spoiler visualizarTatáVasconcelos 03/09/2021
Um Retrato Não Muito Charmoso da Sociedade
Confuso define bem esse livro. Para começar, o título só começa a fazer sentido depois de ler dois terços do livro. Até aí, Salomé é apenas mencionada ou tem suas cartas lidas pela mãe. Ela não é, absolutamente, a protagonista desta história.
Por se tratar de uma novela, acompanhamos diversos personagens ao mesmo tempo.
O protagonista desde o início é o Eduardo. O pai dele era um fazendeiro rico, que se suicidara por causa das dívidas. Agora, pobre, o rapaz ganha a vida tocando músicas populares no rádio. Mas a tragédia em sua história é que, por ter perdido sua fortuna, ele perdera também sua noiva, Marina, pois a mãe dela não permitiria que se casasse com um homem que não tinha mais onde cair morto. Ela já estava acertando o casamento de Marina com um político rico, embora velho, o que muito entristecia a moça e seu amado. Por conta de tudo isso, Eduardo chegou a tentar se suicidar, mas conseguiu a proeza de errar um tiro na cabeça. Agora, sem mais nada que o prendesse à cidade, já que Marina casara-se com o político, MacGregor, Eduardo voltou para a fazenda que fora de seu pai, e que agora pertence à Dona Santa, mãe de Salomé, onde se tornara escrivão – o equivalente da época a um contador –, embora não estivesse satisfeito nem com o cargo, nem com o constante assédio da patroa.
Foi, aliás, o interesse absurdo de D. Santa no rapaz uma das razões de sua desgraça. A outra razão, foi Salomé. Embora não houvesse da parte de nenhum dos dois qualquer interesse amoroso, isso não impediu que algumas pessoas pensassem que houvesse.
D. Santa, mãe paranoica que era, mandou seu marido, o Coronel Antunes, buscar Salomé em Paris, pois tinha medo da influência que a vida boêmia de seus amigos pudesse exercer sobre ela. Porém, Salomé era um espírito livre, e não aceitava ser dominada pela mãe. Também não se interessava pelos homens. Ela gostava de se divertir, e sobretudo, de dançar, tal qual sua homônima bíblica, que em troca de uma dança diante de Herodes, pediu a cabeça de João Batista.
Daí em diante a vida da moça vira um inferno: tendo que se habituar ao contraste de uma vida numa das mais movimentadas cidades do mundo – Paris –, a qual estava acostumada, com a pacata vida na fazenda; tendo ainda que lidar com o constante e cada vez mais descarado assédio de seu padrasto; e com relacionamento cada vez mais tenso com a mãe, que, sem saber de seu desejo por liberdade, via na filha uma rival pelo amor de Eduardo.
A história é trágica. E embora a referência à história bíblica seja clara, a grande verdade é que essa trama vai do nada a lugar nenhum. Ninguém está realmente interessado em ninguém – exceto D. Santa por Eduardo, e Antunes por Salomé. Tudo não passa de uma série de mal entendidos, que acaba, por acaso, culminando num final trágico. É tudo completamente sem sentido. Não houve sequer uma razão plausível para Salomé ter regressado da Europa, no fim das contas, a não ser o excessivo moralismo da época – um moralismo bastante hipócrita, neste caso.
Paralelamente, temos outras histórias se desenvolvendo, e com personagens infinitamente mais interessantes que os do núcleo principal:
O bondoso Padre Nazareno, empenhado em cuidar dos pobres, e, acidentalmente, causando alguns alvoroços – como ter cuidado pessoalmente de uma prostituta convalescente dentro de um bordel, e ainda envolvido nisso uma moça solteira; um escândalo para os pacatos anos 1920/30. Mais tarde, ele acabou transferido para a mesma cidade no interior onde ficava a fazenda de D. Santa, cuidando com a mesma dedicação dos miseráveis de lá.
Nelo, o bolchevista, de longe, o personagem mais interessante nessa história. Ele era operário numa fábrica, envolvido com questões políticas radicais, mas com um coração enorme, sempre disposto a ajudar o Padre Nazareno a cuidar de seus pobres, de alguma forma.
Carmen, uma moça da vizinhança que sonhava ser cantora de rádio – que ela realizou, depois de ser ouvida por acaso por Cotti, um pianista, amigo de Eduardo, que trabalhava no rádio. Ele pretendia fazer de Carmen uma cantora lírica, mas percebeu, depois de algumas aulas, que seu talento estava nas marchinhas populares, e, mesmo a contragosto, transformou-a numa sambista famosa.
Aliás, a casa de Carmen era um berço de talentos: seu irmão, Alcebíades também acabou conquistando uma vaga num time de futebol profissional, tornando-se imediatamente a estrela do clube.
O próprio Cotti foi um personagem de destaque por um tempo: um amante de música clássica, frustrado pela cultura popular da época.
E teve ainda a história de outro político, pouco explorada, e que acabou totalmente perdida no meio dessa novela.
Salomé é considerado a obra-prima de Menotti Del Picchia, mas francamente, a história é simplesmente confusa, e pouquíssimo atraente. Os personagens – ao menos, aqueles que tiveram espaço para ser adequadamente desenvolvidos – são bastante representativos, e refletem bem a sociedade daquelas primeiras décadas do século vinte: a aristocracia decadente, a indústria em ascenção, os operários que iniciavam as primeiras manifestações em busca de melhores condições de trabalho, os artistas da velha-guarda frustrados com os novos tempos, e os adeptos das novidades, menos elaboradas, menos intelectuais, e mais populares ganhando espaço no cenário cultural; tudo isso sem desprezar os valores morais daqueles que ainda sofriam com as injustiças e com a miséria alheia, e daqueles que viviam nessa situação de miséria e abandono. O contexto social do livro, eu tenho que admitir, é impecável, mas narrativamente, falta tempero nessa mistura; aquela centelha que prende o leitor e o conduz pela mão através da história, esta, Menotti Del Picchia não conseguiu expressar.
Curiosidade: Este livro inspirou a novela homônima da Globo, de 1991, protagonizada por Patrícia Pillar e Petrônio Gontijo, e que – pelo menos, de acordo com a sinopse divulgada na internet – parece ter sido melhorada em seu enredo para televisão.