gabriel 04/04/2023
Guimarães Rosa, o autor de um truque só
Se eu pudesse resumir este autor numa frase, seria isso. Ele é um autor que aplica o mesmo "gimmick" o tempo inteiro, em todos os seus livros. Este gimmick seria: a linguagem sertaneja reinventada através de neologismos e estruturas incomuns. Funciona? Sim. Mas cansa...
Sagarana é um livro bom, mas castiga o seu leitor. Sofre o mal de (quase) todo livro de contos: alguns não agradam e arrastam a leitura. Raros são os livros deste gênero com todos os contos bons. O próprio gênero, aliás, dá essa liberdade, mas aqui o autor é pretensioso e carrega todo esse peso. Rosa é uma leitura solene, poética, embolada, bastante densa.
Uma coisa que me incomoda neste autor é isso, é tudo muito grandioso, pesado, cheio de cerimônia. É engraçado como isso cria um contraste com o universo sertanejo, que (em tese) seria mais simples. Tudo é violento, tudo é direto no ponto e bruto, mas tudo isso é elevado pelo estilo de linguagem que ele usa. Ele torna o universo simples do sertanejo algo cerimonioso.
Mas vamos aos contos. Gostei muito de um conto chamado "Minha gente". Aliás, os títulos não são o forte aqui dos contos, e muitos deles não fazem justiça à qualidade deles. "O burrinho pedrês" já mete um monte de boi na sua cara, vai lá gostar de boi assim. Faz uma espécie de simetria com o penúltimo conto ("Conversa de bois"), aqui os bois falam entre si e tal, mas sem chegar a ser uma fábula.
Aliás, este conto para mim é bem emblemático sobre como enxergo a literatura de Rosa. A história é forte e tem um ponto de apoio muito claro, além de uma imagem também muito forte (o caixão, sobre uma encomenda de rapaduras), os quais, por si só, sustentariam a história. Mas isso importa? Não, porque temos que ler os quatrocentos neologismos que ele coloca para nomes de plantas, de lugares, de coisas... a linguagem fica muito na frente das coisas.
Mas é uma questão de estilo, ele não alivia nunca, o que vai criando uma paisagem sonora, um "clima", que nunca nos abandona, mas que depende muito da disposição do leitor em aderir a isso. É um livro, portanto, que pede entrega, além de tempo e atenção. Não é leitura para ônibus.
Rosa é um escritor inclassificável e com um estilo muito próprio. É um autor de grande personalidade. Mas tem uma temática só (o sertão brasileiro, com ênfase nas suas características rurais) e um estilo só, você leu um parágrafo dele, já leu todos. No entanto, contraditoriamente ("dialeticamente", se você preferir) ele não é repetitivo, pois o recurso que ele usou em algum momento não retorna depois.
Muitas histórias são magras e são disfarçadas por esses truques de estilo. Como Rosa é extremamente talentoso (algumas vezes até genial), isso passa batido. Coloco nessa conta inclusive o Grande Sertão: Veredas, livro que se sustenta basicamente num plot twist que você saca logo nas primeiras páginas (construído com habilidade, é claro; mas ainda assim um plot twist).
(Aliás, quem teve a infelicidade de ver a adaptação para a televisão já sofre de cara, pois a escolha do elenco já deixa isso muito claro...).
O livro fecha com "A hora e a vez de Augusto Matraga", o conto talvez mais famoso da seleção, algumas vezes vendido como um livro próprio, gostei bastante desse mas há outros contos melhores (como os já citado "Minha gente"; "O duelo" é outro que vale dar uma olhada; "Sarapalha", contando a história de dois velhos numa cidade dizimada pela malária, é outro também muito bom).
Acredito que o estilo de Rosa é mais bem sucedido quando ele usa os seus neologismos/estruturas inusitadas, mas depois "alivia" e explica o que aconteceu com palavras mais simples. Ele faz isso algumas vezes, mas não sempre. Os contos/histórias fluem melhor quando ele faz desse jeito. Não é, portanto, uma leitura muito fluida, mas é denso, e há compensações.
Enfim, a leitura é boa, vale arriscar, alguns ótimos contos aqui, o que eu menos gosto é o intragável "Burrinho pedrês", eita conto chato, ele deveria começar com o "Augusto Matraga" que é muito mais convidativo, já conheci gente que nunca avançou no Sagarana porque morrem no conto do burrinho.
Mas para o leitor iniciante, muito mais recomendável o "Primeiras Estórias", uma leitura muito mais leve e fluida do autor (e, na minha opinião, muito melhor).