jota 27/02/2022ÓTIMO: especial para quem aprecia histórias de aventuras na natureza selvagem: são caçadas sangrentas, nevascas impiedosas, rios perigosos e muito maisLido entre 21 e 27/02/2022. Avaliação da leitura: 4,7/5,0
As capas dos livros da editora brasileira de John Williams (1922-1994), a Rádio Londres, são muito feias, caso de Stoner (1965), Augustus (1972) – a desse é pavorosa – e de Butcher’s Crossing (1960), as três obras dele publicadas por aqui até o momento. Parece que o programador visual trabalha contra a própria empresa. Mas quem vê capa e não vê (lê) conteúdo então vai perder a chance de se encontrar com um ótimo autor, que passou cerca de meio século ignorado pelos leitores, críticos e editoras e só foi redescoberto algum tempo atrás. Principalmente por conta de Stoner, seu livro mais conhecido. Do qual Butcher’s Crossing difere não apenas espacial quanto temporalmente, sendo muito mais movimentado também. Mas é igualmente bem escrito e interessante, claro.
Butcher’s Crossing, que alguns críticos americanos chamaram de anti-western – e nessa categoria poderia ser incluído outro ótimo livro que li recentemente, O Poder do Cão, de Thomas Savage, além da conhecida trilogia de Cormac McCarthy –, se passa nos anos setenta do século XIX e seu personagem central é o jovem Will Andrews, 23 anos, formado em Harvard, que decide deixar a agitação de Boston e a casa paterna e viajar para o Oeste em busca de ligação com a natureza. Não à toa, o livro abre com uma bela citação de Natureza, de Ralph Waldo Emerson, mas também há uma citação do autor de Moby Dick, Herman Melville, o que significa que teremos aventura pela frente e possivelmente alguma tragédia à espreita.
Em busca da “América profunda”, o Oeste que tem na cabeça, Andrews faz parada num vilarejo do Kansas, esse que dá título ao livro, e ali conhece alguns caçadores de búfalos. São homens que passam muito tempo a beber uísque e cerveja quente e a conversar com as prostitutas do local, dentre as quais se destaca uma estrangeira de origem alemã chamada Francine, alguns anos mais velha do que Andrews e certamente a mais bonita (ou a menos feia, depende) por ali. Dela o rapaz se lembrará diversas vezes durante a caçada, especialmente do modo desajeitado (ou constrangedor) como se deu aquilo que seria sua primeira relação sexual mas que não foi. E de como Francine era cobiçada por outro homem, um tal Schneider, perito em esfolar animais, que Andrews conhecerá melhor depois.
É com esse sujeito, e outros dois homens, um deles Miller, um conhecido e experiente caçador de búfalos, que o rapaz decide gastar boa parte de seu dinheiro financiando uma pequena expedição para caçar búfalos nas pradarias do Oeste, lá pelos lados do Colorado. Lugar onde Miller garante que encontrariam uma abundância desses animais de pelo ou pele cobiçados, que lhes renderiam uma fortuna. Aí começa a aventura de fato, porque para chegar até o imenso rebanho buvalino que Miller garante existir, serão muitos dias de viagem, obstáculos e meses de permanência no local. Com água e comida controlada e a grande natureza selvagem como permanente companhia. E com alguns lobos a rodar o acampamento também...
As cenas das caçadas são longas, sangrentas, os homens são impiedosos com os animais, eles são exterminados às centenas, milhares, na verdade: são três ou quatro mil búfalos mortos para extração de sua pele, que depois terá de ser transportada por estradas precárias até Butcher’s Crossing para comercialização. São os trechos de leitura mais difícil, que desafiam o leitor a não pular nenhum parágrafo. Mas prosseguindo: a ganância de Miller, ao mesmo tempo um sujeito tratável mas um tanto tirano e impiedoso, a quem Andrews e os dois outros homens tem de obedecer quase cegamente, faz com que não regressem a tempo com a carga e fiquem retidos na planície durante o longo inverno que os surpreendera repentinamente. Os bois e cavalos que trouxeram dispersaram, os alimentos escasseiam, a proteção contra o vento e a neve é insuficiente, o frio é congelante...
Os homens passam longos meses sofrendo com as intempéries: Andrews pensa em Francine com intensidade, Schneider se revolta contra Miller porque ficaram impedidos de partir a tempo, o outro homem, o condutor da carroça e cozinheiro Charlie, se apega ferozmente à Bíblia, até que finalmente a primavera dá seus primeiros sinais. Então se preparam para voltar a Butcher’s Crossing, mas a volta será muito pior do que antes, com mais contratempos. Porque agora estão carregados demais, nem trouxeram todas as peles, e há um rio caudaloso, cujas águas aumentaram muito pelo degelo das neves, que terão de atravessar. Daí até o final os homens conhecerão a força da natureza cobrando seu preço, enfrentarão a morte, um deles morrerá, outro será levado à loucura... O ritual de passagem de Andrews estará então completo.