Darkpookie 14/03/2021
Comentários e trecho
Gould neste livro traça um histórico do determinismo biológico lido como científico durante muito tempo, as causas do porquê pesquisadores sérios acreditavam na validade dessa hipótese, e também um breve resumo das consequências sociais que essa teoria causou.
As duas principais causas das quais o autor parte para comentar os erros do determinismo biológico e do seu resultado em segregação/eugenia são: a reificação (tendência a converter conceitos abstratos em entidades) e a graduação (tendência a
ordenarmos a variação complexa em uma escala ascendente gradual). Leitura muito importante para conhecer diversas das estratégias usadas para justificar a inferiorização de grupos humanos (principalmente agrupados por características raciais, mas também sociais e de gênero), nestes casos por meio de falsas ciências.
Durante a leitura da obra percebi como a ciência não é imparcial, ainda que o método científico se proponha a ser, e como os próprios pesquisadores, mesmo que não intencionalmente, podem cair em falhas lógicas/estatísticas pautadas em preconceitos e opiniões anteriores. O Gould também apresenta o erro da circularidade argumentativa, ou seja, quando partimos de uma certeza e não de hipóteses, juntamos "evidências" (as vezes forjadas) para comprovar aquela certeza da qual partimos inicialmente, caindo em uma espiral.
A conclusão do livro é especialmente interessante, onde ele fala um pouco sobre a sociobiologia e suas teorias. Deixo a seguir um trecho da finalização:
"Creio que a biologia moderna proporciona um modelo equidistante entre a desalentadora tese de que a biologia não nos ensina nada sobre o comportamento humano e a teoria determinista de que a seleção natural programa geneticamente os comportamentos específicos. De minha parte, considero que a biologia pode contribuir em dois aspectos fundamentais:
1. As analogias fecundas. Grande parte do comportamento humano é, sem dúvida, adaptativa; se não o fosse, já não estaríamos aqui. Mas a adaptação, entre os humanos, não é um argumento apropriado e nem sequer bom em favor da influência genética. Pois nos seres humanos, como afirmei antes, a adaptação pode-se dar pela via alternativa da evolução cultural, não genética. Como a evolução cultural é muito mais rápida que a darwiniana, sua influência deve prevalecer na diversidade de comportamentos exibida pelos grupos humanos. Mas, ainda que um
comportamento adaptativo não seja genético, a analogia biológica poderia ser útil para interpretar seu significado. Com frequência, as exigências adaptativas são fortes, e certas funções veem-se às vezes obrigadas a seguir caminhos fixos, seja qual for o seu impulso subjacente, a aprendizagem ou a programação genética. [...] Nesse campo, os sociólogos incorreram com frequência em um dos erros de raciocínio mais comuns: descobrir uma analogia de inferir uma semelhança genética (neste caso, literalmente). As analogias são úteis, mas têm suas limitações; podem refletir condicionamentos comuns, mas não causas comuns.
2. Potencialidade biológica versus determinismo biológico. Os seres humanos são animais, e, em certo sentido, tudo o que fazemos é regido por nossa biologia. Algumas limitações biológicas estão a tal ponto integradas em nosso ser que raras vezes as reconhecemos, pois jamais imaginamos que a vida pudesse ser de outro modo. Pensemos na limitada variabilidade do tamanho médio do adulto, e nas consequências de vivermos no mundo gravitacional dos grandes organismos, e não no mundo de forças superficiais habitado pelos insetos. Ou no fato de nascermos indefesos (o mesmo não ocorre com muitos animais); de amadurecermos lentamente; de termos de dormir boa parte do dia; de não realizarmos a fotossíntese; de podermos digerir tanto carne quanto vegetais; de envelhecermos e morrermos. Todas essas características são resultado de nossa constituição genética, e todas exercem enorme influência sobre a natureza e a sociedade humanas.
Esse limites biológicos são tão evidentes que jamais provocaram controvérsia. Os temas controvertidos são comportamentos específicos que nos angustiam e que nos esforçamos penosamente por mudar (ou que nos proporcionam prazer e temos medo de abandonar); a agressividade, a xenofobia, a predominância masculina, por exemplo. Os sociobiólogos não são deterministas genéticos no velho sentido eugênico de postular a existência de genes únicos para condutas tão complexas. Todos os biólogos sabem que não existe um gene que “determina” a agressividade ou a posição do dente do ciso inferior esquerdo. Todos reconhecemos que a influência genética pode estar distribuída entre muitos genes, e que os genes fixam limites às possibilidades de variação; eles não estabelecem planos para a construção de réplicas exatas. Em certo sentido, o debate entre os sociobiólogos e seus críticos é uma polêmica sobre a amplitude da gama de variação possível. Para os sociobiólogos, a gama é suficientemente restrita para que seja possível prever a manifestação de um comportamento específico a partir da presença de certos genes. Os críticos respondem que a gama de variação desses fatores genéticos é suficientemente ampla para incluir todos os comportamentos que os sociobiólogos atomizam em diferentes características codificadas por genes separados.
Mas, em outro sentido, minha diferença com os sociobiólogos não se reduz a uma discussão quantitativa a respeito da amplitude das gamas. Ela não será resolvida amistosamente em algum ponto intermediário ideal, quando uma das partes admitirá mais restrição e a outra maior flexibilidade. Os defensores das gamas amplas ou estreitas não ocupam apenas posições
distintas de um continuum: apoiam duas teorias qualitativamente distintas sobre a natureza biológica do comportamento humano. Se as gamas são estreitas, então os genes codificam características específicas e a seleção natural pode criar e manter elementos individuais de conduta isoladamente. Se as gamas são amplas, então a seleção pode estabelecer algumas normas profundamente arraigadas; mas os comportamentos específicos são epifenômenos dessas normas, e não objetos de estudo darwiniano propriamente ditos.
Creio que os sociobiólogos cometeram um erro fundamental de categorias. Eles procuram a base genética do comportamento humano no nível errado. Procuram-na entre os produtos específicos das leis geradoras — a homossexualidade de Joe, o medo de estranhos de Marta —, quando as mesmas leis são as estruturas genéticas profundas do comportamento humano. Por exemplo, E. O. Wilson (1978, p. 99) escreve: “A agressividade dos seres humanos é inata? Essa pergunta, frequente nos seminários universitários e nas conversas mundanas, desperta paixões em todos os ideólogos políticos. A resposta a ela é afirmativa.” Como prova, Wilson cita a constância das guerras na história, e descarta qualquer exemplo de pouca inclinação para a luta: “As tribos mais pacíficas de hoje foram com frequência as mais destrutivas de ontem, e provavelmente voltarão a produzir soldados e assassinos no futuro.” Mas, se alguns povos são hoje pacíficos, então a própria agressividade não pode estar codificada em seus genes: só a sua potencialidade. Se inato significa apenas possível, ou mesmo provável em determinadas circunstâncias, então tudo o que fazemos é inato e a palavra carece de sentido. A agressividade é uma manifestação de uma lei geradora que, em outras circunstâncias, favorece a paz. A gama
de amplitude dos comportamentos específicos engendrados por essa lei é enorme e constitui um magnífico exemplo da flexibilidade típica do comportamento humano. Essa flexibilidade não deveria permanecer velada pelo erro terminológico que consiste em qualificar de “inatas” algumas manifestações da lei cujo aparecimento podemos predizer em determinadas circunstâncias.
Os sociobiólogos atuam como se Galileu houvesse subido ao alto da Torre Inclinada (aparentemente, não o fez), para lançar um conjunto de objetos diferentes em busca de uma explicação em separado para cada comportamento: a violenta queda da bala de canhão como resultado da “baladecanhonidade”; a suave descida de uma pluma como algo intrínseco à “plumidade". Mas sabemos que a ampla gama de comportamentos dos corpos que caem é explicada pela interação entre duas leis físicas: a gravidade e o atrito. Esta interação pode gerar mil formas diferentes de queda. Se nos concentramos em cada objeto, e procuramos uma explicação específica de seu comportamento, estamos perdidos. A busca da base genética da natureza humana nos comportamentos específicos é um exemplo de determinismo biológico. A procura de leis geradoras subjacentes expressa o conceito de potencialidade biológica. O problema não se coloca em termos de natureza biológica contra o adquirido não biológico. Tanto o determinismo quanto a potencialidade são teorias biológicas -, mas buscam a base genética da natureza humana em níveis essencialmente diferentes.
Prosseguindo com a analogia galileana: se a atividade das balas de canhão é determinada pela “baladecanhonidade”, e a das plumas pela “plumidade”, então pouco podemos fazer além de engendrar uma história sobre o significado adaptativo de ambas as características. Nunca nos ocorrerá realizar a experiência histórica decisiva: igualar o ambiente colocando a bala e a pluma no vácuo, e observar um comportamento idêntico em ambas as quedas. Este exemplo hipotético ilustra o papel social do determinismo biológico que é, fundamentalmente, uma teoria dos limites. Interpreta a gama habitual no ambiente moderno como a expressão de uma programação genética direta, e não como a manifestação limitada de um potencial muito mais amplo. Se a pluma atua por “plumidade”, não poderemos mudar seu comportamento enquanto continuar sendo uma pluma. Se seu comportamento é a expressão de leis amplas vinculadas a circunstâncias específicas, podemos prever uma ampla gama de comportamentos em ambientes distintos.
Por que são tão amplas as gamas do comportamento, quando são tão restritas as anatômicas? Nossa defesa da flexibilidade do comportamento é apenas uma esperança social, ou está respaldada pela biologia? Dois argumentos distintos levam-me a concluir que as gamas amplas de comportamento deveriam ser consequência da evolução e da organização estrutural de nosso cérebro. Pensemos, primeiramente, nas prováveis razões adaptativas que determinaram a evolução de um cérebro tão grande. O caráter único do homem está na flexibilidade com que pode atuar nosso cérebro. O que é a inteligência senão a aptidão de resolver problemas de um modo não programado ou, como se costuma dizer, criativo? Se a inteligência nos outorga um lugar especial entre os organismos, parece-me provável que a seleção natural tenha atuado para maximizar a flexibilidade de nosso comportamento. O que seria melhor, do ponto de vista da adaptação, para um animal que pensa e aprende: a seleção de genes específicos da agressividade, do ódio e da xenofobia, ou de leis de aprendizagem capazes de gerar um comportamento agressivo em determinadas circunstâncias e um comportamento pacífico em outras?
Em segundo lugar, devemos ser cautelosos quando outorgamos demasiado poder à seleção natural e interpretamos todas as capacidades básicas de nosso cérebro como adaptações diretas. Não tenho dúvidas de que a seleção natural tenha exercido sua ação no que se refere à construção de nossos cérebros de grande tamanho; confio igualmente em que nossos cérebros se avolumaram para se adaptarem a determinadas funções (provavelmente um conjunto complexo de funções inter atuantes). Mas estas suposições não levam à noção muitas vezes defendida dogmaticamente pelos darwinistas estritos de que todas as capacidades principais do cérebro devem ser produtos diretos da seleção natural. Nossos cérebros são computadores imensamente complexos. Se instalo um computador muito mais simples para realizar a contabilidade de uma fábrica, esse computador também pode realizar muitas outras tarefas, muito mais complexas, não relacionadas com a função original. Essas capacidades adicionais são consequências inevitáveis do seu projeto estrutural, e não adaptações diretas. Nossos computadores orgânicos, muitíssimo mais complexos, foram também construídos para fins específicos, mas possuem uma tremenda reserva de capacidades adicionais, entre as quais está. suspeito, a maior parte das que nos caracterizam seres humanos. Nossos antepassados não liam nem escreviam, nem se perguntavam por que a maioria das estrelas não muda de posição relativa enquanto que cinco pontos luminosos erráticos e dois discos maiores deslocam-se ao longo de uma zona que hoje denominamos Zodíaco. Não é necessário que vejamos Bach como um afortunado efeito secundário do papel da música como elemento favorável à coesão tribal, nem Shakespeare como uma afortunada consequência do papel do mito e da narrativa épica na manutenção dos grupos de caçadores. A maioria das “características” do comportamento que os sociobiólogos tentam explicar talvez nunca tenha sido submetida à ação direta da seleção natural; pode exibir, portanto, uma flexibilidade que as características indispensáveis para a sobrevivência nunca apresentam. Podem mesmo ser chamadas de “características” essas complexas consequências do nosso projeto estrutural? Esta tendência a atomizar um repertório de comportamentos, a convertê-lo em um conjunto de “coisas”, não é mais um exemplo da mesma falácia de reificação que infestou os estudos sobre a inteligência durante todo o nosso século?"