Kyran 18/01/2018
Ótima estória, edição (bem) ruim.
A estória é ótima. E é BASTANTE aflitiva -- acho que até mais do que em qualquer livro de Sade, trazendo-o aqui como uma breve comparação: porque Sade trata todos os seus personagens, predadores e presas, como bonecos, os quais assistimos interagir, ainda que violentamente, de longe. Neste livro do Sacher-Masoch, contudo, você se sente dentro de um personagem de carne e osso que é torturado sobretudo "em" e "por" suas emoções, e o tormento nunca nem tem lenientes. É muito agoniante, mesmo, porque a gente não só tem que acompanhar o protagonista, Severin, sofrendo em mínimos detalhes, como a gente acaba se identificando ou com ele, ou com a sua dominadora (Wanda), ou com os dois alternadamente, ou os dois ao mesmo tempo.
Nisso tudo, temos essa novela toda escrita de maneira extremamente sensual, sem precisar invocar, em momento algum, nomes de partes sexuais do corpo. É um erotismo fantasioso, ainda que o texto nos ofereça bastante palpabilidade dessa fantasia.
E essa sensualidade se faz não só pelo "pó mágico" que o próprio narrador, Severin, sopra o tempo inteiro na nossa cara, mas pela manifestação incrível de cores, formas, texturas e aromas que vão se manifestando a todo momento -- e isso muito provavelmente dita o ritmo fluido e confortável da barca que nos leva para assistir a uma estória tão tormentosa. Por isso, apesar dos "pesares", é um livro bem fácil de ler.
Na época, Sacher-Masoch não gostou de figurar o título "masoquista", mas, vendo este livro, ainda que seja compreensível a negação dele, me parece bastante válido.
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"(...) O senhor concede ao vício uma auréola, bastando, para tanto, que ele seja honesto."
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É claro que estamos falando de um livro de 1870: Você vai ter a discussão típica entre as diferenças entre os sexos feminino e masculino, sugerindo que defeitos e qualidades desses dois são fatores biológicos, inerentes aos sexos; além disso, o narrador é completamente indeciso quanto aos seus sentimentos em relação as mulheres, ora adorando-as em demasia, ora dizendo que essa adoração que elas causam nos homens é o que as faz cruéis. Ainda assim, de todos os livros que já li dessa época, sobretudo de libertinos, esse é o que mais idolatra a mulher em seus defeitos e qualidades. A impressão que eu tive é que o próprio Sacher-Masoch só era machista porque era tudo o que ele conhecia, mas ele tentava não ser, só que não ser machista seria humilhante perante à sociedade. Por isso ele tenta tratar a mulher como igual ao homem em vários momentos da narrativa, mas, logo depois, ele tenta se desmentir rapidamente. Mas ele tem muito mais discurso pra ver uma mulher como igual do que como não igual.
Fora que a ideia central do livro já faz o que nenhum outro queria fazer: A mulher tendo todos os poderes, tanto físicos, quanto psicológicos, emocionais, sexuais, sociais.
É por isso que, apesar de TUDO, é difícil não aceitarmos a proposta de não nos fascinarmos por Wanda também. Ela, como pessoa, independente do sexo, poderia ser odiável devido ao que faz, mas todo o livro criou um contexto que torna difícil até de julgar as atitudes dela.
Esse ponto exato, sobre o desenvolvimento excepcional da Wanda, mostra a maestria com que o Sacher-Masoch a apresentou como "Vênus": Fez dela deusa, pedra, pêlo, mulher e humana.
Sabe qual foi o único problema deste livro, pra mim? A edição.
Gosto tanto dos livros da Hedra, e foi extremamente decepcionante ver a bagunça que, por qualquer motivo, deixaram passar, principalmente no começo do livro.
O tradutor, presumo, não conseguiu se decidir entre usar "você" ou "tu/vós", e conseguia colocar as duas coisas com conjugações verbais misturadas -- fez isso durante o livro todo, mais no começo e no fim, porque pegou o ritmo do "tu" na metade do livro, mas perdeu de novo em algum momento. Isso me deixou completamente sem entender se o tradutor não sabia usar e conjugar o "tu", ou se ele, sei lá, tava muito desnorteado na vida na hora e não viu essa mistureba, ou os dois, já que, como eu disse antes, a partir da metade do livro ele começa a acertar no "tu", mas perde isso depois. Também parece que pode ter sido preguiça de continuar consultando as conjugações, ou até que alguém tenha misturado um texto inacabado com o texto revisado. Sei que essa bagunça quebrava a fluidez da minha leitura o tempo todo.
Mas isso não é tudo: O maior problema começa quando você nem precisa ler o livro original pra perceber que tem algo de MUITO errado com a tradução. Além de vários erros de desatenção, que você não entende como foram parar numa suposta segunda edição da própria editora, em alguns momentos o texto parece mal elaborado mesmo com as palavras enfiruladas, e eu fiquei me perguntando se tal trecho representaria mesmo o tom original do texto, ou se era o tradutor querendo aparecer ora com vocabulário rebuscado, e ora como se fosse escritor de Young Adult, devido à simplicidade. Prova disso é a quebra de padrão da narrativa do personagem quando ele ora fala "seios", ora "peitos" -- jogando "peitos" do nada ali como se essa narrativa trabalhada e romântica do nada falasse como um texto despreocupado e até explícito atual.
Digo, é problemático DEMAIS quando você vê o tradutor O TEMPO TODO no texto e não sabe onde, caralhos, está o verdadeiro autor. O tradutor nos deve a ilusão de nos fazer acreditar que o texto traduzido é o texto real.
Some isso às falhas, TAMBÉM, na diagramação: Uma cena que é cortada no começo e continua em outra página, fazendo parecer que é outra cena, só que não é; ou cenas diferentes que você supõe fácil que na narrativa original teriam sido devidamente separadas, mas a diagramação esqueceu ali dessa separação; além de o texto estar bastante desorganizado, misturando falas e ações, de um jeito que não parece responsabilidade do autor também, e em alguns momentos a culpa da editora fica mais evidente.
E cadê a revisão de tudo isso? São erros explícitos, e bastante contínuos. Esse tipo de apresentação de um livro faz parecer ou desleixe da editora, ou publicação de uma versão errada do texto, e eles não perceberam. Ou só eu dei a "sorte" de pegar a versão errada do texto, impressa em uma mesma edição, de 2015.
O fato é que o livro é maravilhoso, mas eu vou procurar a tradução de outra pessoa, nem que seja em inglês, que é meu segundo idioma, já que eu não conseguiria ler o original. E eu recomendo, sim, que leiam o livro, porque ele causa uma impressão muito forte, e nos deixa bastante pensativos -- sobre nós mesmos, e sobre tudo. Mas eu não recomendo nem esse tradutor, nem essa edição da Hedra.
Leiam o livro, vale a pena, mas procurem outra edição. Sério. É só por isso que não posso dar 5 estrelas.