Rosa Santana 19/12/2010
MULHERES - Eduardo Galeano
Mulheres, de Eduardo Galeano, 176 páginas, editora L&PM, é uma antologia que reúne textos publicados nos seguintes livros do autor: Vagamundo, Dias e noites de amor e de guerra, Memória do fogo: os nascimentos (I), As Caras e as máscaras (II) e O Século do vento (III), O livro dos abraços e As palavras andantes.
Com seu modo habitual de manejar as palavras, o escritor cria um discurso poético, no sentido amplo do termo, produzindo uma obra a que definiu como sendo “ficção uruguaia - Crônicas”. O livro é composto de pequenos textos, desligados uns dos outros, tanto no que se relaciona às personagens específicas, quanto às questões de tempo/espaço em que elas – as personagens - estão inseridas. O autor nos relata: “pequenas” histórias das mulheres índias, negras, pobres, ao longo da conquista do território americano; aqueles malefícios a que nos submetemos, cada uma de nós, para nos adaptarmos aos padrões de beleza e da moda; os ardis do poder para queimar vivas as desprotegidas mulheres “solteiras-viúvas-com-posses”, criando para elas um poder que, em verdade, não detinham: o de fazer bruxarias...
O autor circula pelas Américas, passando, inclusive, pelo Brasil, Canadá, EUA... Não bastasse isso, ele viaja também no tempo. Desse longo espaço geográfico e cronológico, retira suas personagens, dispersas. E as traz, com suas atrozes histórias: a de mulheres que, à vista de seus filhos, têm suas línguas arrancadas, são espancadas, violentadas e, ainda, de forma insultuosa, tachadas de prostitutas; são amarradas aos cavalos e arrastadas pelas ruas das cidades em que os europeus ocupam cargos mandatários; a daquelas que, à frente de gigantescas fogueiras, percebem-se como alimento para o fogo: lenha, apenas; a de mulheres como, por exemplo, Rita Hayworth e Marilyn Monroe, a Vênus platinada , que se vêem “fabricadas” de tal maneira, que não conseguem mais sair da engrenagem que as arrasta e as comprime para o martírio da solidão e da incessante busca de aprovação por parte das massas; até mesmo a daquelas matronas, “bem casadas”, "bem nutridas" que foram feitas para servir ao pai, aos irmãos e, depois, ao marido estão nesse desfile.
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Pode-se dizer que o livro de Eduardo Galeano, por reunir histórias em cujas “tramas” estamos nós, e, sempre com a mesma temática, é, na verdade, uma narrativa ampla, cuja única personagem é a mulher como que a dizer “Trago comigo todas as idades”* e/ou “Todas as vidas dentro de mim: na minha vida!"**. Como participantes da História estamos aí generalizadas por sermos, todas, ao longo do tempo e do espaço, vítimas; como participantes da ficção de Galeano, cada uma se individualiza pelos seus diferentes atos e pela forma com que são imoladas; não pelo conteúdo dessa imolação.
Contando-nos isso, o uruguaio conta-nos, também, a história do silêncio e do descaso a que a História nos relegou... a mesma História que, ao dizer de Bertolt Brecht, tem “Uma vitória em cada página/ Quem cozinhava os banquetes da vitória?”***. Ou seja: o poder nunca contou a escura história das obscuras...
Eduardo Galeano com Mulheres, coloca à nossa frente uma grande linha do tempo que se estende como um mosaico, a marcar o percurso da opressão e da tirania contra nós, as frágeis figuras, porque, culturalmente, nos quiseram assim.
A título de ilustração, coloco aqui o poema de Sônia Queiroz:
DAS IRMÃS
os meus irmãos sujando-se
na lama
e eis-me aqui cercada
de alvura e enxovais.
eles se provocando e provando
do fogo
e eu aqui fechada
provendo a comida
eles se lambuzando e arrotando
na mesa
e eu a temperada
servindo, contida
os meus irmãos jogando-se
na cama
e eis-me afiançada
por dote e marido
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*Cora Coralina.Todas as Vidas. In: Vintém de Cobre
** Ibiden.
**** Bertolt Brecht.
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EXCERTOS QUE DESTACO:
MUNDO POUCO
O amo de Fabiana Crioula morreu em 1618, em lima. Em seu testamento, rebaixou-lhe o preço da liberdade, de duzentos a cento e cinqüenta pesos.
Fabiana passou toda a noite sem dormir, perguntando-se quanto valeria a sua caixa de madeira cheia de canela em pó. Ela não sabe somar, de modo que não pode calcular as liberdades que comprou, com seu trabalho, ao longo do meio século que leva no mundo, nem o preço dos filhos que fizeram nela e depois arrancaram dela.
Nem bem desponta a alvorada, acode o pássaro a bater na janela com o bico. Cada dia, o mesmo pássaro avisa que é hora de despertar e andar.
Fabiana boceja, senta na esteira e olha os pés gastos.
(página 80)
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JUANA AOS DEZESSEIS
(...)Juana caminha rumo ao convento de Santa Teresa a Antiga. Já não será dama da corte. Na serena luz do claustro e na solidão de sua cela, buscará o que não pode encontrar lá fora. Quisera estudar na universidade os mistérios do mundo, mas as mulheres nascem condenadas ao quarto de bordar e ao marido que as escolhe. Juana Inês de Asbaje será carmelita descalça, e chamará Sor Juana Inês de la Cruz.
(página 89)
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JANELAS SOBRE AS PERGUNTAS
Sofia Opalski tem muitos anos, ninguém sabe quantos, ninguém sabe se ela sabe. Tem apenas uma perna, anda em cadeira de rodas. As duas estão bem gastas, ela e a cadeira de rodas. A cadeira tem parafusos frouxos, e ela também.
Quando ela cai, ou quando cai a cadeira, Sofia chega do jeito que der, até o telefone e disca o único número do qual se lembra. E pergunta, lá do fim do tempo:
- Quem sou eu?
Muito longe de Sofia, em outro país, está Lucia Herrera, que tem três ou quatro anos de vida. Lucia pergunta, lá do princípio do tempo:
- O que quero eu?
(página 172)
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