Bruno.Dellatorre 11/08/2020Um comentário sociopolíticoQuase todos citam esse livro como o pior da Agatha Christie, e como eu gosto muito dela, sempre desconfiei disso. Nunca achei que ela pudesse ter escrito um livro que fosse ruim.
No entanto, eu sempre soube que, em algum momento, eu teria de ler esse livro, visto que Agatha é minha escritora preferida e eu quero ler todos os livros dela. Por isso comprei esse livro e li. E foi um dos livros dela que mais gostei.
Li 26 livros dela ao todo e gostei de todos até aqui. Não teve um sequer que eu avaliei com menos de 3 estrelas. Gosto do estilo de escrita dela, que é envolvente, misterioso, com doses sarcásticas. O estilo dela, a propósito, é a única coisa presente nesse livro. Todos os outros detalhes característicos da obra da Agatha não podem ser encontrados aqui. Não há Poirot ou Miss Marple. Não há um assassinato a ser investigado. Há quem diga que essa seja uma história de espionagem, mas até isso me parece um pouco disparatado.
Ao meu ver, Passageiro para Frankfurt é um comentário sociopolítico.
A própria autora diz, na introdução, que o livro é uma fantasia e não pretende ser nada além disso. No entanto, ela aponta que alguns acontecimentos do livro se já não aconteciam, pretendem acontecer nos dias de hoje. E ela está assustadoramente certa. O livro tem diversos excertos que expõe pensamentos da autora a respeito do futuro do mundo e dos jovens que irão guia-lo. Vejamos, através de alguns trechos que eu marquei, o que ela pensa a respeito:
(Coloque pessoas suficientes juntas e elas vão parecer tão dolorosamente iguais que mal se pode suportar)
(Eles recrutaram um exército particular e o perigo em torno disso é que é um exército de jovens. E é o tipo de gente que se dispõe a ir para qualquer lugar, a fazer qualquer coisa, a infelizmente acreditar em tudo, e, contanto que lhes prometam uma certa quantidade de derrubadas, de demolição, de sabotagem das engrenagens, aí eles pensam que a causa só pode ser boa e que o mundo será um lugar diferente. Eles não são criativos, esse é o problema... são apenas destrutivos. Os jovens criativos escrevem poemas, escrevem livros, provavelmente compõe música e pintam quadros como sempre fizeram. Eles vão ficar bem... Mas uma vez que as pessoas aprendem a gostar da destruição pela destruição em si, aí a liderança maligna obtém a sua oportunidade)
(A juventude é o que você pode denominar como a ponta de lança de tudo. Mas não é isso o que é tão preocupante. Eles... quem quer que sejam eles... trabalham através da juventude. Da juventude de todos os países. A juventude INCITADA. A juventude cantando suas palavras de ordem, palavras de ordem que soam como emocionantes embora eles nem sempre saibam o que querem dizer. É tão fácil começar uma revolução. É algo natural aos olhos da juventude. Todos os jovens sempre se rebelaram. Você se rebela, você sai por aí derrubando tudo, você quer que o mundo seja diferente do que é. Mas você também está cego. Existem vendas nos olhos dos jovens. Eles não conseguem ver para onde estão sendo levados pela situação. O que virá depois? O que há na frente deles? E quem está por trás deles, os incitando? Isso é o que é assustador nessa questão. Você sabe, tem alguém que vai mostrando a cenoura para fazer o burro avançar e ao mesmo tempo tem alguém por trás incitando o burro com uma vara)
A descrição acima pode muito bem definir a juventude atual. Mas não são todos que irão concordar com tal trecho, vai depender muito da sua visão de mundo. Por isso é um livro tão polêmico. Além de descartar a fórmula convencional (e maravilhosa) da Agatha, ainda é um livro que faz comentários políticos, e é impossível agradar todo mundo quando se fala de política.
Outra frase importante dita por ela é:
(Todos os tipos de coisas podem causar uma rebelião, um desejo de liberdade, liberdade de expressão, liberdade de culto religioso, outra vez uma série de padrões proximamente relacionados [...] Mas em tudo isso, se você olhar com atenção suficiente, se você fizer investigações suficientes, você poderá ver o que foi que deflagrou a origem desses e de muitos outros... vou usar a mesma palavra... padrões. De certo modo é como uma doença viral. O vírus pode ser levado pelo mundo inteiro, atravessando mares, subindo montanhas. Pode avançar e infectar)
(As visões podem abrir novos mundos... e as visões também podem destruir os mundos que já existem).
Existem muitas outras reflexões, mas as deixarei de lado para comentar um pouco a minha única ressalva com relação ao livro: a história. O desenlace do enredo, ao meu ver, ficou ótimo, mas faltou uma coisinha apenas. Eu queria ver a organização agindo. Senti falta de um capítulo demonstrando a tal anarquia criada pelos jovens tão temidos durante todo o livro.
Ao final do livro, ficamos sabendo que o projeto Benvo será realizado, mas não vemos ele sendo posto em prática. Sabemos que Stafford Nye e a mulher misteriosa de vários nomes irão se casar. No entanto, o casamento em si não acontece, o livro acaba antes disso. Eu imagino que a história não termina por aí.
Restaram muitas dúvidas, muitos detalhes que ficaram em aberto. Eu queria que ela tivesse continuado a partir daí, mas como ela não o fez, aqui vão as minhas teorias de como essa história realmente se encerraria:
Acho que Mary Ann – ou Renata, ou Daphne, tanto faz – faz parte da organização, como foi apontado em algum momento. Ela provavelmente iria se casar com Stafford para usá-lo. O projeto Benvo demoraria a ser concretizado outra vez, até lá a organização poderia aprontar muito mais.
No entanto, ainda restam detalhes que precisam ser esclarecidos: quem foi que tentou atropelar Stafford Nye DUAS VEZES? E quem é que entrou no quarto dele no início do livro se passando por um homem da lavanderia? Tem muita coisa que não ficou esclarecida ainda.
De qualquer forma, essa é uma história que ainda não terminou...