LOHS 02/02/2017
#LOHS: Bel - a mochileira dos livros
Essa é uma daquelas séries de que você sempre ouve falar e tem curiosidade para ler, mas que não tem certeza ainda se deve ou não investir seu tempo. Bom, eu vim aqui para convencer você a cruzar a linha entre o não sei se quero e o com certeza vou ler.
Antes, preciso confessar que eu mesma não tinha dado essa chance à série. Desde meus 13 anos já conhecia por nome, sabia que tinha se tornado referência nerd clássica e tinha a curiosidade; afinal, o que significa 42? Como uma toalha pode ser uma ferramenta de sobrevivência? E por que diabos o personagem principal está de roupão?
Por incentivo (e muito, por sinal) do meu melhor amigo, finalmente arrisquei e aproveitei a chance proporcionada pela Editora Arqueiro para descobrir as respostas para as minhas perguntas.
A série gira em torno da vida de Arthur Dent, um humano comum, britânico, obcecado por chá e um pouco distraído, de seu amigo Ford Prefect e as aventuras que se desencadeiam após a destruição do mundo por uma raça alienígena bem pouco amigável: com o objetivo de criar uma via expressa interespacial, os Vogons iniciam a demolição do planeta, apesar da surpresa dos habitantes dele.
— Como assim nunca estiveram em Alfa do Centauro? Ora bolas, humanidade, fica só a quatro anos-luz daqui! Desculpem, mas se vocês não se dão ao trabalho de se interessar pelas questões locais, o problema é de vocês. — Após uma pausa disse: — Energizar os raios demolidores.
Das Escotilhas saíram fachos de luz.
— Diabo de planeta apático — disse a voz. — Não dá nem pra ter pena. P. 25
A partir daí, toda a percepção de Arthur sobre a vida, o universo — e tudo mais — muda completamente: a Terra não existe mais, o universo é muito maior do que o sistema solar e há mais planetas e civilizações do que Arthur jamais poderia sonhar. Seu amigo Ford, na verdade, é um alienígena fazendo pesquisas sobre a Terra, recolhendo informações para atualizar o chamado Guia do Mochileiro das Galáxias; o livro digital reúne diversos verbetes sobre o universo, servindo, como diz o nome, de guia para consulta, contendo as informações mais importantes sobre todos os temas imagináveis.
Daqui para frente, vou falar de toda a minha experiência com o livro, desde os verbetes do Guia até a minha impressão sobre as personagens. Os que quiserem opiniões devem continuar lendo. Outros podem preferir pular para o 13º parágrafo.
A série como um todo me surpreendeu bastante. Não sou muito fã de ficção científica — já tentei, mas nunca fui muito mais longe do que Doctor Who e alguns episódios de Arquivo X. Esperando ficar entediada como da primeira vez em que li os primeiros capítulos, Douglas Adams fez questão de distribuir alguns tapas na minha cara: o humor que encontrei em todos os livros é insuperável, sendo ao mesmo tempo inovador e previsível, de uma maneira agradável. Você pode saber a fórmula utilizada pelo autor, mas ela não é esgotável apesar de se repetir. Suas tiradas são sensacionais, e algumas passagens me fizeram rolar de rir.
— [...] Não passa de um conjunto de regras arbitrárias como xadrez ou tênis, ou... qual é mesmo o nome daquela coisa esquisita de que vocês ingleses brincam?
— Humm... críquete? Autodepreciação?
— Democracia parlamentar. P. 531
Os personagens principais também são muito compatíveis com a escrita de Adams: irreverentes, com o sutil humor britânico e bastante desprendidos do senso de normalidade. Pouco importa se o que está acontecendo no momento não faz sentido algum, desde que seu objetivo seja alcançado — seja lá qual for.
O caricato personagem de Zaphod Beeblebrox, presidente da galáxia, encaixa-se bastante nessa descrição, além de ser uma autoridade inconsequente, egoísta e sem autoridade alguma (uma possível crítica do autor, pois no Guia existe espaço pra tudo). Trillian, sua “navegadora” e companheira, talvez seja o elemento de sensatez em meio à confusão.
Com uma paciência sem tamanho, aguenta os caprichos de Zaphod e o ajuda em suas aventuras.
Ford Prefect, por outro lado, é o personagem com menos paciência de toda a série; ele não costuma levar Arthur a sério, apesar de salvar sua vida a cada 30 páginas, e tudo o que quer é... bem, é fazer o que quiser, sem ter de salvar algum planeta ou galáxia o tempo todo. Enquanto isso, Arthur é apenas um humano perdido no espaço, sem conhecimentos prévios ou qualquer preparo para os infinitos obstáculos com os quais se depara. Os dois passam por vários encontros, desencontros, viagens no tempo e até algumas guerras. Sendo Ford o “mentor”, a amizade dos dois se tornou outra fonte de ótimas cenas engraçadas.
Arthur estava trêmulo.
— Talvez — ele disse — eu devesse...
— Não — retrucou Ford, seco.
— O quê?
— Não tente telefonar para si mesmo em casa.
— Mas como você sabia?
Ford deu de ombros.
— Por que não? — insistiu Arthur.
— Falar consigo mesmo no telefone — respondeu Ford — não leva a nada.
— Mas...
— Veja — disse Ford. Pegou um telefone imaginário e apertou teclas imaginárias.
— Alô? — disse ele, no fone imaginário. — Gostaria de falar com Arthur Dent? Ah sim, bom dia. Aqui é Arthur Dent falando. Não desligue.
Lançou um olhar desapontado para o fone imaginário.
— Desligou! — disse, e depois colocou o fone imaginário cuidadosamente de volta em seu gancho imaginário. P. 284
Devo admitir, no entanto, que é uma história confusa. A vantagem de ser uma única narrativa, sendo a continuidade precisa dos livros algo bem impressionante (os livros foram escritos, respectivamente, em 1979, 1980, 1982, 1984 e 1992), não exime a série de algumas dúvidas e muitas caras de ué. Em alguns momentos, a trama fica completamente nonsense, com diálogos entre robôs e colchões, explicações sobre a arte de se fazer um sanduíche, a reencarnação de uma mosca em um coelho, viagens no tempo de 576 bilhões de anos, uma Terra povoada por gestores de RH, golfinhos desaparecidos, ratos superinteligentes e portas atenciosas. Essa perda de noção fica muito tangível na primeira metade do segundo livro, bem como no terceiro livro inteiro.
Em alguns capítulos, eu perdi a paciência e me perguntei mais vezes do que posso contar “mas o que é que isso tem a ver com a história?”. De vez em quando, a resposta era “é importante, e pode fazer falta na leitura”, mas geralmente era “isso não faz a menor diferença para a trama, mas é engraçado e pode ser interessante de ler”. Meu conselho? Apenas aceite e leia. Não tem muito o que fazer, e acredito que esse sentimento tenha me deixado muito mais simpática à constante confusão de Arthur; no final das contas, somos todos com ele.
Arthur estava olhando fixamente para fora da janela, franzindo a testa. [...] Fazia dois meses que ele voltara para casa. Retomar a sua vida havia sido ridiculamente fácil. As pessoas tinham uma memória incrivelmente curta, inclusive ele. Oito anos de perambulações pela Galáxia agora lhe pareciam não como uma espécie de pesadelo, mas como um filme gravado na tevê que ele deixara esquecido atrás de um armário, sem a menor vontade de assistir. P. 439
Em um nível mais sério, todas as divagações e mudanças súbitas no tempo e espaço tornam difícil acompanhar todos os personagens. Muitas vezes eu perdi Marvin de vista, para depois descobrir que ele tinha sido deixado para trás, mesmo. E, no final das contas, o personagem de alívio cômico é o robô mais depressivo da galáxia; há algo de cativante nele, apesar de seu discurso desmotivador e sua constante vontade de morrer. Eu simpatizei bastante com ele.
— Desculpe, será que eu disse algo que não devia dizer? — disse Marvin, seguindo em frente sem se virar. — Desculpem-me por respirar, embora eu nunca respire de fato, então nem sei por que estou dizendo isso. Ah, meu Deus, estou tão deprimido! Mais uma porta metida a besta. Ah, vida! Não me falem de vida. P. 60
Em suma, eu gostei bastante da experiência. Os livros são muito mais do que apenas uma história de ficção científica, e acredito que trouxe até alguns ensinamentos sobre uma ou outra aventura.
— Tudo o que você vê, ouve ou vivencia de qualquer jeito que seja é específico para você. Você cria um universo ao percebê-lo, então tudo no universo que percebe é específico para você. P. 576
Não diria que agrada a todos, justamente pelas divagações e humor nonsense, mas se você não se importar e estiver disposto a colocar a curiosidade acima do julgamento, vai encontrar várias surpresas boas. Bom, pelo menos foi assim comigo.
Ah, e é claro, há também o filme. Divertido e uma boa distração, não é 100% fiel ao livro e não deve ser buscado com expectativas muito altas, mas é interessante ver os personagens tomarem forma. Além disso, o elenco com Zoey Deschanel, Yasiin Bey, Alan Rickman, Martin Freeman, Sam Rockwell e Stephen Fry como narrador simplesmente pede para que o filme seja averiguado.
Deixo aqui uma última citação — que descreve a saga toda, até.
Desde que a Galáxia surgiu, vastas civilizações cresceram e desapareceram, cresceram e desapareceram, cresceram e desapareceram tantas vezes que é muito tentador pensar que a vida na Galáxia deve ser (a) similar a um enjoo marítimo, espacial, temporal, histórico ou similar e (b) imbecil. P. 293
site: http://livrosontemhojeesempre.blogspot.com.br/2016/07/o-guia-definitivo-do-mochileiro-das.html