Os encontos de um caracol aventureiro

Os encontos de um caracol aventureiro Federico García Lorca




Resenhas - Os encontos de um caracol aventureiro


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Eduardo 17/11/2009

Encontro om a poesia
Tem livro que dá vergonha de resenhar. Começamos a falar dele com receio, sentindo a impressão de que não conseguiremos traduzir num texto breve e limitado, toda a grandeza da obra. É com esse sentimento que escrevo sobre "Os encontros de um caracol aventureiro e outros poemas de Federico García Lorca". Que livro maravilhoso!
O livro é composto por sete poemas. 5 pequenos e 2 maiores. A edição é muito boaº - grande parte do mérito se deve às ilustrações de Odilon Moraes que permeiam todo o livro. Outra boa escolha foi a de colocar os poemas no original espanhol, ao fim do livro, para suscitar a curiosidade dos leitores.
A tradução é do poeta José Paulo Paes¹, um dos mais sensíveis e inteligentes poetas brasileiros - escreveu poesia adulta e adultantil.
Quanto aos poemas, são muito lindos. O mais longo, presente no título do livro, é - sem dúvida - o mais belo texto do livro. A história de um caracol, habitante da vereda, que decide, numa manhã quieta, adentrar no mato para chegar ao final da senda. Pode-se dizer que o poema trata-se de uma narrativa (cheia de poesia). E a cada encontro do caracol com outros bichos, surgem mais um (dois, três...quatro...) poema(s), como se existissem vários poemas dentro de um só poema.
Sinto que não estou sendo claro. Por isso, boto aqui um trecho do poema, em que o caracol encontra um bando de formigas arrastando, sem piedade, uma companheira ferida. Então o caracol questiona o porquê daquilo. Eis a resposta:

A formiga, meio morta,
diz com muita tristeza:
"Eu avistei as estrelas"
"Mas que são estrelas?", diziam
as formiguinhas inquietas.
E o caracol pergunta
pensativo: "estrela?"
"Sim - continua a formiga -,
avistei as estrelas,
subi à mais alta árvore
que existe na alameda
e vi milhares de olhos
dentro das minhas trevas"

Enfim, esse trecho se estende, e a vontade de botar ele na íntegra é imensa. Mas só esse pedaço serve para ilustrar o que eu queria dizer: nos diálogos dessa narrativa, desse grande poema, vão surgindo outros poemas, resultando num texto maravilhoso.
Todo encontro do caracol lhe traz novas ideias e ele vai refletindo sobre sua busca (o fim... as estrelas... uma busca pelo eterno, pelo infinito... e ele começa a achar tudo tão longe... e ele se acha tão lerdo...). Desanimado, sob um sol fraco e uma neblina fina que deixam o céu brumoso, o caracol - "burguês pacífico da senda, aturdido e inquieto, contempla a paisagem". Assim termina o poema. Nas reflexões do caracol, estão presentes sentimentos dolorosos como o tédio e a angústia. Trazer isso para as crianças, de uma forma tão bela, é uma proeza de Lorca.
O outro grande (tanto em tamanho, quanto em qualidade) poema do livro é muito diverso desse último. Chama-se "Cena do tenente-coronel da guarda civil". Aqui, Lorca escreve de fato uma cena, aos moldes de um texto teatral (destaque para as marcações de cena recheadas de poesia). Na cena, o tenente-coronel aparecendo exercendo seu poder hierárquico sobre o sargento. O tenente-coronel é presunçoso e irritadiço. O sargento apenas assente a tudo o que o tenente-coronel diz.
Essa cena traz nitidamente uma crítica ao regime fascista que, comandado por Franco, assolou a Espanha, a terra de Lorca. Em dado momento, entra em cena um cigano (povo pelo qual Lorca era apaixonado) a cantar. O tenente-coronel, irritado, exije ao sargento a presença do cantor. No encontro, dois mundos opostos: o cigano alegre e despreocupado e o militar nervoso e ridículo. Às perguntas ríspidas dirigidas pelo militar, o cigano responde cheio, tranquilo, com muita poesia. Com as respostas simples e poéticas do cigano, a raiva do militar aumenta cada vez mais, até que o velho cai duro no chão. Aqui, o cigano representa a poesia e o militar, o poder ditatorial. Uma metáfora para dizer que a poesia vence toda a maldade, a covardia e a ignorância, pois é eterna. O cigano não deixa de cantar nem mesmo quando apanha dos outros soldados. Porque é um poeta como Lorca, que nunca deixou de cantar. E foi morto por isso (Lorca foi fuzilado em 1936 por para-militares fascistas - não exatamente a mando de Franco).
Sobre as ilustrações, Odilon Moraes faz um trabalho excepcional. No primeiro poema - o do caramujo - a ilustração é uma graça, com cenas belíssímas da natureza, onde predominam o verde e o roxo. No poema "Cena do tenente-general da guarda civil", o militar é desenhado com toda a sua "altura" (mas é magro, feio e velho) e com todas as estrelas e cruzes de que se gaba. Já o cigano é vivo, com seu brinco, seu violão e sua rosa. Com seu sorriso sempre aberto, o cigano é a própria rosa.
Outra beleza de ilustração estão nos poemas "Meia lua" e "Búzios":

MEIA LUA

Anda a lua pela água
Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o velho tremor do rio
enquanto um ramo inda jovem
a toma por espelhinho.

BÚZIOS
(a Natalita Jiménez)

Me trouxeram um búzio.

Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração se enche de água
com peixinhos
de sombra e prata.

Me trouxeram um búzio.


Como são poemas curtos, eles estão lado a lado, um na página esquerda e outro na direita. E Moraes, fazendo poesia, faz apenas uma ilustração onde o mar e o rio estão juntos. Onde o reflexo da lua, a sombra do ramo e os peixes de sombra e prata dividem a mesma água.² A mesma ideia - uma ilustração única para dois poemas - também acompanha os poemas "Canção boba" (que de boba não tem nada, ao falar dos desejos de um filho ofuscado pelo senso de proteção de uma mãe) e "É verdade".
Vergonha de resenhar eu até perco. Mas ainda assim é difícil. Há muito do que falar: do poeta que escreveu, do poeta que traduziu e do poeta que ilustrou.³ Posso dizer que é um livro sensível para onde quer que se olhe. Um encontro com a poesia. Uma aventura: enveredar pelas palavras. Recomendo a leitura a todos.

Notas:

º LORCA, Federico García. As aventuras de um caracol aventureiro e outros poemas. (Trad. de José Paulo Paes). São Paulo: Ed. Ática, 2002.

¹ Paes se mostra cuidadoso logo no prefácio. Ao falar do mais conhecido livro de Lorca - Romancero Gitano - ele traduz o título para Romanceiro cigano. (Manter a palavra gitano, exigiria uma explicação - não curta - sobre esse povo originário da Andaluzia. E num livro de poemas infantis, o prefácio deve ser um convite, não muito longo. Afinal, o que importa são os poemas.

² Reparem como Moraes foi sagaz, afinal esses dois poemas tem imagens que casam muito bem: numa, peixes de sombra e prata e, na outra, a sombra do ramo e lua (que tem cor de... prata)

³ Aqui cabe a observação de que, obviamente, cada um é poeta ao seu modo, e o meu comentário é figurado. Lorca é o criador original dos textos. Paes traduziu (e traduzir é também um ato criativo) e Odilon fez poesia, mas com cores, ao ilustrar os textos de Lorca.



comentários(0)comente

Assis Editora 26/12/2009minha estante
Menino, nem precisa ser bom leitor para perceber sua paixão pela obra de García Lorca, mas sem confundir amor e conhecimento, você merece os parabéns por explanar tão bem sobre a obra. Também sou fã do Lorca.




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