, mostrar que às vezes a religião é um eufemismo, um discurso, usado para suavizar a hipocrisia da sociedade de aparências.
O verso que usei como título para esta breve resenha, foi retirado de uma mítica Canção chamada Panis et Circencis, uma parceria de Caetano e Gil, eternizada na voz dos Mutantes, e décadas depois, revivida na forte interpretação de Marisa Monte. Não sei porque, mas toda vez que escuto essa música, lembro do universo que Nelson Rodrigues quis subverter. E conseguiu.