.Igor 11/04/2024
Dessa vez, iniciarei fazendo uma pequena adaptação da sinopse oficial: acho que contexto vai ser necessário, especialmente porque o texto ficou mais extenso que o esperado. Dito isso, vamos lá.
Nos últimos meses do pontificado de João Paulo II, uma misteriosa exposição é montada nos museus do Vaticano. Seu curador, Ugo Nogara, alega ter descoberto um grande segredo com base em pistas fornecidas pelos quatro evangelhos - e um quinto, um milenar manuscrito que reúne todos eles, o Diatessarão - sobre a relíquia mais controversa do Cristianismo: o Sudário de Turim. Segundo ele, há provas concretas de que o sudário é autêntico. No entanto, suas descobertas podem pôr fim aos esforços do papa para reconciliar as duas maiores igrejas cristãs do mundo: a Católica Romana e a Ortodoxa.
No centro desse conflito, dois irmãos seguem rumos diferentes pelas vielas do Vaticano. Simon é padre da Igreja Católica Romana, com um futuro promissor. Alex, o mais novo, é sacerdote da Igreja Católica Oriental, uma vertente entre a igreja de Roma e os ortodoxos. Quando Alex recebe uma ligação de Simon pedindo sua ajuda, não imagina que o encontraria diante do corpo de Ugo Nogara, morto uma semana antes da inauguração da polêmica exposição. Na mesma noite, a casa de Alex é invadida por um estranho. A polícia não consegue encontrar um suspeito, e o sacerdote inicia sua investigação. Para encontrar o culpado, Alex precisa descobrir a qualquer custo o segredo mantido por Ugo. Mas, à medida que começa a compreender a verdade, ele percebe que terá que derrotar um inimigo sem rosto para salvar a própria família.
Com essa sinopse é possível perceber, ainda que superficialmente, que todos os ingredientes para um grande thriller estão presentes em "O Quinto Evangelho": um assassinato misterioso, irmãos que seguem caminhos diferentes, uma grande organização mais misteriosa ainda (no caso, a Igreja) e um objeto (também misterioso, claro), importante para todos, mas esse livro é muito mais que isso.
Antes de explicar essa afirmação acima, devo avisá-los de uma coisa: esse livro é denso. Não estou me referindo ao número de páginas per se, mas à quantidade de informações que o autor apresenta ao leitor; esse não é mais um daqueles livros que se pode ler em uma sentada, que tudo irá ser absorvido de uma vez só. Ok, isso pode até ser feito, mas muito do que o livro apresenta será perdido, e isso seria cruel com o autor.
Isto posto, voltarei um pouco no tempo. A Igreja Católica tem sua origem não exatamente com o nascimento ou a morte de Jesus Cristo, mas em meados dos anos 30 d.C. e 40 d.C., e a elaboração dos Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) tem uma data ainda mais posterior, surgindo, segundo alguns estudos mais recentes, a partir do ano 100 d.C. Seria preciso mais alguns séculos para ela oficialmente ser reconhecida como religião, quando o Imperador Constantino de Constantinopla (outrora Bizâncio e agora Istambul) assinou o Edito de Milão em 313 d.C.
Durante aproximadamente sete séculos, a Igreja Católica expandiu sua influência pela Europa, ao mesmo tempo em que solidificava sua estrutura interna. Nesse período, a Igreja tinha duas esferas principais de influência, Roma e Constantinopla, que começavam a ter discordâncias ideológicas. As relações entre Oriente e Ocidente sofreram com anos de disputas eclesiásticas e teológicas, tais como as questões sobre a fonte do Espírito Santo ("Filioque"), se deve-se usar pão fermentado ou não fermentado na eucaristia, as alegações do papa de primazia jurídica e pastoral, e a função de Constantinopla em relação à Pentarquia (um antigo sistema eclesiástico, criado por Justiniano I de Constantinopla, baseado no comando dos patriarcas de Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém). Além dessas questões teológicas, o distanciamento entre Roma e Constantinopla tem origem política, mais especificamente com a transferência da capital do Império Romano para esta última no século IV.
Essa diferença crescente de pontos de vista entre as duas igrejas foi fortalecida com a ocupação das antigo território romano pelos povos "bárbaros", ao passo que o Império do Oriente manteve-se praticamente intocado. Enquanto a cultura ocidental era pouco a pouco reerguida sob a influência de povos como os germânicos, o Oriente permaneceu desde sempre ligado à tradição da cristandade helenística. Era a chamada Igreja de tradição e rito grego. Isto foi exacerbado quando os papas passaram a apoiar o Sacro Império Romano-Germânico no oeste, em detrimento do Império Bizantino no leste, sem contar as disputas sobre os limites da autoridade papal.
Passados mais alguns séculos dessas tensões, Miguel Cerulário se tornou patriarca de Constantinopla. No ano de 1043, ele deu início a uma campanha contra as Igrejas latinas na cidade de Constantinopla, ordenando o fechamento de todas em 1053, envolvendo-se na discussão teológica da natureza do Espírito Santo.
Em 1054, o legado papal (comitiva dos líderes da Igreja de Roma) viajou a Constantinopla a fim de repudiar a Cerulário o título de "Patriarca Ecumênico" e insistir que ele reconheça a alegação de Roma de ser a mãe das igrejas. O principal propósito dessa comitiva foi procurar ajuda do Império Bizantino para libertar a Itália de uma invasão normanda, e lidar com recentes ataques por Leão de Ácrida (um importante líder religioso da Bulgária) contra o uso de pão não fermentado e outros costumes ocidentais, ataques que tinham apoio de Cerulário. Em face da recusa de Cerulário em aceitar as demandas, o líder do legado, cardeal Humberto, excomungou-o, e Cerulário por sua vez excomungou Humberto e os outros legados. Esse evento é conhecido hoje como Grande Cisma, ou Cisma do Oriente, e marca a divisão do Cristianismo original em Igreja Católica Apostólica Romana e em Igreja Católica Ortodoxa.
Essa primeira divisão interna (não estou incluindo o Protestantismo aqui simplesmente porque a Reforma é bem posterior, ocorrendo no início do século XVI) existe há quase mil anos na Igreja Católica e mesmo depois de tanto tempo, as relações entre Ocidente e Oriente sempre foram tensas, para dizer o mínimo. Quando o polonês Karol Wojty?a se tornou o Papa João Paulo II em 1978, uma de suas metas mais importantes era melhorar as relações entre essas duas vertentes da Igreja Católica, algo pelo qual ele batalhou até o fim do seu papado.
Esse breve (e provavelmente chato de se ler) contexto histórico é importantíssimo para se entender melhor "O Quinto Evangelho". Simon e Alex Andreou (os protagonistas) vivem no Vaticano desde muito pequenos; isso não é algo inédito, já que sempre houve muitas crianças dentro daqueles muros, mas em um país pouco maior que um campo de golfe (44 hectares), seu pai era o único sacerdote que tinha filhos. Ele era integrante da Igreja Católica Grega, uma igreja oriental que seguia preceitos teológicos e eclesiásticos significativamente diferentes da Apostólica Romana, mas que reconhecia a autoridade do Papa do Vaticano. A Igreja Católica Grega faz parte das chamadas Igrejas Católicas Orientais, um grupo de 23 instituições que podem ser vistas como um meio termo entre os ensinamentos católicos Romanos e Ortodoxos. Uma das diferenças entre os sacerdotes dessas Igrejas era que um padre católico grego poderia se casar e ter filhos antes de ser oficialmente ordenado padre. Sendo os únicos diferentes em uma cidade de padres celibatários tem seu peso, mas o pai dos garotos tinha um trabalho importante para fazer: tentar melhorar as relações entre Ortodoxos e Apostólicos, uma vez que para ele, a sua igreja não precisaria ser apenas um meio termo, mas uma verdadeira ponte entre Oriente e Ocidente.
Essa missão pessoal guiou toda a vida do padre Andreou e influenciou bastante seus filhos. Após a morte de seu pai, Simon, o mais velho, decidiu entrar para o seminário e vestir a batina de Roma, enquanto Alex seguiu os passos do pai, sendo ordenado sacerdote pelo rito grego, mas essa diferença de caminhos nunca abalou a união dos irmãos. Em 2004, ano em que se passa o livro, Simon se tornou membro da Secretaria de Estado do Vaticano, responsável pelas relações interestatais da Igreja, e eventualmente se engajou na antiga luta do pai em melhorar as relações entre ambas as faces do Catolicismo. Alex passou por um casamento problemático e vive atualmente com seu filho Peter, enquanto ensina sobre os evangelhos no Seminário.
Quando os surgem os eventos decorrentes da morte de Ugo Nogara (curador da possivelmente polêmica exposição, caso tenham esquecido), ambos se vêem envolvidos nessa trama, especialmente por estarem diretamente ligados à exposição: quando Ugo conheceu Simon, eles ficaram amigos rapidamente, o que se deve em grande parte pelo fato de que o curador, ao buscar provar que o Sudário é real, ajudaria bastante na união das Igrejas Católicas; como as buscas de Ugo envolviam os evangelhos canônicos e o Diatessarão (ele é uma compilação dos quatro evangelhos canônicos, escrito entre 160 e 175 d.C.), Simon lhe apresentou Alex, que se tornara um dos maiores especialistas no estudo dos evangelhos no Vaticano.
Além desses personagens, o próprio Vaticano é fundamental para o enredo. Esse livro é fruto de 10 anos de pesquisa histórica, teológica, legal e até mesmo arquitetônica. A cidade é descrita com tanta atenção aos detalhes que fica fácil se imaginar caminhando por aquelas ruas ligeiramente apertadas. Mas não é apenas o aspecto geográfico que é bem retratado, mas até mesmo as nuances da política interna e externa do Vaticano são abordados com uma precisão quase cirúrgica; até mesmo o Direito Canônico (é o ramo do Direito que se aplica exclusivamente aos membros da Igreja Católica) é bem abordado na obra, o que é muito raro de se ver. Sério, poucas coisas além da trama foram "romanceadas" nesse livro.
Esse emaranhado de relações tornam a morte de Ugo Nogara algo com repercussões extremamente pessoais para os irmãos Andreou, e uma das coisas que o autor conseguiu explorar de forma magnífica, elevando "O Quinto Evangelho" a uma categoria diferente de romance policial ou histórico.
Ian Caldwell trata o rigor histórico/científico quase como uma assinatura, mas nunca deixando de lado o desenvolvimento de seus personagens. Alguns anos atrás (certo, há uns 15 anos) li seu primeiro livro - escrito junto com seu colega de faculdade, Dustin Thomason - "O Enigma do Quatro", e até hoje acho incrível como eles conseguiram criar algo tão singular.
Assim como seu irmão mais velho, "O Quinto Evangelho" começa devagar, soltando informações aos poucos, o que pode até afastar alguns leitores mais impacientes, até o momento em que a história começa a se desenrolar com uma fluidez tão grande que, quando se percebe, o livro termina, e não de forma capenga ou incompleta, mas com um final belíssimo.
E com isso, encerrarei esse textão. Caso tenham tido paciência de ler até aqui e também tenham se interessado por ?O Quinto Evangelho?, definitivamente recomendo a leitura.