Carlos 22/12/2018
Jorge Amado e sua "dialética mulata"
A riqueza da obra de Jorge Amado ainda não foi totalmente explorada. Por trás das narrativas ficcionais, explora o autor em forma livre temáticas pertinentes à história, filosofia, política, costumes e crenças do povo brasileiro, com especial ênfase na realidade baiana e soteropolitana.
Ninguém melhor do que Jorge Amado para conseguir expressar o intricado novelo entre o imaginário e os rumos concretos em que a sociedade – ou melhor dizendo, o povo baiano – navegou ao longo do Século XX. Entre a cultura e a fé, a política e a modernidade, do candomblé ao altar católico, do cano da arma ao carnaval, a complexa rede de conexões, sentimentos, aromas e sabores do povo baiano exurgem em frondosa interconexão através de suas obras. A obra em questão – “O sumiço da Santa: uma história de feitiçaria” – não casualmente enfrenta a temática da mestiçagem, da dupla natureza da santa católica, transmutada em orixá, da composição étnica plural de Adalgisa, uma das protagonistas centrais da trama, da dualidade religiosa do baiano, ao confundir e misturar candomblé e catolicismo, entre outras tensões e paradoxos que aqui e ali emergem no livro.
Do Sumiço da Santa emergem as tensões entre personagens opostos, propositalmente semeados pelo autor ao longo de sua trama. A exploração desses entes dialéticos na narrativa converge, no mais das vezes, na sublimação das diferenças, superação dos referenciais polarizados, dando a entender o autor que, na Bahia da mitologia amadiana, opera-se uma espécie de “dialética mulata”, a superar os conflitos que fora dali pautam o imaginário e as narrativas vigentes è época.
A “terra onde tudo se mistura e se confunde” exurge como espinha dorsal de um modelo ou paradigma, um arquétipo a permear toda a narrativa. Todo o texto passa a tomar este tom. Tal paradigma vai se corporificar mais profundamente nos principais personagens da trama.
A narrativa amadiana tem por personagem central a mítica díade que se manifesta como duas faces de uma mesma moeda: a imagem de Santa Bárbara e a materialização de Iansã, cuja cômica epopéia começa pelo desaparecimento da primeira seguida da imediata corporificação da segunda.
Embora representantes de narrativas tão diversas quanto o cristianismo primitivo e a mitologia ioruba, não escapou aos olhos da malta a clara conexão entre elas, conexão esta explorada e enfatizada pelo autor. Amado vai adiante, tornando Santa Bárbara e Iansã termos intercambiáveis numa experiência de realismo fantástico. Tornam-se, na dialética mulata do autor, dimensões de uma mesma realidade. Não contrapostas, mas complementares. Ambas são objeto de devoção em distintas tradições, e o intercâmbio de uma ou outra não se dá, aparentemente, para desvelar a hegemonia de um arquétipo sobre o outro, mas para restabelecer, na narrativa, a ordem natural das coisas entre as pessoas.