Lucio 16/04/2021
A Crítica da Razão Instrumental
INTRODUÇÃO
Horkheimer vislumbra uma crise cultural no ocidente, e uma crise tal que tem poder altamente destrutivo para a humanidade e embarga seu progresso - claro, concebido em termos progressistas. É a crise da razão. É seu eclipsamento, sua obliteração, mesmo sob a fachada de racionalidade. A obra visa, assim, estabelecer um desvelamento e crítica dessa razão invertida ao mesmo tempo que busca recobrar o seu verdadeiro conceito e, assim, a concepção verdadeira da filosofia e seu papel na transformação e melhora do mundo.
RESUMO GERAL
A tese fundamental da obra é que o individualismo utilitarista promovido pela mentalidade capitalista acabou prescindindo da razão objetiva e reduzindo a razão meramente ao seu uso subjetivo, i. e., formal, lógico, com fim de promover a autopreservação pela adaptação à situação vigente. Tal perspectiva leva o homem ao conformismo e ao embotamento de suas potencialidades racionais, o que embarga a construção de um mundo melhor e, não apenas isso, provoca a própria derrocada da natureza humana que, por sua vez, revida com o ressentimento e a revolta, agravando as contradições da situação vigente. Por isso, o restabelecimento da verdadeira racionalidade é o caminho para o progresso.
RESUMO DA OBRA
O primeiro capítulo, intitulado ‘Meios e Fins’, visa justamente apontar para a distinção entre razão formal, ou subjetiva, e a razão objetiva. Em suma, a razão subjetiva é aquela estritamente lógica e utilitária, que simplesmente é instrumento, meio, para se buscar as coisas que almejamos. Essas próprias coisas, no entanto, em última instância, segundo esta concepção, não estão abertas à discussão. Discuti-las seria admitir alguma possibilidade de razão objetiva, e o percurso do pensamento ocidental tendeu à desconsideração desse aspecto da razão. Não se percebe, então, nem mesmo como essas coisas são determinadas e oferecidas ao imaginário do indivíduo. Na sequência, no segundo capítulo, intitulado ‘Panacéias Conflitantes’, o autor analisa as pretensões do positivismo de alavancar o progresso humano em geral por meio da submissão ao cientificismo. O autor, além de notar a contradição axiomática do positivismo, nota que eles não compreendem o papel da ciência e nem como ela é impulsionada e dirigida por fatores externos. Daí temos um dos papéis da filosofia, na concepção da Teoria Crítica, que é a de conferir alguma direção às ciências - embora, claro, não esteja restrita a isso. Do outro lado, temos as propostas metafísicas, ontologistas, que o autor toma por base as perspectivas neotomistas. Além de notar que há uma grande guinada pragmática na própria concepção da religião, o autor nota particularmente o caráter conformista de uma perspectiva que glorifica o real e acaba o confundindo com a situação vigente. Na sequência, no ‘A Revolta da Natureza’, o autor analisa particularmente a relação conflituosa entre espírito e natureza. Os homens, na pretensão de dominar a natureza, concebendo concomitantemente o espírito como algo natural, passaram a conceber não apenas a natureza como instrumento, como o próprio homem como instrumento. E nisso há até mesmo uma concepção de esvaziamento do conceito de ‘ego’ como mera experiência. O fato é que a busca da sujeição da natureza é motivada pelo princípio individualista de autopreservação como valor máximo. E assim, tudo é visto à luz da razão formal em prol desse objetivo. Aqui, temos uma espécie de vulgarização - segundo o autor - de uma concepção darwinista de mundo que faz da sobrevivência o objetivo último da vida. Acontece que essa concepção de domínio da natureza e, consequentemente, do homem acaba por criar uma espécie de ressentimento e revolta, dada a não objetividade última de qualquer propósito para tal, e os reclames da natureza que são reprimidos acabam retomando as rédeas do homem que, por sua vez, não vê vantagem alguma em tal procedimento. Tal acorrentamento da natureza humana, portanto - bem aos moldes freudianos -, gera revolta. E o pior, tal perspectiva de domínio da natureza não implica em aumento da liberdade, pois a tônica norteadora da filosofia de vida é a adaptação, e o indivíduo acaba se tornando passivo em relação aos problemas da realidade. O ego se torna cativo aos poderes dominantes, os quais, inclusive, se valem não apenas da propaganda, mas do próprio recurso à promessa de satisfação da natureza enjaulada para exercerem tal domínio. O indivíduo, portanto, ou se adapta ou é cooptado por meio de seus impulsos reprimidos. Mas isso não sem alto custo psicológico. Mas, para além dos hostis ressentidos e revoltados, há aqueles inconformados que visam transformar o mundo num lugar melhor, segundo seus ideais. Este, claro, representa o espírito filosófico que o autor propõe. No quarto capítulo, ‘Ascensão e Declínio do Indivíduo’, o autor busca mostrar como a situação vigente acabou por promover o desaparecimento da perspectiva real dos indivíduos sobre suas personalidades. Enquanto os pobres não têm o luxo de poder desenvolvê-la, os ricos a subverteram pela ganância e pelo anseio de ter. Para esclarecer as causas da situação vigente, Horkheimer busca retomar a gênese do conceito de indivíduo entre os gregos, pela figura do herói, perpassando a concepção de potencialidades do indivíduo em Platão e atravessando a concepção individualista, que não percebia a necessidade do outro para o exercício e desenvolvimento das virtudes, até a concepção cristã da importância de cada individuo e seu valor infinito, seguida da secularização renascentista que mantém tal valor de cada indivíduo, mas sem a (suposta) negação desta vida em prol da futura. Chega-se ao individualismo burguês e sua cooperação com a sociedade na harmonia de interesses até que a própria organização social o fez dependente das grandes corporações, tirando do indivíduo a principal responsabilidade por seu destino. E acaba sendo dirigido à pura mimesis do grupo em prol de adaptação. Torna-se ‘massa’. E tudo isso é potencializado pela cultura de massa, que não apenas prende o indivíduo em divertimentos e entretenimento, mas também lhe confere uma perspectiva acrítica dos fundamentos da sociedade. Esse indivíduo é aquele que adquire uma concepção formal da razão e nada mais. Até mesmo o próprio trabalho foi cooptado por tal espírito e tornado um fim em si mesmo. Em suma, a era industrial e o capitalismo, segundo o autor, transformou os homens em máquinas - embora sejam máquinas ressentidas. Finalmente, no último capítulo, intitulado ‘Sobre o Conceito de Filosofia’, o autor volta a criticar o positivismo na sua concepção analítica da linguagem, que ignora os aspectos históricos da formação do conceito e as camadas significativas que, com isso, ele carrega. E é justamente nessa falha que deixam de conceber corretamente a distinção e interconexão entre espírito e natureza, bem como entre razão subjetiva e razão objetiva. Em suma, a natureza tem valor por si mesma e o real deve se valer da razão subjetiva do homem para alcançar os ideais da razão objetiva. Isso é feito por meio da verdadeira concepção da linguagem, a atividade reflexiva sobre o real, a dialética do progresso conceitual e ‘espiritual’ que leva à progressiva concretização do ideal.
AVALIAÇÃO CRÍTICA
Este é um livro de um autor progressista que angariou de nossa parte muitas anuências. Estamos plenamente de acordo no que diz respeito ao problema epistemológico básico do positivismo, bem como com o fato de que a mera evolução técnica e científica não podem promover o bem da humanidade - e tendemos a concordar que a própria atividade científica é influenciada ou até mesmo determinada a partir de fora, pelas agendas culturais. Concordamos com o autor no que diz respeito à necessidade de não se conformar com os males vigentes e com o imperativo de buscar mudanças. E damos as mãos, também, no que diz respeito à perspectiva deformada de se conceber a verdade dos pragmatistas positivistas. Compreendemos e afirmamos a maior parte de suas observações em relação à linguagem e a crítica à perspectiva atomística dos conceitos. Discordamos da concepção hegeliana de verdade, que, como bem notou Francis Schaeffer, leva ao niilismo, bem como do nominalismo, brevemente defendido segundo Nietzsche. Acrescenta-se a questão concernente ao empobrecimento da individualidade e o niilismo existencial de uma perspectiva estritamente liberal da vida. E a crítica à pragmatização da religião é aplaudida por qualquer pensador ‘religioso’. Por fim, apreciamos, em grande medida, as críticas do autor à cultura de massa, bem como à sua crítica à depreciação da teorética. Todos esses aspectos que apontamos como sendo positivos representam contribuições filosóficas bastante ricas da parte do autor, e que não são necessariamente comprometidas por seu progressismo.
E é justamente esse progressismo que compromete a obra. Quando Horkheimer denuncia o conformismo, ele o faz em prol de uma agenda progressista. Sua concepção de progresso é revolucionária, ao passo que a nossa é conservadora. E, ignorante do conservadorismo, o autor não observa alternativa à cultura de massa e ao utilitarismo individualista senão pelo coletivismo e pela absoluta inversão, ou seja, pela revolução. Além disso, falta a Horkheimer a consideração sobre a prudência conservadora diante das concepções ideais que ele almeja ver em prática. Os ideais podem não se conformar à realidade, e provocar irreversíveis danos. Escapa ao autor qualquer consideração a esse respeito. E se discordarmos da economia marxista - como, de fato, o fazemos, por meio das refutações dos austríacos -, boa parte das análises dos males aqui apresentados são desconsiderados - bem como a perspectiva de ideal. A própria noção de quais são os males da sociedade não obtém nosso acordo. Por exemplo, o autor ignora os fatores que determinam as desigualdades, bem como as concepções de desigualdade justa. É claro que concordamos que é ruim a condição de miséria, mas a noção de desigualdade não implica em pólos tão opostos assim. E o próprio autor - bem como Marcuse - reconhecem que há um aumento na qualidade de vida - no que diz respeito ao acesso aos bens de consumo - dos mais pobres. É claro que os autores da teoria crítica, sem qualquer fundamento, acreditam que isso se deu graças à economia planejada - que é, na verdade, o próprio embargo para uma melhora ainda mais significativa. O autor também apresenta algumas concepções supostamente liberais que nunca vimos ser defendida por ninguém. Por exemplo, a noção de que alguém aprecia o trabalho por si mesmo, e investe suas energias no trabalho como o fim absoluto. Mesmo para o mais empedernido liberal, o trabalho ainda é um meio de ganhar dinheiro e poder. Podemos discordar desses fins como legítimos e satisfatórios, mas não podemos concordar que deixam de ser fins para o indivíduo na sociedade capitalista.
Podemos acrescentar, é claro, várias concepções equivocadas no que diz respeito à filosofia da religião. A visão ascética da vida não é inerente ao cristianismo, e até mesmo afirmamos que lhe é heterodoxa, embora tenha se tornado popular. Sua concessão ao Iluminismo como tendo desacreditado a religião parece ignorar os fatores extra-filosóficos da questão, as questões sociológicas que determinaram a predominância no ocidente de determinadas concepções filosóficas. Da nossa parte, acreditamos que os pensadores cristãos conseguiram lidar muito bem com ataques do iluminismo - principalmente os que seguiram a linha crítica.
REFERENCIAL TEÓRICO
Horkheimer tem por referencial fundamental, naturalmente, Marx. Suas reflexões ou pressupõem suas teses ou, em muitos casos, buscam justificá-las. Certamente é o referencial mais importante. Mas também há clara influência de Hegel. E, embora não de forma tão explícita, é preciso destacar o papel de Weber nessa fase madura do autor. A questão principal a respeito da razão formal e objetiva parece ser diretamente influenciada pelo sociólogo. O principal alvo de críticas certamente são Dewey e Peirce. Principalmente aquele. Há alguma referência a James também, mas o pragmatismo dos dois primeiros é mais autenticamente expresso e mais diretamente atacado - embora o autor não pareça perceber que o pragmatismo de James não carregue o mesmo positivismo do de seus colegas. Há um certo número de referências a outros filósofos clássicos, como Platão, Aristóteles, Descartes, Locke e Kant que demanda algum conhecimento básico de suas ideias. Há um pequeno espaço até para considerar Darwin, bem como outros espaços menores para rápida menção a outras figuras. Surpreendentemente, há alguma referência, embora tímida, a autores conservadores, como Ortega y Gasset e Tocqueville, mas sem grande atenção às suas filosofias.
RECOMENDAÇÃO
Este é um excelente livro em defesa da tese fundamental do progressismo, a saber, a da busca de realização dos ideais racionais para a sociedade. Ainda que não consideremos que os argumentos procedem, admitimos que são bem articulados e apresentam perfeitamente bem o espírito. Assim, interessados em estudos político-filosóficos têm nesta obra uma boa contribuição reflexiva. Mas o livro é igualmente recomendado para estudiosos da teoria do conhecimento em geral e para quem deseja acompanhar uma crítica ao pragmatismo positivista e ao positivismo de modo geral. Não obstante, é preciso observar que o livro não é recomendado para principiantes, pois, além de demandar um certo conhecimento de alguns filósofos, emprega raciocínios complexos e altamente abstratos, demandando atenção, treino e conhecimento.