Luis 09/02/2016
Feitiço Baiano
João Ubaldo era único. O meu primeiro contato com o escritor foi inusitadamente através da escola de samba Império da Tijuca, que, em 1987, o homenageou tomando como base o fundamental “Viva o povo Brasileiro”, sua obra mais célebre. Naquele ano, uma tia, uma prima e minha irmã, desfilaram na agremiação e eu e meu pai, que as aguardávamos na dispersão, ficamos deslumbrados com as alegorias que retratavam o universo da Ilha de Itaparica, terra natal e cenário de muitas de suas histórias. Infelizmente, os jurados não tiveram o mesmo encantamento. A escola seria rebaixada e amargaria décadas de ostracismo.
Algum tempo depois, já então leitor fanático de jornais, acompanhava semanalmente os “causos” do Leblon e da Bahia, contados com rara graça, publicados na página de opinião de O Globo a cada domingo. Daí para os romances, cujo o primeiro que li foi “O Sorriso do Lagarto”, em 1997, foi um sopro. Menos que um pulo. Não parei mais.
“O Feitiço da Ilha do Pavão” (Alfaguara, 2011, primeira edição da Nova Fronteira, 1997)) jazia aqui na prateleira há pelo menos dois anos. Nesse meio tempo, a morte de Ubaldo, ocorrida em julho de 2014, fez muitos se reaproximarem da obra do baiano, ou, como comumente ocorre no Brasil, finalmente conhecê-lo incentivados pelos editoriais na imprensa. Inconscientemente segui em direção oposta. Só agora retomei o contato literário com o autor. Passada toda a comoção despertada pelo seu passamento, a leitura de “Feitiço” não deixa dúvidas : Tratava-se de um gigante, como poucos que tivemos em nossas letras.
A trama retrata a atmosfera algo excêntrica da Ilha do Pavão; Um lugarejo mítico na Bahia (seria uma releitura da sua Itaparica ?), invisível em mapas, quase que perdida no período do Brasil Colônia. A Ilha abriga uma oligarquia hipócrita, comandadas pelo intendente Dom Felipe, que aparentemente preza pelos valores morais cristãos da Coroa Portuguesa e que vive em guerra com os índios da região liderados pelo esperto Balduíno, amigo do jovem Iô Pepeu, filho do poderoso Capitão Cavalo, que embora proprietário de terras, não participa da elite local, sendo francamente contra as convenções da época, pregando a liberdade (em suas terras não existem escravos) e o respeito às diferenças. O elenco de personagens conta ainda com o alemão Hans Flusser, aventureiro que uma vez jogado à ilha, praticamente se esquece de sua origem europeia tendo filhos com as nativas e assumindo a cultura local. Hans e o Capitão Cavalo se juntam à Degredada, uma espécie de “mãe de santo”, detentora de misteriosos saberes que amedrontam os carolas e Crescência, a bela aprendiz da Degredada, paixão maior de Iô Pepeu, na defesa e da ilha e na divisão de um segredo, o tal feitiço que envolve um pavão multicolorido.
João Ubaldo nos brinda ainda com mais uma majestosa criação : o “Rei” Jorge Diogo. Líder de um Quilombo, Jorge Diogo é um tirano sanguinário e escravocrata (isso mesmo, você não leu errado...), que aplica os conceitos de superioridade de raça às diversas etnias negras africanas, colocando a sua no topo da pirâmide e reservando às demais a alcunha de povos inferiores. Alguns dos melhores momentos do romance envolvem as disputas entre a “aliança” Quilombo-oligarquia e a trupe liderada pelo Capitão Cavalo.
“O Feitiço da Ilha do Pavão” além de ser (mais uma) prova irrefutável do gênio criador de Ubaldo, estabelece uma conexão temática e, por que não dizer, estilística, com Jorge Amado, amigo e compadre do autor. Para quem leu Jorge, principalmente em sua fase pós Grabriela, a atmosfera mágica baiana, temperada de dendê, é reconhecida como um dos muitos elementos desse elo Ilhéus-Itaparica.
Em muitas entrevistas, o escritor afirmava sua devoção aos clássicos, sobretudo a Homero, santo maior de seu altar particular. Pois bem, fazendo da Bahia a sua Grécia, João Ubaldo Ribeiro não deve nada ao pai da “Ilíada”.