Andréa Bistafa 07/06/2016http://www.fundofalso.comPamela é um clássico da literatura inglesa, publicado pela primeira vez em 1740. Foi um dos primeiros romances focados mais no caráter do que na aventura, ou seja, trás uma quantidade significativa de costumes e hábitos do século XVII (dezoito).
Quem espera encontrar um romance mais doce se decepcionará um pouco. A trama é bem pesada, precisa ser digerida lentamente, principalmente para nós mulheres, que lutamos diariamente pelo nosso espaço.
Escrito em formato epistolar (cartas), trás um arranjo de tudo que a protagonista Pamela escreveu durante a sua experiencia "romântica". Antes de falar sobre a trama, vamos entender o contexto.
Escrito por um homem (Samuel Richardson), exprime com naturalidade abusos que hoje consideramos terríveis, mas que no século dezoito, eram tratados com naturalidade. A principal é a forma como se oprimiam as mulheres e a pessoas de classe baixa. Para as famílias abastadas, era inaceitável a união dos homens/mulheres de título com trabalhadores.
Pamela tem sua origem muito pobre, e ainda criança é acolhida por uma senhora nobre, que a educa e sustenta com boas coisas. A primeira carta de introdução de Pamela é dirigida a seus pais, notificando os mesmos sobre o falecimento de sua Senhora.
Após essa perda a menina que então tem 15 anos, fica sem saber qual será seu destino, e se alegra ao descobrir que o filho de sua Senhora a manterá na casa e continuará a sustentando. O rapaz tem 23 anos (se não me engano, aproximadamente) e acaba desenvolvendo uma paixão pela menina.
A coisa mais importante, talvez a única, que uma mulher pobre tinha naquela época era sua virtude. Ceder aos encantos de um rapaz antes do casamento levaria a mulher a total ruína. Ruína de verdade, não romantizada como vemos nos romances de época contemporâneos. Sendo assim, Pamela não sede aos encantos do patrão.
Acontece que os libertinos da época também pouco se parecem com os atuais romantizados.
Nota: O protagonista, patrão de Pamela, é tratado durante toda a obra como Mr. B--, sem nome. Pesquisadores acreditam que o seu verdadeiro nome era Mr. Brandon, e o autor pretendia preservar o nome desse alguém da não ficção. O autor era tipógrafo, escrevia cartas para pessoas incapazes de escreve-las, e assim, criou o romance Pamela combinando cartas que haviam lhe despertado interesse. Portanto podemos acreditar que parte dessa trama é verossímil.
Libertino, Mr B, planeja um sequestro para obrigar Pamela a ter relações com ele, saciando assim seu desejo reprimido. Leva-a para uma propriedade afastada e pratica inúmeras maldades com a garota.
Vamos notar que uma atitude dessa era completamente normal na época. A "carcereira" da garota, que a seguia dia e noite (dormia na mesma cama inclusive) era uma mulher, e chega a segurar Pamela para que seu Senhor tente estupra-la. Todos os subordinados são coniventes com os abusos, ninguém faz nada para ajuda-la, e os poucos que tentam são castigados.
Em meio a inúmeras cartas, Pamela vai relatando todas essas atrocidades aos pais, mesmo que nunca envie as mesmas.
Com muita bravura, ela não chega a ser violada, sofre de inúmeros desmaios e aflições. Por ai vemos que grande parte das mulheres da época eram de fato subjugadas, menosprezadas e, pelo menos nessa obra, não vemos nenhuma valente de verdade, feminista ou durona como nas obras de época escritas hoje em dia. Pamela tinha uma saúde debilitada, mesmo no auge da juventude desmaiava sempre que acuada, chegava a responder malcriadamente, mas logo se desculpava já que sua criação submissa regia a maioria de seus atos.
Mas a grande reviravolta do livro está justamente quando Pamela passa a amar Mr B, e você se pergunta como isso pode ser possível! Após muitos percalços Mr B adoece seriamente e desperta na garota o amor que ela não havia sentido antes. A partir dai, seu patrãozinho muda completamente o tratamento à ela, vendo que ela MERECE, pois mesmo com todo o terror psicológico não entregou sua virgindade. Dai o subtitulo (machista) do livro: A Virtude Recompensada. Recompensada pois, um nobre fará de tudo contra a sociedade e a família (uma irmã monstruosa) para casar-se com uma simples serviçal.
"Por que deveria tremer o inocente assim, quando o culpado tem sua mente em paz?"
É muito difícil falar dessa obra, é complexa demais. Senti nojo, repulsa, raiva, passei a gostar e compreender os personagens (quando me ambientei na época) e terminei com um misto de satisfação e revolta com a obra. Me acrescentou uma carreta de conhecimento. Podemos até citar "a cultura do estupro" e com certeza a "culpabilização da vítima".
Outra personagem marcante é a irmã de Mr B, Lady Davers, que tem uma cabeça que, por incrível que pareça, próxima a de muitas mulheres da atualidade, as que dizem "Tudo Puta" sabe?
"Porque não sei como veio, nem quando começou, mas rastejou, rastejou como um ladrão sobre mim; e antes que eu soubesse o que estava acontecendo, parecia amor."
Pelo tanto de complexidade da obra, não posso deixar de refletir no seguinte: tudo que lemos são cartas escritas por Pamela para os pais. Não temos a visão de outros personagens, então existem momentos que não sabemos se de fato o que Pamela escreve acontece exatamente como ela diz. Não conseguimos avaliar por perspectivas se Mr B era o diabo que parece ou o apaixonado do segundo ato. Não sabemos a condição psicológica de Pamela que a leva do ponto onde só vê o negativo dele para o que só vê as qualidades. É como se fossem dois homens diferentes, mimado como todos os homens abastados da época, agia como se pudesse comprar com dinheiro qualquer coisa. Eu só pude atribuir a ele alguma doença mental/emocional, ainda que tenha ficado tocada pela sua "segunda fase" romântica e carinhosa. Retrato dos homens bipolares que agridem as mulheres de hoje talvez.
A edição feita pela editora Pedrazul tem inúmeros pontos maravilhosos. Pausa em alguns momentos a trama para explicações, trás muitas informações no rodapé sobre tudo da época, até mesmo o costume dos horários para as refeições. Palavras que não estavam claras no original não tiveram sua tradução inventada, a obra está como a original e as palavras abreviadas permaneceram assim, levando o editor a citar o que provavelmente elas queria dizem. Obviamente a escrita é rebuscada, em visto da data que foi escrita, porém a tradução é primorosa. É um balde de conhecimento! Leia devagar, aos poucos. Você não se arrependerá.
Nota sobre diagramação
Fonte pequena e menor espaço entre as linhas acarretou em uma leitura um pouco cansativa. Como a formato da trama é epistolar, os diálogos são colocados na mesma linha e entre aspas, então as páginas são completamente preenchidas. Acredito que se a diagramação seguisse o padrão, teríamos uma média de 600 páginas.
"E quão diferente é seu comportamento agora! E eu não parecia estar apaixonada, como ele diz, se eu voltasse; e não seria um tipo de orgulho feminino bobo fazê-lo me seguir até meu pai? Como se devesse abusar dele, porque ele abusou de mim?"
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