João Ks 13/03/2019
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
A história da “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” é narrada, em primeira pessoa, por Augusto Machado. Este é quem se propõe a redigir a biografia de Gonzaga de Sá, de quem fora amigo e grande admirador. Assim, do início ao fim, Augusto Machado vai tecendo suas memórias acerca do convívio com o velho, sagaz, culto, melancólico e solitário Gonzaga de Sá.
À moda de outros escritos de Lima Barreto, o romance “Vida e Morte” é salpicado por excertos satíricos. Do mesmo modo, ali encontramos aguçadas doses de crítica social e traços autobiográficos. Aliás, quem conhece a pena do autor certamente não ignora essas características marcantes em grande parte de sua bibliografia.
A propósito desses traços presentes na escrita de Lima Barreto, notadamente no que diz respeito aos elementos autobiográficos que frequentemente dão vasão às mágoas pessoais do escritor carioca, é impossível não se deparar por aí com opiniões que rebaixam a qualidade da obra em razão do tom quase confessional empregado por Lima Barreto. Francamente, nunca consegui assimilar em que medida a ficção perde o seu sabor e a sua grandeza quando se apoia em eventuais angústias, amarguras, frustrações ou humilhações pessoais que o autor acaso julgue ter sofrido em vida. Pouco importa saber de qual fonte jorram os sentimentos que dão vida à narrativa: se da experiência ou testemunho pessoal do autor, ou da pura criatividade e imaginação de quem escreve. O que interessa, penso eu, é aquilo que se faz com tal material, isto é, a obra ficcional que daí resulta. Aliás, parece-me que a credibilidade que se deve dar à crítica social exercia pelo escritor será tanto maior quanto maior for a intimidade do seu autor com a realidade social criticada.
Pergunto: o que mudaria na qualidade da obra de Lima Barreto se as suas personagens e as suas tramas fossem resultado da pura capacidade imaginativa, isto é, fruto simplesmente de sua verve literária, desapegado de quaisquer traços autobiográficos? A resposta é: nada mudaria! Ficção é ficção, seja ou não seja ela inspirada em confissões, memórias ou elementos biográficos do autor.
Essa mania de amalgamar autor e obra, de atrelar o caráter do autor à sua obra a fim de julgar o seu talento criativo nunca me agradou. Qual o sentido? Diminuir a obra em razão das idiossincrasias do autor? Engradecer uma obra qualquer à custa das qualidades morais do autor? Besteira! Ah se todas as obras fossem apócrifas! Julgar-se-ia a obra pela obra, que, afinal de contas, é o que interessa.
Li em algum lugar que “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” é considerada pela crítica em geral como a melhor obra de Lima Barreto.
Mas, cá entre nós, eu ousaria dizer, do alto de minha ignorância literária, que a obra é pouco envolvente. Talvez isso se deva ao enredo minguado, de pouca ação e pródigo na narrativa ensimesmada. A trama, portanto, cede à monotonia de um quase monólogo entrecortado raramente por lacônicos diálogos entre o narrador Augusto Machado e seu interlocutor Gonzaga de Sá.
Por certo, a construção de um bom enredo contribui para cativar o leitor, prendendo-o à narrativa literária. Mas, para tanto, devem também concorrer outros aspectos da escrita. No caso de “Vida e Morte” não seria de surpreender que a avaliação positiva da crítica literária tenha sido determinada pela consideração de elementos técnicos geralmente negligenciados pelo grande público. Decerto isso explicaria o relevo atribuído à obra.
Pessoalmente, sinto que o enredo enfadonho é compensado pelas reflexões espirituosas que ora o narrador faz de si para si, ora brotam de seus diálogos com Gonzaga de Sá: “Nós, os modernos, nos vamos esquecendo que essas histórias de classe, de povos, de raças, são tipos de gabinete, fabricados para as necessidades de certos edifícios lógicos, mas que fora deles desaparecem completamente [...]”.
Aliás, a monotonia que caracteriza a trama é perfeitamente justificável pela opção do autor em dar constante vasão ao fluxo de pensamentos experimentado pelas suas personagens e às observações intimistas partilhadas pelo interlocutor Gonzaga de Sá.
Nesse tanto, atraíram-me especialmente as reflexões de Gonzaga de Sá acerca da condição humana e do destino das civilizações. Em seus diálogos com o narrador Augusto Machado há até uma breve e interessante alusão ao clássico debate dos universais, travado durante a Idade Média, quando os filósofos se dividiam entre os realistas (Champeaux) e os nominalistas (Abelardo).
A obra ainda exibe seu primor nas descrições tecidas acerca da geografia urbana da cidade do Rio de Janeiro, com seus bairros, seus subúrbios e seus acidentes geográficos. Trata-se de um olhar sobre o Rio de Janeiro: a urbe, a arquitetura (que flerta com construções modernas que pouco a pouco vão ganhando espaço junto às casas e aos palacetes dos tempos imperiais), a natureza circundante (baía de Guanabara).
Ademais, dá gosto ver a maneira como Lima Barreto brinca com os cenários, os quais acabam ganhando expressividade segundo os sentimentos vividos pelos interlocutores (prosopopeia): é assim, por exemplo, que durante o melancólico velório do compadre de Gonzaga de Sá estavam plantados em frente à casa dois “crótons tristes”.
Ao que consta, “Vida e Morte” foi o primeiro romance escrito por Lima Barreto. Contudo, fora publicado somente em 1919, com a ajuda e o incentivo de Monteiro Lobato.
Boas leituras!