spoiler visualizarEric Vinicius 05/04/2021
Um romance do embate eterno entre o orgulho e o amor
Consegui passar os anos de escola sem ter lido José de Alencar. No fundo, chego a pensar: "Ainda bem!"; tivesse sido apresentado a "Senhora" antes do tempo, talvez meu trauma com a literatura brasileira - originado sobretudo depois do calvário da leitura forçada de "A Escrava Isaura", na adolescência - fosse ainda maior.
Não que o retrato do "perfil de mulher" seja um horror: seria um enorme disparate, aliás, se eu (um simples leitor não acadêmico, de fora do mundo das Letras) dissesse, presunçosa e arrogantemente, que a obra-prima daquele que é considerado o maior romancista romântico de nossas terras é qualquer coisa menos que bom. De fato, pude reconhecer grandes méritos no romance: a vanguarda (ou ao menos a tentativa de sê-lo) da proposta - uma mulher empoderada que consegue dar o rumo que bem quer à própria vida, ainda que por força do dinheiro, na sociedade patriarcal do século XIX - me foi digna de destaque; e a tão criticada escrita rebuscada do autor talvez hoje me seja, anacronicamente, um enfado (sinto que as páginas poderiam ser resumidas bem à metade, sem prejuízo da estética ou do conteúdo), mas sua reconhecida capacidade de pintar cenários era uma virtude valorizada, na época - parece que ele realmente tinha o dom de arrancar suspiros, a medir por alguns relatos que andei lendo. José de Alencar era um homem preso a seu tempo, mas não é justo desmerecê-lo por isso - como se fosse razoável esperar que todos tivessem o mesmo dom de transcender como Machado de Assis, por exemplo.
Mas é que talvez o estilo me embote um pouco. Achei-o até piegas - especialmente em um ponto em que o autor apela à metalinguagem, para se justificar. Não gostei, também, da desproporção entre as partes do todo (o livro não demora muito a engrenar, mas tortura o leitor ao se estender em demasia nos percalços e termina abruptamente, deixando-nos um pouco perdidos). E se hoje senti o incômodo, creio que há uns 20 anos a coisa teria sido bem pior - a ponto, decerto, de me fazer desfrutar quase nada da leitura (já capaz de me entreter).
Apesar dos floreios, senti que ela (a leitura) até que foi fluida, com seus capítulos curtos. O enredo, se não traz muitos fluxos de consciência, é envolvente. Mesmo com o previsível fim da história, fui conduzido, no caminho até lá, à indignação de ver o amor irresistível de Fernando e Aurélia ser abafado pelo orgulho (de ambos, diga-se a verdade), levando-me a refletir sobre como perdemos tempo precioso, na vida real, com vaidades que se colocam diante da nossa felicidade. Essa é uma condição que, por sinal, traz um pouco de humanidade aos protagonistas (planos), em meio à fantasia da adoração do escritor à sua musa. É até curioso isso, porque, ao longo da saga, em que pesem a destruição inicial da reputação de um e o louvor desmedido ao espírito da outra, senti muito mais simpatia pelo cativo penitente em busca da redenção do que pela senhora ilibada que, afinal, abusava de sua razão. A resignação de Fernando, em seus onze meses de servidão a Aurélia, fizeram-me lembrar a do obstinado Jacó, nos mais de vinte anos em que serviu a Labão por sua amada Raquel (Camões reservou um soneto ao patriarca bíblico, só por isso). Aurélia, por sua vez, ama mais seu próprio amor platônico do que ao marido; e, ao se permitir a vingança a partir do dinheiro, paradoxalmente já redime, a partir daí, Fernando, que outrora a preterira em favor da (então) mais abastada Adelaide Amaral. Esse jogo simétrico entre os cônjuges beligerantes, marcado pelo sarcasmo, pela teimosia e pela abnegação, é igualmente admirável, na obra.
Em geral, avalio "Senhora" como uma espécie de romance do embate eterno entre o amor e o orgulho. O gênero literário a que pertence permite até mesmo ao neófito adivinhar a sorte desse conflito, aqui.
Ainda assim, valeu a leitura! A trama é bem desenvolvida e, apesar do excesso de ornamentos, seduz. Dificilmente teria me aproximado do livro se não fosse o convite de uma amiga e a curiosidade despertada a partir do chamariz da proposta, mas confesso que passei um tempo bom, com ele - algo de que realmente precisava, depois da ressaca de "A guerra não tem rosto de mulher", "Ficções" e "1984".
No mais, a iniciativa serviu-me para que eu ao menos pudesse compreender, sem preconceitos, que o tipo efetivamente não me atrai. Embora não pretenda ler outras obras do autor, recomendo a experiência a quem deseja conhecer algo do romantismo nacional, é capaz de suspirar com pouco ou simplesmente esteja necessitando fazer uma pausa entre obras mais pesadas. Com alguma boa vontade, é possível se render à "Senhóra" de Fernando Seixas, e com ela se inebriar do amor imaculado de que só são capazes os castos de coração.