Arnold 20/11/2011
Esta não pretende ser uma resenha de fato
Para mim, resenha é um negócio complexo(processo + resultado), mas que ao mesmo tempo tem que ser claro e de preferência sucinto, na exposição do argumento central e das formas de construir este argumento com os sub-argumentos de determinado texto, além de outros detalhes que visam clarear o seu entendimento.
Como aspirante a historiador, eu não li este livro com todos os cuidados e análises que eu faria numa ou noutra leitura. A questão é que, ao meu ver, isto não é uma "necessidade" para com este livro de dimensão literária - na verdade, só há necessidade, em relação a qualquer texto, se alguém se propõe a isso.
Quero dizer com isso que o livro "A filosofia na alcova" não pretende uma "verdade" na medida em que a história acontece na dimensão do absurdo tão cara a Sade e a diversas literaturas. Seja o que for, a história deste livro com o seu diálogo, a estética, a forma, etc., não pretende dar algo fechado dentro de uma disciplina, cientificidade, enfim, algo não necessariamente contrário, mas diferente, por exemplo, das obras historiográficas que(geralmente, vide contexto acadêmico) contém toda uma teoria, metodologia, dentro de uma disciplina aonde possam reconhecer-se como obras historiográficas. Enfim, a "verdade pretendida", ou melhor, a inverdade que se quer denunciar, é feita em grande medida diferentemente em gênero, número, grau, função, dinâmica e dimensão daquela tratada pela historiografia. Considerando que nem a literatura nem a história necessariamente são fechadas ou têm seu conteúdo fechado, ou mesmo que, dizendo secamente, não pretendem uma "verdade", para não cair num buraco que eu mesmo cavei, concluo apenas considerando que são coisas totalmente diferentes, mas que são dinâmicas, mutáveis, convergem-se e divergem-se, enfim, dialogam com as coisas e circunstâncias. A verdade lidada por cada uma destas formas de escrita merece uma abordagem que não incluirei neste momento.
Tratei de todas essas questões porque no livro o autor lida com "fatos históricos", aspectos humanos, sociais e culturais, mas que pela natureza da narrativa não devem ser considerados fora da dimensão do fantástico, do absurdo, da literatura. Antes de perceber completamente esta característica, até mais ou menos dois terços do livro quase me apaixonei a ponto de escrever uma antítese. Mas depois percebi que este projeto é totalmente inútil, e isso o tradutor explica na última consideração em sua "A revolução da palavra libertina", no final do livro, assim como na apresentação da "Coleção pérolas furiosas", no começo:
"(...)[Marquês de Sade]via na literatura uma possibilidade de criar um mundo às avessas onde tudo é levado às últimas consequências. Sade nos faz ver o impossível nas entrelinhas dessa realidade absurda na qual, paradoxalmente, nega-se a vida e os homens para melhor afirmá-los, vale dizer, para glorificá-los."
Percebe-se em "A filosofia da alcova" essa "dimensão do impossível" - profundamente exagerada, alheia à aplicabilidade nas sociedades humanas -, aonde os leitores livremente se relacionarão com uma realidade hipotética e "hipotetizante", contestando e até mesmo transgredindo forças que exercem repressões de diversos tipos aos impulsos humanos na "real realidade" nossa em nossos tempos, o que confere atualidade ao texto, simplesmente pela "atuação/aplicabilidade num mundo possível" - nenhuma realidade é completamente possível, no sentido de alcançável, concebível, nem completamente impossível, enquanto utopia. Realidade esta, a sadiana, cabe ressaltar, convidativa na medida em que nos propomos a "pular as cercas" da moral, dos costumes, da religião, dos governos, do pudor, do que seja.
Para mim basta concluir esta "resenha" com a seguinte reflexão: o mais inocente ou menos óbvio discurso pode esconder um ganancioso poder intencionado*¹(mesmo que coletivo ou impessoal), de forma que a "beleza" suplante o discurso-de-poder e o ouvinte em sua potencialidade consequentemente prejudicada. Sade, em seu tempo, questiona estes aspectos da vida em sociedade - conturbados tempos, aliás, perpassando a Revolução de 1789(e vai muito além dos questionamentos).
*¹: Na minha opinião, não existe um poder não-intencionado, na medida em que as coletividades(terreno máximo do poder sobre os homens) não são naturais, mas concebidas, "arquitetadas" mesmo que num inconsciente-involuntário lado da consciência coletiva(quando o esquecimento, a a-cultura - diferente de anti-cultura -, a alienação, são úteis ao podere voluntários e conscientes. Entretanto, na minha análise, não consigo ver aonde se expressa este último poder... talvez porque estamos atualmente numa política cada vez mais abrangente e efetiva de in-conscientização e "in-voluntariabilização" dos sujeitos singulares.