João Ks 21/02/2019
Contos Completos - Liev Tolstói
Linguagem clara, simples, escorreita e rica. Cenários em detalhes. Expressividade do mundo natural o dos sentimentos humanos magistralmente reduzidos a termo. Idiossincrasias do povo russo. Reflexões de cunho filosófico conectadas oportunamente à trama quando a narrativa assim exige.
Tudo isso é Tolstói.
E nessa coletânea de contos a beleza e o estilo do escritor russo, marcantes em seus romances, também se faz presente.
Nos três volumes foram exploradas diversas formas literárias: contos, fábulas, relatos, memórias etc. Também no conteúdo são experimentadas diferentes atmosferas, sobretudo as que envolvem as incursões militares na Crimeia e no Cáucaso, bem como a dinâmica social dos camponeses russos (mujiques).
Cossacos, hussardos, soldados, ciganos, mujiques, príncipes, velhos e crianças estão entre os personagens que colorem o universo de Tolstói.
No primeiro volume, encontramos quatorze contos acerca dos quais se podem tecer algumas sinopses. Ei-las.
“A incursão”
Um jovem voluntário se junta às tropas russas que farão uma investida militar (incursão) contra os montanheses do Cáucaso. A ordem dos acontecimentos vai sendo narrada em primeira pessoa pelo jovem. Desde sua admiração pelo ascetismo e pela simplicidade de caráter do capitão Khlópov até a descrição da batalha contra os montanheses, o jovem voluntário vai transmitindo as impressões do seu ponto de vista de simples observador, o qual não chega a tomar parte no combate. O conto foi baseado em um fato real que teve, inclusive, a participação de Tolstói.
“Memórias de um marcador de pontos de bilhar”
O conto se passa quase por inteiro no ambiente de uma taverna. Lá trabalha um humilde marcador de pontos de bilhar. É através de sua voz que a história vai sendo narrada. Tudo começa quando um homem tímido e bem-apessoado entra na taverna. Não demora, e logo o tiram para uma partida de bilhar. De início, meio a contragosto, aceita jogar mediante aposta. Os veteranos da taberna ardilosamente vão conseguindo inspirar no jovem recém-chegado o gosto pelo jogo e pelas apostas. De início ingênuo e acabrunhado, o jovem vai pouco a pouco se perdendo na jogatina. Descobre-se que, sendo de origem aristocrática, o jovem está a acumular incontáveis dívidas, todas contraídas na taverna. Nem por isso abandona o vício, e anda a implorar por novas partidas com seus credores (“só mais uma, tudo ou nada!”). É assim que um jovem aristocrata de futuro promissor encontra seu declínio nos vícios da taverna. O seu fim trágico, como é de se supor, são favas contadas. “Que criação incompreensível é o homem!”.
“A derrubada da floresta”
Em mais este conto ambientado nas paragens do Cáucaso, o tema da guerra ganha novamente espaço na narrativa de Tolstói. Um destacamento militar é incumbido de realizar expedição para obtenção de lenha através da derrubada de uma floresta. A missão é cumprida, não sem perdas, já que os belicosos tártaros oferecem resistência à incursão dos russos. Sobressaem neste conto os diálogos entre alguns oficiais que revelam suas impressões sobre a carreira militar e a influência que os perigos da guerra e a ameaça da morte iminente exerce sobre o seu espírito.
“Sebastopol no mês de dezembro”
Sebastopol é uma cidade na região da Crimeia, atualmente sob a administração da Federação Russa. Ao longo da história, Sebastopol foi palco de importantes batalhas militares em razão de constituir um ponto geograficamente estratégico na condição de cidade portuária. Destaca-se na história das guerras o chamado “Cerco de Sebastopol” (1854-1855), que marca a derrota russa para as forças aliadas na Guerra da Crimeia. A propósito, o conto “Sebastopol em dezembro” está inserido nesse exato contexto da Guerra da Crimeia. Tolstói empreende um relato ficcional inspirado em eventos reais que traduz bem o “jogo de vida ou morte” encontrado na guerra. O autor elabora a narrativa em segunda pessoa. Nela é possível sentir o horror, o sofrimento e a ameaça iminente de morte que a guerra inspira no espírito humano. Por outro lado, Tolstói, um tanto ufanista, destaca a “simplicidade” e a “perseverança” do povo russo, que, segundo ele, engrandeceram o espírito dos defensores de Sebastopol, atribuindo-lhes ares de heroísmo.
“Sebastopol em maio”
“Das duas, uma: ou a guerra é uma loucura, ou, se as pessoas praticam tal loucura, não são absolutamente criaturas racionais, como nos habituamos a pensar, sabe-se lá por quê”. Nesse conto Tolstói, ainda que abandone a narrativa em segunda pessoa, dá continuidade ao relato inaugurado no conto anterior, descrevendo com brilhantismo os sentimentos ambíguos que irrompem nas pessoas envolvidas na guerra. Nesse aspecto, é notável a ambiguidade do comportamento humano quando deparado com um ambiente tão extremo quanto aquele desenhado pela guerra: em permanente tensão estão a coragem e a covardia, o medo e o destemor, a honra e a indignidade, o ódio e a piedade, a vida e a morte. A um só tempo, o soldado é herói e vil: “Eu gosto quando chamam de monstro um conquistador, que destrói milhões de vidas para satisfazer sua ambição. Mas interrogue a fundo o sargento Petrúchov, o subtenente Antónov etc., cada um deles um pequeno Napoleão, um pequeno monstro, sempre pronto a travar batalha, a matar centenas de homens só para ganhar uma medalhinha fútil ou um terço adicional no soldo”.
“Sebastopol em agosto de 1855”
Nesse conto, Tolstói dá sequência à narrativa do “Cerco de Sebastopol”. Explora, porém, novos personagens. Desde o início, destacam-se as figuras dos irmãos Koziéltsov, que, em dada altura da história, encontram-se por acaso numa estalagem à beira da estrada, ambos à caminho de Sebastopol para se juntar às forças russas. Tolstói consegue incutir no leitor empatia pelos irmãos Koziétsov, destacando neles o traço da ternura e do carisma. Ao proporcionar essa proximidade com tais personagens - nos limites que a dimensão de um conto possa permitir - o escritor russo logra despertar no leitor maior sensibilidade para os horrores da guerra, eis que agora os personagens nela envolvidos guardam uma relação de afetuosa familiaridade com o leitor.
“A nevasca”
Narrado em primeira pessoa, o conto é ambientado na região do Rio Don (povoada pelos Cossacos), um dos principais rios da Rússia. A história é contada do ponto de vista de um nobre russo, que, encontrando-se numa estação desconhecida na região do rio Don, conta com os serviços de um cocheiro para ser transportado até o seu destino numa outra estação a alguns quilômetros (verstas) dali. Embarca assim num trenó puxado por uma troica rumo à estação de destino. Contudo, a forte nevasca dificulta a viagem, fazendo com que os viajantes hesitem em dar continuidade a ela. Voltam à estação primeira. Depois, diante da melhora do tempo, retomam o caminho. Entre idas e vindas, a nevasca não cessa de todo. Então, com o agravamento do mau tempo a estrada fica encoberta pela neve. Os viajantes perdem o rumo. A certa altura, são tomados pelo medo de não chegarem à estação de destino, e, pior, morrerem congelados em meio àquelas paragens inóspitas e desoladas. Se chegarão são e salvos ao destino ou se morrerão ao deus-dará é algo que o conto reservará para o final.
“Dois hussardos”
Hussardos foram membros da cavalaria ligeira de alguns países europeus. Essa classe de guerreiros integrou o exército da Sérvia e da Croácia. Notabilizou-se mais tarde no exército da Hungria. Foi também uma importante classe militar no exército russo. Os hussardos tornaram-se célebres por serem cavaleiros valentes e até um tanto indisciplinados e farristas. Nesse conto, Tolstói narra a passagem do hussardo Conde Turbin por uma província russa onde ocorreria uma eleição do representante da nobreza. A fama do jovem Conde Turbin (o hussardo) o precedia, pois era célebre por ser muito valente, bonachão, simpático, exímio dançador e jogador de carteado. Porém, sua figura também inspirava alguns receios: era famoso por se envolver em duelos, brigas e até no rapto de uma jovem dama. Mas esses receios são dissipados logo que chega ao hotel da província onde ocorre a eleição da nobreza, eis que se mostra bastante carismático e querido por todos. Na noite da eleição, com festas e danças, o Conde Turbin trava relação com uma nobre jovem viúva, com quem se deita naquela noite. No dia seguinte, após uma noite de farra e muita animação, o Conde Turbin (o hussardo) vai embora da província. A essa altura, ocorre uma quebra da narrativa, isto é, a trama é retomada a partir do seu futuro: teriam se passados 20 anos e descobrimos que o Conde Turbin, nesse meio tempo, morrera durante um duelo. O fio da narrativa é retomado, então, com a presença do segundo hussardo, que descobrimos ser filho do Conde Turbin. O jovem hussardo, tal como o pai, enveredara na carreira militar e guardava algumas das nobres qualidades de seu pai (simpatia, beleza etc.). Nessa segunda parte da narrativa, é contada a história de sua passagem por outra província russa, onde coincidentemente reside aquela viúva com quem o hussardo-pai havia passado uma noite agradável há 20 anos. O hussardo-filho acaba assim por conhecer a viúva, de modo que ela pode ser vista como o pivô a unir as histórias dos dois hussardos.
“Das memórias do Cáucaso”
Um oficial da alta sociedade se encontra numa expedição militar pelo Cáucaso. Lá depara com um jovem soldado, de aparência penosa e insegura, cuja identidade anseia descobrir. Trava conhecimento com o soldado e descobre se tratar de um jovem proveniente da alta sociedade Peterburguesa, mas que, em função de fatos acontecidos no passado, acabara preso, e, por fim, recrutado como soldado raso no Cáucaso. À medida em que vai sendo revelada, a história do soldado raso inspira pena mas sobretudo repugnância em relação ao seu caráter. As expressões de coitadismo, covardia e petulância nele encontradas são capazes de causar ojeriza a quem o observa.
“Manhã de um senhor de terras”
Não há como ler esse conto sem ver em seu protagonista um pouco do próprio Tolstói. Sabe-se que Tolstói nutria o franco desejo de se assentar na zona rural, onde pudesse levar a cabo um projeto de educação e desenvolvimento moral dos mujiques. Possuía planos de aperfeiçoar as atividades agrícolas e proporcionar a melhora das condições gerais de vida dos camponeses. Assim é que o protagonista da história, o príncipe Nekhliúdov, abandona ainda jovem a sua sofisticada vida em Moscou, suspendendo inclusive o seu curso universitário, a fim de viver em sua propriedade rural, dedicando-se a melhorar as condições de trabalho e de vida dos seus mujiques. Contudo, logo depara com o sentimento de frustração, tamanha são as adversidades que se opõem à consolidação do seu projeto de vida. Camponeses frequentemente rudes, ignorantes, supersticiosos, desconfiados, apáticos e desonestos são o material humano com o qual o senhor de terras deverá lidar.
“Das memórias do Príncipe D. Nekhliúdov”
Nesse conto, o Príncipe Nekhliúdov relata como foi sua estadia em Lucerna (cidade na Suíça). Descreve as maravilhas da paisagem natural que cercam a cidade turística de Lucerna, para a qual afluem os ricos e pomposos turistas de toda a Europa. Em contraste com a opulência da cidade e seus nobres visitantes, encontra-se um mendigo, cantor tirolês itinerante, a cantarolar em frente ao hotel da cidade onde se hospedam representantes da alta sociedade europeia. O cantor andarilho agrada a todos com suas músicas tirolesas. Porém, não logra obter sequer um centavo como esmola, e, de saída, ainda é alvo de escárnio e aviltamento por parte dos senhores e senhoras ricas que há pouco se deleitavam com a música do humilde artista. Essa cena desperta no protagonista (Príncipe Nekhliúdov) um acentuado sentimento de indignação e forte desejo de promover justiça social. Ao final, é tomado por um profundo pensamento acerca da natureza humana: “Só para você, verme insignificante, que de modo estabanado e sem lei tenta penetrar nas leis dele [Criador], só para você parece haver contradições. Das alturas luminosas e imensuráveis, ele olha com doçura e se alegra com a harmonia infinita na qual vocês todos se movimentam infinitamente e em contradição”.
“Albert”
Em “Albert” conhecemos o personagem que dá nome ao conto. Trata-se de um músico violinista de notável talento, mas que vive paupérrimo e entregue ao álcool. Um jovem aristocrata chamado Diélessov se afeiçoa pela figura do músico e propõe a ele que passe a se hospedar em sua casa, com o franco propósito de estreitar os laços com o músico, ajudando-o a alcançar melhores condições de vida. Mas logo se dá conta de que o músico guarda uma profunda tristeza dentro de si, motivada talvez por um amor frustrado, responsável pela decadência do músico e por seu apego ao álcool.
“Três mortes”
A morte nivela todos os seres vivos. Seja uma rica madame da alta sociedade, ou um pobre cocheiro, ou, ainda, uma simples árvore, mais dia menos dia todos sucumbem. Os viventes não guardam distinções na morte. Ela tudo nivela! É assim que nesse conto uma dama, um cocheiro e uma árvore aparecem como que conectados pelo destino comum: a morte.
“Polikuchka”
O conto “Polikuchka” é ambientado num vilarejo de camponeses russos (mujiques), que estão vinculados pelo regime de servidão a uma senhora de terras. A narrativa é construída em torno da questão do serviço militar obrigatório que vigorava no regime tsarista, quando, então, cada vilarejo sob o domínio do senhor de terras deveria indicar três jovens para serem recrutados pelo Exército russo. Os diálogos se desenvolvem em torno dos critérios de escolha dos recrutas através de discussões calorosas. Desponta também na narrativa uma abordagem acerca da avareza e da desonestidade, vícios capazes de estigmatizar a imagem de quem os pratica, contaminando inclusive os destinos de toda a família.
A edição do ano de 2015 da editora Cosac Naify é um primor artístico. A encadernação e algumas folhas entremeadas no livro são estampadas com as primeiras fotografias coloridas realizadas no século XX que retrataram o mosaico sociocultural representativo do povo russo.
Boas leituras!