Gilbamar 09/10/2010
SAUDADE DE MISS MARPLE
A singela cena ante nossos olhos é de uma pureza e ingenuidade ímpares: simpática e bondosa, a velhinha sentada no sofá lança um doce olhar para seus netos atentos e ansiosos, que aguardam o momento em que ela contará estórias para eles, entretendo-os porque lá fora chove e eles não podem brincar. Então ela, no semblante a meiguice expressa e um sorriso desenhado no rosto, começa: "Por volta da meia-noite, sob silêncio amedrontador, à meia luz, uma mão nervosa abriu devagar o vidro cheio de cianureto e despejou parte do conteúdo num copo onde já havia um agradável coquetel de frutas encimado por duas cerejas na borda. Depois, respirando fundo e sem pestanejar vai até a biblioteca para entregar a bebida mortífera a Mr. Robert Vanderroof. "É chegada a hora desse verme", pensou. Abre a porta, não sem antes bater suavemente dizendo, à guisa de anunciar sua presença, "Mr. Vanderroof?" Sem esperar resposta, entra. O homem está debruçado sobre a escrivaninha e parece dormir tranquilo, mas algo estranho chama a atenção de quem acabou de entrar: um filete de sangue ainda brilhante escorre sobre a escrivaninha, vindo da boca de Mr. Vanderroof. Alarma-se, aproxima-se e vê a adaga enfiada até o cabo no coração dele, pelas costas. A surpresa faz com que escape de sua garganta um grito quase abafado, de suas mãos cai o copo, quebrando em mil pedaços e espalhando o coquetel envenenado por todos os cantos. No chão, sangue empoçado. Outro assassino chegara antes. Alguém mais odiava Mr. Vanderrof tanto quanto"
Esse texto poderia ter sido escrito sem desdouro por aquela senhora inglesa madura e fleumática conhecida mundialmente como a Rainha do Crime, a famosa escritora Agatha Christie. Com seu gracioso ar de vovó amorosa ela descreveu com escabrosos detalhes dezenas de assassinatos fictícios da literatura policial e conquistou milhões de leitores ávidos por sua maneira sui gêneris de escrever. Ninguém ou raramente alguém lograva descobrir o ou os culpados pelos crimes relatados em seus livros. Somente Miss Marple e Hercule Poirot, esses dois personagens saídos de sua imaginação prolífera, conseguiam tal façanha. A primeira, exatamente como a própria Agatha Christie, era uma senhora idosa com seus inúmeros achaques, mas acurada nas observações dos envolvidos nos crimes e atenta à mais sutil das provas; o outro, um detetive belga cheio de manias e idiossincrasias irritantes, que usava as células cinzentas do cérebro e ficava inquieto enquanto não colocasse no lugar devido qualquer objeto que estivesse em dissonância com o ambiente, como um copo de cristal fora de estética pela arrumação do mordomo ou um livro ligeiramente desproporcional ao ângulo de simetria das demais obras de alguma bibioteca.
Embora admirasse o modus operandi das investigações feitas por Hercule Poirot até o ápice da estória, quando enfim toda a verdade com seus mínimos detalhes era revelada e o(a)assassino(a) descoberto(a), surpreendendo-nos, foi Miss Marple, a velhinha detetive e seus métodos nada ortodoxos, quem mais deixou saudade em minhas lembranças literárias quando sua criadora faleceu em Wallingford, na Inglaterra, em 12 de janeiro de 1976, de causas naturais. Gostaria que ela tivesse escrito mais livros protagonizados pela simpática moradora de Saint Mery Mead para deleitar-me em tentar acompanhar seu raciocínio incomum e verificar, nas últimas páginas, que o personagem de quem eu suspeitava ser o assassino não chegou nem perto da vítima quando esta foi apunhalada. Mas vale a pena a releitura de sua completa bibliografia muitas e muitas vezes, porque a técnica por ela usada no desenrolar de suas criativas e inteligentes estórias policiais fascinava e persiste fascinando leitores e leitoras em todo o Globo Terrestre. Mesmo já tendo passado trinta e quatro anos depois de sua morte, as obras de Agatha Christie continuam vendendo no mundo inteiro e sendo lidas com perplexidade por bilhões de leitores apaixonados pela singeleza dessa velhinha simpática que contava estórias de intrincados assassinatos misturando a ternura de olhares escondendo criminosos munidos de adagas afiadas e venenos poderosos com a circunspecção e o azedume de quem, no entanto, tinha no coração um grande horror à morte.
Gilbamar de Oliveira Bezerra