Fabio Shiva 30/05/2017
homem inferior x homem superior
Há livros que nos inspiram e confortam da primeira à última linha. Outros há que nos causam repúdio e indignação a cada palavra. Mas há outros ainda, muito especiais, que nos fazem amar uma frase, e odiar a frase seguinte, e assim sucessivamente, em um convite constante para um confronto de ideias com o autor. Se aceitamos esse convite para uma boa luta, com o espírito aberto, podemos experimentar uma rara oportunidade de aprendizado e crescimento.
Esse foi o caso de minha leitura desse “desabafo filosófico” de Reich. Admirei e concordei com muitas das ideias expressas no livro, mas discordei profundamente de outras tantas. A começar pelo título em português, que considerei muito inadequado. O título original, Rede an den kleinen Mann, poderia ser melhor traduzido como “Discurso para o Homenzinho” ou mesmo “Escuta, Homenzinho!” A expressão “Zé Ninguém” possui conotações bem específicas que fogem à intenção do autor, que é se referir à pequenez humana, que pode ser encontrada em doutores e donos de fábricas tanto quanto em operários proletários.
Esse é o alvo central desse amargo e apaixonado relato: a pequenez (ou mesquinhez, ou estupidez) do homem. Reich tinha bons motivos para estar ressentido e mesmo pê da vida com a esmagadora maioria dos “homenzinhos”: suas revolucionárias pesquisas sobre a sexualidade e outros temas polêmicos acabaram fazendo com que ele fosse perseguido, tivesse seis toneladas de seus livros queimados (!!!) em pleno Estados Unidos no século XX e fosse finalmente preso por conta de acusações do famigerado FDA (Food and Drug Administration). Acabou morrendo de ataque cardíaco após um ano na cadeia.
Em muitos momentos senti ecos de um outro relato escrito em situação igualmente angustiante: De Profundis de Oscar Wilde, escrito na prisão, quando o autor estava preso por pederastia. Mas enquanto o alvo do ressentimento de Wilde é principalmente seu ex-amante e traidor, Alfred Douglas, o rancor de Reich é voltado indistintamente a praticamente toda a população do mundo.
Devo dizer que a leitura foi marcada por muitas sincronicidades. Poucos dias antes do livro chegar às minhas mãos, lembro de ter reclamado de forma muito intensa dessa nossa condição tão precária da família humana, me ressentindo de sermos ainda tão tacanhos, movidos pelo medo e pelo preconceito, tão cheios de ganância estúpida e de ódio a tudo que não conseguimos compreender. Enquanto estava lendo o livro, fui assediado por fanáticos políticos de ambas as extremidades da estupidez, da esquerda e da direita, o que acabou inspirando a poesia “Polititica” (https://youtu.be/QSY5i0oPWCU). Sendo um apaixonado pelo estudo do I Ching, é claro que me interesso muito em qualquer reflexão sobre o que significa ser um “homem superior” ou um “homem inferior”. Por penúltimo, mas não menos importante, li esse livro paralelamente a “Você É o Universo”, de Deepak Chopra e Menos Kafatos. E finalmente, após ler as últimas páginas de “Escuta, Zé Ninguém!”, fui brindado pela leitura de meu trecho favorito da Bíblia: o Sermão da Montanha.
Tantas sincronicidades me conduziram à conclusão de sempre: sem a perspectiva espiritual, muitas vezes nos perdemos em intricados labirintos racionais, que parecem fazer todo sentido, só que não. É preciso lançar sempre a luz da espiritualidade em qualquer questão, se queremos enxergar com clareza.
Vou dar um exemplo pessoal, ocorrido a partir da leitura desse livro. Em determinado trecho Reich afirma que a maioria das pessoas prefere os ensinamentos do “homenzinho” Paulo aos do “grande homem” Jesus. Fiquei feliz ao ler esse trecho, pois eu mesmo, ao ler o Novo Testamento, fiquei absolutamente chocado ao descobrir que a maioria das pessoas que se consideram cristãs hoje em dia na verdade seguem Paulo, e não Jesus. Ainda hoje me espanta que tantos que sabem citar a Bíblia de cor não enxerguem a contradição profunda entre o que disse Jesus e o que Paulo determinou depois, muitas vezes praticamente o contrário. E enfim, depois dessa leitura que foi tão árdua e exasperante, fui descobrindo que “grandes homens” como Nietzsche, Gibran e, agora, Reich, também nutriam essa antipatia contra a filosofia de Paulo.
Pois então. Analisando minhas emoções, percebi que o componente principal era o orgulho. Orgulho de ter chegado às mesmas conclusões que Nietzsche, Gibran e Reich, nadando contra a corrente da imensa maioria que sequer percebe qualquer contradição entre se dizer cristão e seguir, na verdade, Saulo. Mas de que me serve esse orgulho? Em que isso contribui para me tornar uma pessoa melhor? Em que isso beneficia o mundo? Em nada, nadica de nada. Não serve para ninguém eu me sentir tão inteligente, se não estiver empenhado, isso sim, em compreender de fato os ensinamentos do Mestre Jesus e em aplicá-los a minha vida.
Ou seja: apontar o dedo para a pequenez humana pode ser uma boa catarse, mas não ajuda a elevar a humanidade nem um milímetro sequer. É preciso compreender não com a razão, mas com a intuição nascida na receptividade espiritual, que essa dita “pequenez” também serve a um propósito: “é preciso suportar as lagartas, se eu quiser conhecer as borboletas”!
Encerro, portanto, essa não tão breve resenha com a inspiradora promessa feita pelos Bodhisattvas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Bodisatva): continuar regressando a esse mundo até que a última folha de relva se ilumine! Esse é o verdadeiro caminho para transformar a pequenez em grandeza.
Gratidão por essa leitura, que tanto me fez refletir e aprender!
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