larissa 03/01/2023
História: uma folha de rosto
De início, devo começar dando luz à verdade: não terminei a leitura. Em realidade, planejo finalizá-la em um futuro próximo, mas não sei quando (e sequer sei com que força de vontade o farei). Os relatos são muitos, diversos e minuciosamente precisos. Em contraponto, pode ser verificado um padrão, o qual gira em torno de uma mesma essência; isto é, o âmago da realidade da guerra. É devido à fórmula mencionada que eu decidi antecipar a resenha e, consequentemente, dar cabo a essa coceira.
Svetlana, a autora, apresenta-se como uma historiadora incorpórea, ainda que não abandone, ao longo da narrativa, a posição de jornalista: ?Não estou escrevendo sobre a guerra, mas sobre o ser humano na guerra (...). Sou uma historiadora de alma?. Nesse sentido, proponho, de início, uma reflexão singela: como poderia existir, portanto, qualquer tipo de alma isenta de contexto histórico e social? Em seguida, pode-se ampliar o pensamento com um fato irrevogável: é evidente que nenhuma história não só não narra a si própria, como também não ?se? acontece.
Como qualquer narrativa, há um alguém que encaminha, por rédeas, um caminho pré-estabelecido. Ao discorrer acerca do que ?se restou? da guerra, a autora não explicita uma devida ambientação daquilo que veio antes, o que é, visivelmente, uma artimanha perigosa. O problema reside naquilo que não é dito, na ausência de uma contextualização pautada na História; assim, Denise Lima, em sua obra ?Diálogo entre a sociologia e a psicanálise: o indivíduo e o sujeito?, levanta uma importante ressalva: ?a constituição do sujeito é incompatível se não se levam em conta fatos sociológicos e culturais?. Não há, por conclusão, um ?historiador de alma?.
Não ignoro a relevância dos relatos apresentados em ?A guerra não tem rosto de mulher?, pelo contrário. Em contrapartida, há um incômodo que persiste ao longo do desenvolvimento do livro. Incômodo esse que é potencializado pela presença do seguinte trecho na parte contrária à frente do exemplar: ?(...) [o livro] promete trazer novo entendimento sobre um dos eventos mais trágicos da história humana?, uma vez que o trecho parece sugerir alguma revelação importante, que, na verdade, nunca é dada. A presença fortificada de depoimentos femininos é, de certa forma, inovadora. Apesar disso, o assunto abordado não tem como alvo o debate para além de uma ?condição feminina? na guerra; sendo assim, não é proposto um ?alargamento? interseccional ao decorrer da narração.
A construção e seleção dos depoimentos é, por si só, tendenciosa. Svetlana defende, mais de uma vez, a existência incoerente de um ?ser humano biológico, e não apenas aquele que é filho de uma época e de uma ideia?. Com a permissão da palavra, é inegável a presença de certa desvalorização das ciências humanas por parte da autora. Nós, seres humanos, não somos uma unidade biológica, tal como Roque de Barros Laraia, antropólogo brasileiro, conclui: há sempre uma herança cultural e ideológica. Não somos uma formiga.
Por fim, reforço que é preciso (e urgente) ouvir e legitimar a voz das mulheres que foram marcadas pela, que marcam e que irão marcar a história da humanidade. Contudo, a elaboração de uma narrativa embasada em um protótipo de ?alma? é, sobretudo, demasiadamente simplista e superficial.
(03/01/2023)