Alane.Sthefany 17/04/2022
A Morte é Um Dia Que Vale a Pena Viver - Ana Claudia
A vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida.
Saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida de quem amamos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com nosso tempo, nosso movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.
Quase todo mundo pensa que a norma é fugir da realidade da morte.
Mas a verdade é que a morte é uma ponte para a vida.
A VIDA É FEITA DE HISTÓRIAS O QUE EU FIZ COM A MINHA?
[Relato de uma experiência com um paciente]
Conheci o senhor Antonio. O professor já havia me relatado os principais fatos a respeito do paciente que eu entrevistaria: homem, casado, alcoólatra, tabagista, dois filhos, com cirrose hepática, câncer no fígado e hepatite B; estava em fase terminal.
Comecei a penosa entrevista em busca de detalhes do passado: quando andou, quando falou, as doenças da infância, os antecedentes familiares. A história da moléstia atual.
Sua queixa principal era a dor na barriga, do lado direito, bem abaixo das costelas. Falou que a barriga estava muito grande e isso dificultava a respiração. À noite sentia muito medo e a dor piorava. E, com a piora da dor, o medo aumentava. Tinha medo de ficar sozinho, de estar sozinho na hora da morte. E ainda tinha o medo de não acordar de manhã. Com os olhos vazando lágrimas, disse que merecia tudo isso.
Tinha sido um homem muito ruim na vida, e sua mulher dizia que Deus o estava castigando. Achava que ela tinha razão.
Me veio uma fantasia: se eu o tocasse, poderia sentir a dor dele. Ao mesmo tempo, havia o medo de lhe causar mais dor. Fui buscar ajuda.
Primeiro tentei o posto de enfermagem. A enfermeira do andar mal levantou os olhos das suas anotações quando perguntei se poderia dar mais remédio para acalmar a dor do senhor Antonio.
? Ele acabou de tomar dipirona. Tem que esperar fazer efeito.
? Mas ele ainda está com dor! E já tem mais de uma hora que deram a medicação ? respondi.
? Não tem mais nada a fazer a não ser esperar a próxima dose, daqui a cinco horas ? disse ela.
? Mas e agora? Ele vai ficar com dor esse tempo todo? Como assim, não tem nada a fazer?
Já falei com o médico de plantão e tentei convencê-lo a sedar o paciente. O senhor Antonio precisa morrer logo.
? Morrer? Mas por que ele não pode ter menos dor antes de morrer?
Entendi então o que era morrer de uma doença incurável em um hospital: todo o sofrimento do mundo em uma pessoa só, e todas as vozes terríveis ecoando: ?Não há nada a fazer... Não há nada a fazer.?
[...]
O tempo foi passando e fui me distanciando de todo aquele mundo de horrores das vidas abandonadas que esperavam a morte no hospital.
Talvez eu não tivesse talento, mas decidi que deveria insistir. Quem sabe eu não me acostumaria a tudo aquilo, como todos os outros se acostumam?
Decidi voltar para a faculdade e trabalhar como voluntária em uma maternidade da periferia. Passava madrugadas massageando as costas das parturientes que urravam de dor e não tinham escolha: naquele tempo, o governo não autorizava anestesia para parto normal, então o jeito era sofrer. Cheguei a pensar que, finalmente, tinha encontrado uma forma de ser médica sem ter que lidar com tanto sofrimento desnecessário. Eu sabia que a dor daquelas mulheres iria passar, e a alegria de conhecer seus filhos traria muito sentido para aqueles momentos difíceis. Como Nietzsche, eu também acreditava que o Homem tolera qualquer ?como? se tiver um ?porquê?.
Durante a faculdade, quando via alguém morrendo em grande sofrimento (e, num hospital, isso acontece quase sempre), eu perguntava o que era possível fazer, e todos diziam: nada. Isso não descia. Esse ?nada? ficava engasgado no meu peito, doía de doer fisicamente, sabe? Eu chorava quase sempre. Chorava de raiva, de frustração, de compaixão. Como assim, ?nada?? Não me conformava que os médicos pudessem não se importar com tamanha incompetência. Não em relação a evitar a morte, porque ninguém vive eternamente. Mas por que abandonavam o paciente e a família? Por que o sedavam, deixando-o incomunicável?
Logo começou a gozação comigo, a médica que não aguentava ver paciente doente.
Na faculdade não se fala sobre a morte, sobre como é morrer. Não se discute como cuidar de uma pessoa na fase final de doença grave e incurável. Os professores fugiam das minhas perguntas, e alguns chegaram a dizer que eu deveria fazer alguma especialidade que envolvesse pouco ou nenhum contato com pacientes. Diziam que eu era sensível demais e não seria capaz de cuidar de ninguém sem sofrer tanto quanto meus pacientes.
Eu gostava demais de conversar com os pacientes e saber de suas vidas além de suas doenças.
Por meu dom de empatia e pelo comprometimento, acompanhava muitos pacientes em assistência domiciliar, indicada por meus chefes. Eram pessoas já em fases muito avançadas do câncer; sem possibilidade de cura ou controle, recebiam tais cuidados em casa.
Até que chegou à minha vida um rapaz de 23 anos, Marcelo, com diagnóstico de câncer de intestino. A doença, agressiva, não mostrou nenhuma resposta ao tratamento oncológico.
Primeira visita: dor. Controlada em poucos dias, deu lugar à sonolência. A doença avançou para o fígado; ele alucinava e gritava de medo. Em uma sexta-feira, noite de chuva forte em São Paulo, chego à residência e encontro o abdome de Marcelo deformado pelas massas tumorais. Ele vomita uma, duas, três vezes. Sangue e fezes se misturam no quarto. Há cheiro de morte. Ele grita. Quando me vê, estende os braços na minha direção e sorri. Volta a gritar, e seus olhos refletem o medo ? o maior medo que eu já presenciei.
O cheiro é insuportável. Sangue, fezes, incenso, medo. Morte.
Preciso de morfina. Para ele, para mim, para o mundo.
Algo que possa sedar tamanha dor e tamanha impotência.
[...]
Fadiga de compaixão ou estresse pós-traumático secundário ocorre preferencialmente com profissionais de saúde ou voluntários que têm como principal ferramenta de ajuda a empatia. Pessoas que lidam com tanto sofrimento que acabam por incorporar a dor que não lhes pertence. E aí estava eu, vivendo a maior dor da minha carreira, resultado do meu melhor dom: empatia. Ironia?
E agora? Como eu lido com a dor do outro sem tomá-la para mim?
?HAVERÁ OUTRO MODO DE SALVAR-SE? SENÃO O DE CRIAR AS PRÓPRIAS REALIDADES??
CLARICE LISPECTOR
Não posso decepcionar o mundo inteiro.
Fico divagando sobre os papéis que ando desempenhando e sobre como tenho me saído mal. Não sou boa mãe, não sou boa esposa. Tenho me esforçado muito para ser boa médica, mas começo a duvidar do que faço. Conversar com os amigos que tenho hoje me irrita, pois todos têm as mesmas queixas há anos. Por que as pessoas não mudam? Por que eu não mudo? De vida, de cabelo, de país, de planeta? Exausta, sinto a dor forte na lombar, mas não me mexo. Mereço a companhia dessa dor.
O sofrimento de perceber a nossa mortalidade não começa somente no processo de morrer. Esse assombro já está presente na possibilidade de um diagnóstico, quando estamos apenas na expectativa de receber o resultado de um exame, por exemplo. O percurso entre a certeza do diagnóstico de uma doença ruim e incurável e a morte é acompanhado de sofrimento.
Existem milhares de pessoas com câncer.
O sofrimento, porém, é algo absoluto, único. Totalmente individual.
Diante de uma doença grave e incurável, as pessoas entram em sofrimento desde o diagnóstico. A morte anunciada traz a possibilidade de um encontro veloz com o sentido da sua vida, mas traz também a angústia de talvez não ter tempo suficiente para a tal experiência de descobrir esse sentido.
(...) o doente toma consciência de sua mortalidade. Essa consciência o leva à busca de sentido de sua existência.
No exame físico, consigo avaliar quase todos os órgãos internos de um paciente. Com alguns exames laboratoriais e de imagem, posso deduzir com muita precisão o funcionamento dos sistemas vitais. Mas, observando um ser humano, seja ele quem for, não consigo saber onde fica sua paz. Ou quanta culpa corre em suas veias, junto com seu colesterol. Ou quanto medo há em seus pensamentos, ou mesmo se estão intoxicados de solidão e abandono.
Diante de uma doença grave e de caminho inexorável em direção à morte, a família adoece junto. O contexto de desintegração ou de fortalecimento dos laços afetivos permeia muitas vezes fases difíceis da doença física de um de seus membros.
Os médicos profetizam: ?Não há nada mais a fazer.? Mas eu descobri que isso não é verdade. Pode não haver tratamentos disponíveis para a doença, mas há muito mais a fazer pela pessoa que tem a doença.
Minha busca do conhecimento a respeito de como cuidar das pessoas com doenças graves e incuráveis, em todas as suas dimensões, especialmente quando se aproximam do fim de suas vidas, sempre foi fruto de muito empenho e teimosia (hoje me dizem que não sou teimosa, sou ?determinada?). Teimosia ou determinação dizem respeito à mesma energia, mas são identificadas somente no fim da história. Se deu errado, era teimosia. Se deu certo, era determinação.
Preciso oferecer o melhor de meu conhecimento técnico junto com o melhor que tenho dentro de mim, como ser humano.
A parte técnica do saber médico, ou seja, a habilidade de avaliar históricas clínicas, escolher remédios e interpretar exames exige algum esforço, mas, com o tempo, vai ficando mais simples. Já a capacidade de olhar nos olhos das pessoas de quem cuido e de seus familiares, reconhecendo a importância do sofrimento envolvido em cada história de vida, nunca pode acontecer no espaço virtual do modo automático.
Preciso manter uma atenção plena em cada gesto e ser muito cuidadosa com minhas palavras, com meu olhar, com minhas atitudes e, principalmente, com meus pensamentos.
É impressionante como todos adquirem uma verdadeira ?antena? captadora de verdade quando se aproximam da morte e experimentam o sofrimento da finitude. Parecem oráculos. Sabem tudo o que realmente importa nessa vida com uma lucidez incrível. Como recebem acesso direto à própria essência, desenvolvem a capacidade de ver a essência das pessoas à sua volta.
Cerca de 800 mil morrem de morte anunciada, ou seja, de câncer, doenças crônicas e degenerativas. De cada dez pessoas que estiverem lendo estas minhas palavras, nove terão a oportunidade de perceber sua finitude de maneira concreta, por meio da experiência de conviver com uma doença grave na vida. Um dia seremos parte dessa estatística, e o mais doloroso é que os nossos amados também.
(...) o fim natural da vida humana.
Acredito que a vida vivida com dignidade, sentido e valor, em todas as suas dimensões, pode aceitar a morte como parte do tempo vivido assim, pleno de sentido. Acredito que a morte pode chegar no tempo certo.
As pessoas morrem como viveram. Se nunca viveram com sentido, dificilmente terão a chance de viver a morte com sentido.
Dizem que é apenas uma questão de bom senso. O problema é que nem todo mundo tem bom senso, embora todos pensem que têm! Nunca tive notícia de alguém que tenha procurado um psicólogo dizendo: ?Vim aqui me tratar porque não tenho bom senso.?
A empatia tem seu perigo; a compaixão, não. Compaixão vai além da capacidade de se colocar no lugar do outro; ela nos permite compreender o sofrimento do outro sem que sejamos contaminados por ele. A compaixão nos protege desse risco.
Na empatia, às vezes cega de si mesma, podemos ir em direção ao sofrimento do outro e nos esquecermos de nós.
Vou tentar explicar o risco da empatia cega: suponha que se você tem combustível no seu carro para rodar cem quilômetros. Se você tiver autonomia para cem e andar cem, você não voltará para casa.
Simples assim. Se você tem capacidade de se colocar no lugar do outro, porém desconhece sua autonomia, corre o risco de entrar no lugar dele e nunca mais voltar para o seu.
Se essa pessoa deseja dar conta e isso significa ultrapassar os próprios limites, então terá que construir nesse percurso ?paradas? para abastecer.
Às vezes não temos escolha. Às vezes, é a pessoa que amamos que está morrendo, e passaremos do nosso limite.
A empatia permite que nós nos coloquemos no lugar do outro e sintamos sua dor, seu sofrimento. A compaixão nos leva a compreender o sofrimento do outro e a transformá-lo. Por isso precisamos ir além da empatia. Todos nós precisamos de pessoas capazes de entender nossa dor e de nos ajudar a transformar nosso sofrimento em algo que faça sentido.
MEDO DA MORTE, MEDO DA VIDA
?Não tenho medo da morte mas medo de morrer, sim a morte é depois de mim mas quem vai morrer sou eu o derradeiro ato meu e eu terei de estar presente assim como um presidente dando posse ao sucessor terei que morrer vivendo sabendo que já me vou.?
Gilberto Gil
Muita gente diz ter medo da morte. E me espanto quando vejo como vivem: bebem além da conta, fumam além da conta, trabalham além da conta, reclamam além da conta, sofrem além da conta. E vivem de um jeito insuficiente. Gosto de provocar dizendo que são pessoas corajosas. Têm medo da morte e se apressam loucamente em encontrá-la.
Quem diz ter medo da morte deveria ter um medo mais responsável.
O medo não salva ninguém da morte, a coragem também não.
Podemos tentar acreditar que enganamos a morte, mas somos ignorantes demais para tal feito.
Não morremos somente no dia da nossa morte. Morremos a cada dia que vivemos, conscientes ou não de estarmos vivos.
Morreremos antes da morte quando nos abandonarmos. Morreremos depois da morte quando nos esquecerem.
Todos nós vamos morrer um dia. Mas, durante a vida, nos preparamos para as possibilidades que ela pode proporcionar.
Sonhamos com nosso futuro e vamos à luta. Sonhos tão humanos de ter uma carreira, uma família, um amor ou vários, filhos, casa própria, viagens, ser alguém na nossa vida ou na vida de alguém. Buscamos orientação somente para as coisas mais incertas. Quem garante que vamos ter sucesso na carreira? Quem garante que encontraremos o amor da nossa vida? Quem garante que teremos filhos ou não?
Ninguém garante nada sobre essas possibilidades. Mas a morte é garantida. Não importa quantos anos viveremos, quantos diplomas teremos, qual o tamanho da família que formaremos. Com ou sem amor, com ou sem filhos, com ou sem dinheiro, o fim de tudo, a morte, chegará. E por que não nos preparamos? Por não conversamos abertamente sobre essa única certeza?
Rilke, em Cartas a um jovem poeta, traz aquela que é, na minha opinião, a mais sublime explicação para o que vivenciamos no final da vida. Seja como expectadores, seja como protagonistas, a morte é um espaço onde as palavras não chegam.
Na vida humana, talvez somente a experiência de nascer possa ser tão intensa quanto o processo de morte. E talvez seja por isso mesmo que tememos tanto esse tempo. O mais inquietante é que todos nós passaremos por ela ou acompanharemos a morte de quem amamos.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMPO
?Será que é tempo Que lhe falta para perceber? Será que temos esse tempo Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara, tão rara...?
Lenine
O que determina o significado do que foi vivido é o ?como foi vivido?.
Morte, e é isso o que muitos temem e não querem. As pessoas não querem ter mais tempo para pensar na morte.
Mas vamos supor que você esteja disposto a essa aventura. Então tente responder: como seria o seu tempo quando você estivesse em um leito de hospital, à espera de que alguém entrasse no quarto? Como seria a espera pelo momento de virem trocar a sua fralda? Como seria enquanto você espera o banho, o remédio para a dor? Penso que, se os médicos tivessem noção do quanto aquele momento da presença deles é esperado, talvez prestassem mais atenção ao que fazem e dizem quando estão na frente do paciente e de sua família.
Nosso tempo por aqui não voltará, pois não é possível economizar tempo, poupar tempo. Gastamos tempo com bobagens, com sofrimentos desnecessários.
Você se apega a tudo: às pessoas, às roupas, ao dinheiro, ao carro. Bens materiais que compra e leva para casa. Mas não é possível segurar o tempo. Em relação a ele, a única coisa de que podemos nos apropriar é a experiência que ele nos permite construir o tempo todo.
O que você vai fazer com esse tempo que vai passando? O que você está fazendo com esse tempo que está passando? Para mim, essa reflexão é a chave geral que ?liga? a lucidez das escolhas. O que é que eu faço com o meu tempo? Certa vez, fui a uma entrevista para trabalhar em um hospital. O entrevistador perguntou sobre meu currículo, minha experiência. Depois me deixou à vontade para fazer as minhas perguntas. ?Por que você acha que eu acharia bom trabalhar aqui??, eu quis saber. Ele gaguejou. Perguntei algo mais pessoal então:
?E por que você trabalha aqui? Por que você investe oito horas do seu dia aqui? Por que você põe um terço da sua vida aqui??
Soube que ele pediu demissão algumas semanas depois da minha entrevista. Talvez minhas perguntas tenham deixado claro o mau uso de seu tempo de vida. Quando vem a percepção de que estamos abandonando o nosso tempo, matando-o, aí a escolha é muito mais urgente; a mudança tem que vir agora mesmo.
A experiência do tempo pode passar despercebida, mas também podemos viver um momento que dure cinco minutos e que seja tão incrível, tão especial que se tornará eterno na nossa lembrança. O tempo transformador não depende da duração.
A experiência da morte tem um imenso potencial de transformação em um curtíssimo espaço de tempo.
Quem a pessoa pensava que era, ou mesmo quem a família pensava que ela era: tudo pode mudar completamente no final. A última impressão é a que fica. Como a pessoa se comporta na perda define a impressão que deixará. Se está em um emprego de que não gosta e começa a aprontar para ser mandada embora, os que estão à sua volta terão a percepção daquilo que um profissional não deve fazer. Quando ela está no final de um relacionamento e começa a trair e a escrever uma lista de queixas para justificar o final da história, é essa impressão nociva que ficará.
Quando adoecemos, a percepção que temos do tempo é muito diferente de quando estamos saudáveis. O tempo da espera parece que dura para sempre.
A espera é muito difícil: é o oposto da atividade.
Como a pessoa não pode fazer coisas, é como se não estivesse viva.
?Então agora não posso fazer nada? Não tem nada que eu possa fazer?? A medicina não pode fazer nada. Espera-se a morte, então.
Mas o problema mais difícil não é a morte, é esperar por ela.
O psiquiatra francês Eugène Minkowski (1885-1972), um estudioso desse ?tempo vivido?, explica muito bem sobre três perspectivas duais do tempo.
A primeira perspectiva dual envolve a espera e a atividade. Esperar alguma coisa significa não fazer porque o resultado não depende de nós. A espera passa por uma percepção dolorida do tempo.
O segundo processo dual diz respeito à relação entre desejo e esperança. O desejo pressupõe a busca de alguma coisa que não temos.
A esperança já é uma espera modificada pelo otimismo. A espera está sempre relacionada a algo que vai acontecer no futuro. A esperança pode estar em qualquer tempo. Podemos ter esperança de um resultado positivo de algo que já aconteceu. Exemplo prático: estou esperando o resultado de uma biópsia. Espero o resultado de um procedimento que já foi realizado, e tenho a esperança de que não seja câncer. A esperança alivia a dor nesse momento.
O terceiro momento dual do tempo, e o que me encanta mais, é a prece e a ação ética. A prece é descrita como a relação com algo que encontramos dentro de nós, um espaço de comunicação com algo maior que nós: algo ou alguém sagrado, uma divindade, um deus. Esse espaço interno de comunicação com algo maior nos torna mais poderosos. Fizemos tanto; fizemos tudo o que estava ao nosso alcance.
Então, decidimos nos conectar com algo mais poderoso dentro de nós mesmos e nos superamos.
Um exemplo claro para mim de ação ética é quando ouço uma mãe dizendo ao filho moribundo:
?Pode ir.? Em um primeiro instante, ela talvez tenha feito a prece pela cura, mas aí se conecta com essa força e consegue entender que o melhor não é o que ela deseja que aconteça. A mãe do nosso exemplo olha para aquele instante e entende que, para o filho, o melhor talvez seja justamente aquilo que doerá tanto se ela aceitar. Mas aceita e liberta, por amor.
(...) é algo que tem que ser feito, mesmo que não seja o nosso desejo. Aliás, algo que acontecerá independentemente do nosso desejo.
Um modelo experimental da ausência é entrarmos no metrô. Quem está no metrô nunca está lá; apenas sai de um lugar para chegar a outro. Naquele monte de gente não tem ninguém presente.
Quando estamos no metrô pensamos: ?Quanto tempo falta para chegar à minha estação?? Para muitas pessoas, a vida é como estar no metrô com os olhos vendados: elas entraram em um lugar que não sabem direito onde fica, não sabem onde vão descer e não estão presentes!
Simplesmente estão dentro. Então a porta se abre e alguém pode chamar: ?Ana Cláudia, vamos descer!? Já?
Quando morre uma pessoa próxima, refletimos sobre a nossa vez de deixar o trem. Refletimos sobre a nossa morte: quantas estações faltam para chegar à estação da minha vez?
O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade estão torcendo para que o tempo passe mais rápido e sua morte se aproxime mais rápido. Mas o tempo passa no tempo dele, indiferente à torcida para apressar ou retardar sua velocidade.
O que separa o nascimento da morte é o tempo. Vida é o que fazemos dentro desse tempo; é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção ?vida? não é um botão ?on/off? que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. O tempo corre em ritmo constante. Vida acontece todo dia, e poucas vezes as pessoas parecem se dar conta disso.
Alguém está morrendo diante dos seus olhos. Você pode se sentir à margem da cena e isso é muito inquietante: ?O que é que eu vou fazer agora? Esta pessoa está morrendo, e o que tenho que fazer por ela? O que posso fazer por ela? O que devo fazer por ela? O que eu quero fazer por ela?? E enquanto você se faz esse tanto de perguntas, o tempo passa, a vida passa, e a pessoa sob seus olhos passa.
Todas as pessoas morrem, mas nem todas um dia poderão saber por que viveram.
Não sei por que uma criança morre. Não tem explicação uma criança morrer. Mas elas morrem. Eu não sei por que é que os jovens morrem, mas eles morrem. Os velhos morrem, e apesar de ser mais ou menos óbvio que quando ficamos velhos podemos morrer, nem sempre é simples aceitar este destino lógico. Não é raro nos depararmos com pessoas que não aceitam que seus amados, mesmo que idosos, morram. Sejam advogados ferozes, políticos corruptos, ricos ou pobres, de qualquer cor, de qualquer raça ou sexo. Sejam voluntários, sejam idosos ou jovens, a morte um dia vai bater à porta.
Poderá vir acompanhada de uma doença e de sofrimento. Estejamos preparados ou não. Então, pressupor que precisamos nos preparar para a morte não ajuda a evitar esse encontro. Mas ajuda a evitar o temor desse encontro.
Enquanto as pessoas não olharem para a morte com a honestidade de perguntar a ela o que há de mais importante sobre a vida, ninguém terá a chance de saber a resposta.
O problema é que caminhamos ao lado de pessoas que pensam que são eternas. Por causa dessa ilusão, vivem suas vidas de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o verdadeiro, distanciadas da própria essência. Pessoas que não gostam de falar ou pensar sobre a morte são como crianças brincando de esconde-esconde numa sala sem móveis. Elas tapam os olhos com as mãos e acham que ninguém as vê. Pensam de um jeito ingênuo: ?Se eu não olho para a morte, ela não me vê. Se eu não penso na morte, ela não existe.? E é essa ingenuidade que as pessoas praticam o tempo todo com a própria vida.
Estão ausentes da própria vida, e isso talvez seja a maior causa de arrependimento experimentado no fim da vida.
Faltar na própria vida é uma dessas ausências impossíveis de explicar.
É SÓ PELA CONSCIÊNCIA DA MORTE QUE NOS APRESSAMOS EM CONSTRUIR ESSE SER QUE DEVERÍAMOS SER.
Pensamos então que uma vida boa é uma vida que nos levou a ter coisas e a fazer coisas. Mas quando chega o tempo da doença não podemos mais fazer nada. E quando deixamos de fazer, pensamos que isso é morrer, mas não é ainda. A ideia de ?ser? humano é simplesmente existir e fazer diferença no lugar onde estamos, por ser quem somos. As pessoas que se ausentaram da própria vida serão apenas ?ausências? no tempo de morrer. Porque muita gente é assim na vida, um ausente quase que constante.
?A morte será meu maior acontecimento individual.?
Clarice Lispector
Hoje vivemos uma era ímpar na medicina: muito se pode fazer para prolongar a vida humana. Ainda assim, mesmo com toda a tecnologia, morreremos. Morrer de morte natural pressupõe a existência de uma doença que segue seu percurso natural de evolução, independentemente dos tratamentos que possam ser oferecidos, mesmo os mais modernos.
Na dimensão biológica, quando fui pesquisar o que é o processo de morte, a medicina tradicional não me forneceu respostas para as perguntas que me inquietam. Falando agora de maneira bastante técnica, o processo ativo, na iminência da morte, é descrito como uma falência de órgãos ou até uma septicemia. Por isso, a maioria das pessoas morrendo são levadas ao hospital e transferidas para a Unidade de Terapia Intensiva. Os médicos ainda não aprendem na faculdade a diferença entre ter uma parada cardíaca e morrer. Na verdade, morrer é um processo que jamais poderá ser interrompido, mesmo que façam tudo o que a medicina pode oferecer. Se o processo ativo de morte se inicia, nada poderá impedir seu curso natural.
Pacientes que experimentam a etapa da dissolução da água têm certo processo de comportamento muito característico: tendem a ficar mais introspectivos. Olham para dentro de si e para dentro da própria vida.
Chega o momento da verdade, de encarar com honestidade o caminho percorrido. Nessa hora, alguém pode prescrever um antidepressivo.
Sabemos que não se pode ficar quietinho e pensativo na sociedade de hoje. Seremos rapidamente questionados: ?O que está acontecendo com você? Você não pode desanimar! Você tem que lutar! Tenha fé!?
Não parece ser permitido olhar para o sentido de tudo o que está acontecendo e buscar a nossa essência de vida.
Suponhamos, então, que não houve antidepressivo e a pessoa vai ficando um pouco mais triste. Então a família fala: ?Você está triste?
Não está reagindo?? Sim, está reagindo. Está reagindo internamente.
Mergulhando fundo como nunca antes, buscando a si mesmo dentro da própria essência. Porque nesse momento, em que estará se aprofundando na própria essência, começa a dissolução do fogo. É desse aprofundar-se que o paciente emerge pleno!
Na dissolução do fogo, cada uma das células tomará consciência de que o tempo está acabando, mas ainda é tempo de vida. Sempre há tempo para ser o protagonista da própria vida.
E essa pessoa tem a chance de mostrar ao mundo o motivo que a trouxe até aqui:
amor.
Se você conhece a criatura mais trash da face da terra, olhe para ela e sorria com esperança: ela terá uma chance incrível de ser alguém melhor na hora de morrer.
Mesmo as pessoas que não morrem de morte anunciada, mesmo aquelas que morrem em acidentes ou com doenças fulminantes: quase sempre se diz que mostraram mudanças no comportamento pouco tempo antes de a morte acontecer.
(...) e se permite, a chance de amar, de ser amada, de perdoar, de pedir perdão, de falar ?muito obrigada?; se tiver consciência do que está acontecendo, ela se despede.
Esse processo de melhora complexa, de experimentar a amorosidade em plenitude, expressando a pessoa que se é em sua essência, mostrando a que veio nessa vida, é o tempo mais consciente do processo ativo de morte.
Quando queremos entrar em sintonia com alguém, começamos a seguir, de maneira inconsciente, a respiração dela. Se essa pessoa está ansiosa, somos capazes de entrar em sintonia com ela e acalmá-la, ou ela pode nos ?contaminar? com sua ansiedade. Só que, na hora da morte, é impossível acompanhar a respiração da pessoa que está morrendo, absolutamente impossível. Não há como entrar em sintonia se não estivermos morrendo também. Somos capazes de entrar em sintonia com as emoções do outro e até de modificá-las, mas, no processo de morte, essa mágica deixa de ser possível: ele se iniciou e vai terminar. Seja na UTI, na enfermaria ou em casa; a morte não escolhe lugar.
Acompanhar alguém nesse momento é a experiência mais íntima que podemos experimentar junto a outro ser humano. Nada pode ser mais íntimo do que compartilhar com alguém o processo ativo de morrer. Nem sexo, nem beijo, nem confidências. Naquele momento, buscaremos o sentido de estar ao lado de quem está morrendo; quem está morrendo buscará o sentido de estar ali; virão questionamentos dos pesos, dos fardos, dos medos, das culpas, das verdades, das ilusões. Tudo ali, exposto de um jeito verdadeiramente nu.
A pessoa que morre está nua, liberta de todas as vestes físicas, emocionais, sociais, familiares e espirituais. E, por estar nua, consegue nos ver da mesma forma. As pessoas que estão morrendo desenvolvem uma habilidade única de ver. Estar ao lado de alguém que está morrendo é desnudar-se também.
Dizem que falar a verdade para o paciente com uma doença grave pode matá-lo antes da hora. Essa é uma das maiores mentiras que ouço, e ouço quase sempre. Enfrento dilemas frequentes diante de familiares que me imploram para não falar a verdade sobre a doença dos meus pacientes, pois acreditam cegamente que a verdade fará com que fiquem deprimidos e morram antes da hora. Comportam-se como crianças que não querem abrir o armário com medo do monstro imaginário, sem se dar conta de que a casa está caindo. E o armário vai ruir com a casa.
O que mata é a doença, e não a verdade sobre a doença. Claro que haverá um momento de tristeza ao saber-se doente, gravemente doente.
Mas essa tristeza é a única ponte até a vida que pode ser vivida verdadeiramente, sem ilusões ou falsas promessas de cura. O que mata a esperança não é saber-se mortal, mas sim perceber-se abandonado. A palavra que mata é a palavra mal utilizada. Um dos maiores desafios que enfrento no meu dia a dia é convencer a família de que a pessoa doente tem o direito de conhecer sua condição de saúde.
Quando pergunto em uma aula quem gostaria de saber a verdade sobre ter uma doença grave, a maioria levanta a mão dizendo que sim.
Então já aviso: conversem com seus filhos, seus amigos, sua família, sobre esse desejo. Porque, na hora que migramos para a condição de doentes, nossos filhos, nossos amigos, nossos pais e quase todos à nossa volta nos considerarão incapazes de viver o que precisamos viver. Todos esses que nos amam e que pensam poder nos proteger do sofrimento forçarão os médicos a compartilhar desse silêncio.
Na minha rotina, os pacientes conversam comigo sobre sua finitude de maneira aberta e clara. Falamos sobre pontos muito tensos da trajetória das doenças, falamos até dos desejos sobre o funeral. Mas quando esses mesmos pacientes falam com suas famílias, especialmente com a parte da família menos preparada para sua morte, então eles fantasiam tudo. Falam dos planos de viagem, dos jantares, das festas que virão nos próximos anos. Parecem negar a realidade da doença, mas, na verdade, negam a possibilidade de conversar sobre isso, pois duvidam que seus familiares serão capazes de tolerar o assunto.
Ao poupar alguém da verdade, não estamos necessariamente fazendo o bem àquela pessoa. Não poderemos poupá-la da própria morte. Não poderemos salvá-la daqueles momentos difíceis em que será preciso estar em si mesma.
Quando, na proximidade da morte, poupamos um ser humano da consciência de suas urgências, da importância do tempo de estar vivo antes de morrer, não conseguiremos interromper o processo de morrer.
Conseguiremos privá-lo de viver.
?Morrer é apenas não ser visto.
Morrer é a curva da estrada.?
Fernando Pessoa
Uma das melhores metáforas que já ouvi sobre contemplar a morte é pensar que, um dia, no caminho das nossas vidas, encontraremos um grande muro. (William Breitbart). Estamos trilhando o caminho de vida, às vezes tristes, às vezes alegres;
às vezes a vida está escura e não sabemos para que lado ir, mas sempre sabemos: estamos no caminho. Às vezes paramos no meio do caminho e sentamos em algum lugar, pensando: ?Estou meio cansado aqui, preciso dar um tempo.? Quando paramos, contemplamos o que fizemos até ali e o que faremos a partir dali. Mas, se quisermos, nos levantamos e seguimos. Existe caminho pela frente.
Quando estamos perto da morte, aquilo com que nos deparamos é um muro.
Não tem como dar a volta, não tem como escalar. E quando nos deparamos com esse muro e tomamos consciência da nossa morte, a única coisa a fazer é olhar para trás. Então, quando estamos diante da morte de uma pessoa, que fique bem claro para nós: aquela pessoa está olhando para o caminho que percorreu e tentando entender o que fez para chegar até ali ? e se aquela viagem valeu a pena.
Se Deus existe, morremos no final. Se Deus não existe, também morremos no final. A discussão pode girar em torno do que acontece depois de morrer, mas aí já teremos passado pelo momento que consideramos o mais temido. O que vai acontecer, invariavelmente, é que no final de qualquer história, de qualquer caminho, de qualquer escolha, vamos morrer. Independentemente daquilo que acreditamos que exista ou não. A única coisa da existência humana que não tem opção é a morte. Para todo o resto há opção:
podemos fazer ou não, podemos querer ou não. Mas morrer ou não, isso não existe.
O que faz a diferença dos caminhos que escolhemos ao longo da vida é a paz que sentiremos ou não nesse encontro. Se fizermos escolhas de sofrimento ao longo da vida, a paz não estará presente no encontro com a morte.
Essa é outra revelação do tempo de morrer: teremos condições de perceber a verdade contida em cada escolha passada, presente e futura de nossa vida. Saberemos da importância verdadeira de cada momento, deixando então cair todas as máscaras, ilusões, temores, fantasias, recalques.
Quer um conselho sábio a respeito da sua vida? Peça a alguém que está morrendo. Esse sopro vital de sabedoria, bem perto da hora da saída, emerge para a consciência e ilumina os pensamentos com uma luz divina, uma lucidez absurda; conseguimos perceber processos do antes, durante e depois.
Para mim, não existe nada mais sagrado do que estar ao lado de quem está morrendo. Porque não haverá a próxima vez.
Independentemente da religião, se tem ou não tem, nessa vida morremos só uma vez. Não tem ensaio. Você pode ter um, dois ou três filhos, pode se casar cinco vezes, pode fazer várias coisas várias vezes, mas morrer é uma vez só.
Como ajudar o outro a achar a paz dele se não fazemos ideia de onde está a nossa paz? Um diploma não mostra o sentido da vida, portanto não nos iludamos com certificados.
Muitos justificam seu desejo de estar ao lado de uma pessoa que está morrendo assim: ?Quero ser voluntário para ajudar as pessoas a morrer; quero fazer Cuidado Paliativo para ajudar as pessoas a morrer;
quero estudar tanatologia para ajudar as pessoas a morrer.? Mas é bem o contrário disso. Preste atenção: se você quer ajudar as pessoas a morrer, então vá buscar outra coisa. Vá vender cigarros, álcool, drogas.
Vá compartilhar violência e tristeza. Isso ajuda as pessoas a morrer.
PARA ESTAR AO LADO DE ALGUÉM QUE ESTÁ MORRENDO, PRECISAMOS SABER COMO AJUDAR A PESSOA A VIVER ATÉ O DIA EM QUE A MORTE DELA CHEGARÁ. APESAR DE MUITOS ESCOLHEREM VIVER DE UM JEITO MORTO, TODOS TÊM O DIREITO DE MORRER VIVOS.
QUANDO CHEGAR A MINHA VEZ, QUERO TERMINAR A MINHA VIDA DE UM JEITO BOM:
QUERO ESTAR VIVA NESSE DIA.
Na terminalidade humana, é comum que todos ao redor da pessoa que morre a observem como se ela já estivesse morta. Mas o problema maior do mundo à nossa volta passa longe da doença física.
Muita gente não está viva de fato, mesmo com o corpo funcionando bem.
Pessoas que enterraram suas dimensões emocional, familiar, social e espiritual. Gente que não sabe se relacionar, que tem dificuldade de viver bem, sem culpas nem medos.
Gente que prefere não acreditar para não correr o risco de se decepcionar, seja em relação ao outro, seja em relação a Deus. Gente que não confia, não entrega, não permite, não perdoa, não abençoa.
Gente viva que vive de um jeito morto. Temos mortos andando livres nas academias de ginástica, nos bares, nos almoços de família de comercial de margarina, desperdiçando domingos por meses a fio.
Gente que reclama de tudo e de todos. Gente que perpetua a própria dor se entorpecendo com drogas, álcool ou antidepressivos, tentando se proteger da tristeza de não se saber capaz de sentir alegria.
Piratas do Caribe, um personagem lança luz sobre esse momento tenso: ?Quando estamos perdidos, a gente encontra lugares que, se a gente soubesse onde estavam, jamais teria encontrado.?
TODOS CHEGAREMOS AO FIM. QUAL CAMINHO É O MAIS DIFÍCIL ATÉ ESSE DIA?
?Salve-se quem puder, porque para todas as horas é sempre chegada a hora.?
Clarice Lispector
O tempo é uma questão recorrente quando falamos sobre a finitude.
Quando não houver mais tempo, dará tempo de ser feliz? Quando uma pessoa adoece e precisa parar seu tempo de correr para poder se tratar, o tempo não passa em segundos, minutos, horas: passa em gotas ou em comprimidos. Os intervalos são percebidos entre um remédio e outro, entre uma visita de médico e outra, entre um exame e outro. É o tempo do soro pingando no suporte ao lado da cama. De seis em seis horas, de oito em oito horas.
O fato de ter recursos leva as pessoas a acreditar que podem mudar tudo, que podem recuperar a saúde comprando remédios caros, profissionais caros, hospitais caros. Mas nenhum dinheiro do mundo nos protegerá de morrer quando chegar a nossa hora.
Quem teve muitas alternativas na vida, em geral, cai no mundo do arrependimento com mais facilidade diante da morte.
Aqueles que na vida só tiveram uma chance de escolha, a de sobreviver, em geral chegam ao final dela com a plena certeza de que fizeram o melhor que podiam com a chance que tiveram.
No Hospice do Hospital das Clínicas não tínhamos privacidade, esse nome chique que inventaram para a solidão. Lá nossos quartos eram duplos. A morte acontece, e a pessoa é a testemunha da morte do seu companheiro de quarto. Parece mórbido, mas ela sabe que daqui a pouco será a vez dela.
?Quando toca alguém, nunca toque só um corpo. Quer dizer, não esqueça que toca uma pessoa e que neste corpo está toda a memória de sua existência. E, mais profundamente ainda, quando toca um corpo, lembre-se de que toca um Sopro, que este Sopro é o sopro de uma pessoa com seus entraves e dificuldades e, também, é o grande Sopro do universo. Assim, quando toca um corpo, lembre-se de que toca um Templo.?
Jean-Yves Leloup
Não faz o menor sentido falar: ?Eu acredito em Deus!?
Quando o indivíduo teve a experiência da verdade da existência de Deus, diz: ?Eu sei que Deus existe.? Raciocínio prático: não preciso dizer que acredito que o sol nasce todos os dias. Eu SEI que o sol nasce todos os dias. Dentro de mim não há nenhuma dúvida a esse respeito.
As pessoas querem mandar em Deus.
Querem seduzi-lo a mudar de ideia. Bajulam, negociam, mostram sacrifícios. Como se Deus fosse de um sadismo absurdo, desejando que as pessoas percorram quilômetros ajoelhadas, sangrando, fazendo imensos sacrifícios para conseguir alguma felicidade. E quando Deus não se comporta como esperado, sobrevém a sensação de traição, de abandono, de punição.
(...) Prometo que imprimo uns santinhos para distribuir na rua e contar o que você fez. Vou pedir, você vai atender e olha só: quanta gente vai acreditar em você se cumprir a sua parte!
Bem, só estou sugerindo. Porque você sabe que eu faço tudo o que você manda.? E insistem nessa conversa tola.
Às vezes a gente pensa que Deus é surdo e demente também. Tem gente que grita, que repete loucamente a mesma oração centenas de vezes.
A transcendência, para mim, é um sentimento intenso de pertencimento, de se tornar ?um? com aquilo que nos desperta esse sentimento.
Aquele mar, aquele pôr do sol, aquele abraço do ser amado só estará completo porque estou ali e pertenço àquele momento, faço parte daquele mar, daquela luz, daquele céu, daquela brisa. Não tem mais o ?eu passado? nem o ?eu futuro?; sou aquele momento, aquele instante presente.
O ateu verdadeiro, aquele de berço, é um cara da paz, que respeita a opinião e a crença de qualquer um. Ele não julga. Ele é um curioso. Os ateus convertidos, não. Eles são fundamentalistas como qualquer religioso, e fazem guerras para provar que Deus não existe.
Então entendo o ateu convertido como uma religião, também. Uma religião que quer provar que Deus não existe.
Olhar para trás diante da finitude é o que traz mais inquietação. Diante da consciência da morte, olhamos para a vida que tivemos até aquele momento e repensamos nossas escolhas. Chega aquele momento em que pensamos: ?Será que eu vim pelo caminho certo? Será que se eu tivesse dado a volta teria sido mais rico e a morte teria demorado mais tempo a chegar??
A primeira pergunta que nos fazemos quando confrontados com a finitude é: será que havia algum jeito de não estar ali? Vêm à nossa mente ideias como: ?Ah, se eu não tivesse fumado, não teria câncer de pulmão!?; ?Se não tivesse dirigido bêbado não estaria aqui!?; ?Se tivesse vivido de um jeito mais saudável não estaria agora com as coronárias entupidas!?; ?Se eu não tivesse nascido nessa família não teria esta doença!?.
Bronnie descreve os cinco maiores arrependimentos das pessoas antes de morrer.
O primeiro desses arrependimentos é: ?Eu gostaria de ter priorizado as minhas escolhas em vez de ter feito escolhas para agradar aos outros.? Muita gente se arrepende disso e, quando a morte se aproxima, ao fazer o balanço de uma vida desperdiçada, quer de volta o tempo que entregou ao outro, aquele tempo em que fez coisas que acreditava serem boas para o outro. Só que ninguém pediu nada; a pessoa fez porque quis fazer. Pelos motivos mais nobres ou mais egoístas possíveis.
Quase sempre, quando fazemos alguma coisa para agradar a alguém, fazemos por acreditar que, assim, contribuímos para a felicidade dessa pessoa. Nas entrelinhas, são escolhas para validar a nossa importância na vida desse alguém. No entanto, pensemos: usar nosso tempo de vida para nos tornarmos importantes na vida de outra pessoa é escolher um caminho bem torto para existir. Se podemos ser nós mesmos e se isso fizer de nós seres amados apenas pelo que somos, isso é felicidade, é completude. No entanto, se precisamos nos tornar outra pessoa para nos considerarmos amados, há algo errado. É quase certo que nos arrependeremos depois.
Nossa existência existe para existirmos; é tão simples como respirar.
Só que, ao longo da vida, ?terceirizamos? os beneficiários das nossas decisões oferecendo-as a pessoas que não pediram essa escolha. Por exemplo: ?Ah, então vou trabalhar muito porque quero dar o melhor para os meus filhos?; ?Não vou comer, não vou dormir: vou trabalhar de sol a sol para pagar uma escola muito cara, para que eles possam ser médicos, engenheiros, advogados?. Mas o filho quer ser artista; quer viajar e conhecer o mundo. Não damos valor às decisões que nossos filhos possam tomar nem acreditamos em sua capacidade de tomá-las com discernimento. Não conversamos com eles nem buscamos caminhos que todos possam trilhar em direção a uma escolha mais verdadeira. Quando eles decidem diferentemente do que imaginamos, nossa frustração se manifesta indignadamente: ?Como assim? Eu me sacrifiquei tanto por você! Que ingrato!?
Um fato bastante frequente nos hospitais e clínicas de idosos é a severa crítica ao ?abandono? das pessoas em seu leito de morte. Mas é muito importante não fazer juízos precipitados a respeito da solidão do paciente dentro dos hospitais. Muitas pessoas pensam que alguém que tem câncer ou passou dos 60 anos virou de repente um santo, digno de ser idolatrado e amado pela família inteira. Não é assim que funciona a vida. Cultivamos a qualidade das nossas relações, e esse cultivo determinará se vamos desfrutar de boas companhias no fim da vida ? ou se ficaremos sozinhos. Qual é a verdadeira história de cada abandono? Quem é aquela pessoa que está no hospital? Quem seremos nós no hospital? Seremos um imenso poço vazio que só deu, deu, deu e nunca recebeu nada em troca? Se na vida fomos um poço vazio, vazio ele continuará às portas da morte. Será muito difícil reconstruir relações e viver histórias de sentido depois de um caminho tão longo, tão difícil, percorrido de forma tão concretamente cruel.
(...) no momento em que alguém no leito de morte percebe que tomou decisões para fazer felizes outras pessoas, pessoas que nada tinham pedido e que, pior, não se satisfizeram com as decisões que ofereceu a elas, o arrependimento vem e dói demais. Uma dor que nenhuma morfina pode aplacar.
Outro arrependimento que a enfermeira Bronnie Ware menciona em seu livro fala de ?amor?, especificamente, mas eu estendo essa definição para os sentimentos em geral, mesmo aqueles considerados ruins.
Somos criados e educados para controlar a expressão dos nossos sentimentos. Para isso, usamos máscaras e disfarces. Para sermos aceitos, ouvidos e compreendidos, nos tornamos capazes de esconder muito do que sentimos. Acreditamos que ocultar sentimento pode nos proteger.
De maneira tola, agimos como se todas as pessoas que passam pelo nosso caminho fossem clones da primeira pessoa que nos machucou.
Temos a tendência a acreditar que todo mundo é igual. Há quem pense que o mundo inteiro está sendo pago para lhe fazer mal. Não é isso.
Nem mesmo o nosso inimigo dedicaria a vida a essa missão. Todos querem ser felizes. Mesmo aquelas pessoas que nos fazem mal desejam o mesmo que nós: uma vida feliz, plena de realizações.
Os piores e os melhores seres humanos têm esse desejo em comum comigo. Aprendi que não existe ninguém no mundo que nasceu só para me fazer infeliz.
Ao longo da vida, colecionamos máscaras e usamos as que mais se adaptam ao nosso estilo. Se queremos ser aceitos, usamos a máscara de bonzinho, de solícito; estamos sempre prontos a ajudar, todos podem contar conosco. Somos adorados.
Então chega no momento em que tiramos a máscara e todo mundo nos vê. Estamos nus de corpo e alma. Se fomos bons só para agradar, então terá chegado a hora de entender que precisaremos ser bons de verdade para enfrentar a solidão do fim da vida.
Eu posso ter a chave para abrir o seu coração. Posso ter a chave que abre o compartimento da raiva.
Quando você me vê, só pensa no quanto sou insuportável. Assim, não é agradável me encontrar porque você sente raiva.
Da mesma forma, há pessoas que abrem espaços dentro de nós revelando amor, paz, alegria. Todas essas emoções já habitam o nosso coração; não posso lhe levar nada que você já não tenha.
É preciso entender também que ter inimigos não é de todo ruim. Às vezes é por meio deles que encontramos força e coragem para superar obstáculos. Nossos amigos nos amam como somos. Acreditamos que daremos aos nossos amigos o nosso melhor, mas, muitas vezes, são os inimigos que exigem o melhor.
TRABALHAR PARA VIVER, VIVER PARA TRABALHAR
?E se não sabeis trabalhar com amor mas com desagrado, é melhor deixardes o trabalho e sentar-vos à porta do templo a pedir esmola àqueles que trabalham com alegria.?
Gibran Khalil Gibran
Outro arrependimento diz respeito a ter trabalhado muito.
Se temos um trabalho que nos oferece a chance de deixar o mundo melhor, mesmo que só um pouquinho e só para poucas pessoas; se nos envolvemos nesse trabalho com verdadeira energia de transformação e nos realizamos, vemos sentido no fluxo que escolhemos, ainda que implique trabalhar muito.
Existem pessoas para quem viver é possuir bens. Elas trabalham loucamente para ter, para acumular. Acumulam não só bens materiais, mas também mágoas e crises.
(...) o que causa verdadeiro arrependimento é precisar de máscaras para sobreviver no ambiente profissional. Quando existe uma diferença entre quem somos na vida pessoal e quem somos no trabalho, então estamos em apuros. Olhamos para aquela cena, de nós mesmos trabalhando, e não nos reconhecemos. Mas encontramos uma justificativa: ?Aquela pessoa lá no trabalho é outro ser, que está ali para fazer aquele trabalho; eu sou outra pessoa.? Estamos longe, e não ali dentro daquele jaleco, daquele terno, daquela gravata, daquela sapatilha.
Nem só aqueles que trabalham de terno e gravata, vestido elegante, uniforme da empresa ou de jaleco são infelizes. Tem muita gente que trabalha com arte, com um mundo lúdico e mesmo assim é totalmente infeliz. Julgamos o trabalho do outro, mas a verdade é que cada um sabe o peso do fardo que carrega. Tem gente que acha que a vida do outro é melhor, mas nem sempre é.
Mas também existe risco quando gostamos mais de ser aquela pessoa do trabalho, especialmente se só conseguimos pensar em nós mesmos como alguém porque trabalhamos. Essas pessoas podem ser incríveis no trabalho, mas na vida pessoal são um desastre. Quando se aposentam, é como se morressem. Elas desempenham seu papel de maneira muito mais fluida dentro do ambiente de trabalho do que na própria vida.
(...) em alguns dias não estou a fim de me abrir. Nesses dias, em que alguma questão pessoal se impõe, sou a primeira a reconhecer os sinais e fecho a agenda. Se não posso estar presente junto ao outro, se preciso de momentos para me conectar comigo mesma. Faço terapia, meditação, arte e poesia: qualquer atividade que possa me conectar com a essência do que sou me ensina e me traz a plena certeza de que o mundo gira apesar de eu não estar empurrando.
A questão do trabalho permeia essa crise, mas por quê, afinal?
Quanto tempo de nossa vida passamos no trabalho? A maior parte de nós passa pelo menos oito horas trabalhando, cerca de 30% do nosso tempo, sem falar do tempo em que buscamos atividades para tentar melhorar o desempenho no trabalho. Meditamos para ter mais atenção, fazemos mais exercício físico para nos sentirmos melhor, e tudo isso para trabalhar mais. O caminho pode estar certo, mas o motivo para percorrê-lo pode estar errado.
Imagino que no meu muro haverá um espelho que me obrigará a olhar dentro dos meus olhos e me perguntará: ?E aí, como é que você chegou aqui?? Terei que explicar o caminho para mim mesma; como é que cheguei até aqui.
No final, serei eu comigo mesma, sem intermediários. Preciso compreender minha morte porque ela é minha. O muro que é a minha morte não é do meu filho, não é do meu marido, não é do meu pai, da minha mãe, do meu chefe.
Com o dinheiro compraremos comida que vai estragar mais rápido, teremos um carro que vai quebrar a toda a hora, entraremos para uma academia que não teremos tempo de frequentar. Compraremos roupas que não usaremos, cursos que esqueceremos. Quando observamos nossa vida e percebemos que vivemos comprando bens que não cumprem sua função de nos fazer viver melhor, pode ser que haja algo errado na origem do dinheiro. Se ganhamos uma fortuna, compramos um carro e chegamos à nossa casa com cara de zumbis, tem algo errado.
O quarto arrependimento descrito por Bronnie Ware diz respeito a passar mais tempo com os amigos.
Aí nasceu o Facebook, e, com ele, a sensação de que estamos com os amigos.
Faço bom uso dessa ferramenta e aproveito muito qualquer tempo que posso compartilhar com pessoas tão queridas, mas distantes. Tem gente que eu amo demais, mas a vida que levo nesse momento não me permite estar fisicamente próxima.
Acompanho as fotos dos filhos crescendo, os momentos importantes, os gostos compartilhados de música e de poesia, e, de alguma forma, me sinto parte desse universo paralelo. Em algum nível eu me encontro de fato com essas pessoas.
Ainda assim, penso que estar com os amigos é vital. Com eles construímos relações mais honestas e transparentes, algo que nem sempre é possível viver com a família. E é com os amigos que temos a chance de dizer: ?Não gostei do que você fez?, e ficar bem, porque eles suportarão a crítica.
As pessoas da nossa família nem sempre são as mais agradáveis do mundo, com quem você anseia conviver. Contamos nos dedos as pessoas que gostam de passar o Natal entre parentes. Muita gente faz isso por obrigação, sem prazer, sem alegria.
Infelizmente, teremos mais tempo livre quando adoecermos.
Desejaremos a companhia dos amigos, daqueles que nos reconhecem apesar da doença, apesar do sofrimento. Queremos nos reconhecer nos olhos deles, porque nesse olhar reencontramos nossa história, nossa importância no mundo.
Na proximidade da morte, o arrependimento por não ter dedicado mais tempo a eles bate forte.
Alguns arrependimentos são puro desperdício de tempo no final da vida; não faz nenhum sentido que sejam causa de sofrimento. Muitas vezes, escolhemos um caminho que não sabíamos que seria ruim.
Agora sabemos e nos arrependemos. É como jogar na Mega-Sena e dizer: ?Eu joguei no 44 e deu 45. O que me passou pela cabeça para não ter jogado o 45?!? A verdade simples é que não jogamos no 45 porque achamos que ia dar o 44! Não é justo nos condenarmos por ações passadas baseando-nos no conhecimento que temos agora.
Quando começa o drama do ?eu deveria? ou do ?eu poderia?, é a hora de pegar o espelho e dizer: ?Não faça essa sacanagem com você mesmo.? Tomamos uma decisão lúcida com base nos elementos que tínhamos. Talvez pudéssemos dizer: ?Se eu soubesse que iria dar errado, teria feito diferente.? Mas não soubemos, não tinha como sabermos.
FAZER-SE FELIZ
?Ninguém pode nos fazer infelizes, apenas nós mesmos.?
São João Crisóstomo
O último arrependimento, que no meu entender é o resumo de todos os outros, é: ?Eu deveria ter feito de mim mesmo uma pessoa mais feliz.?
Quando falamos do estado de felicidade, muitas pessoas pensam que é apenas de alegria e prazer que se trata. Mas o estado pleno de felicidade é muitas vezes alcançado depois de um momento muito difícil da nossa vida e que foi superado. Momentos importantes e tensos pelos quais passamos com sangue, suor e lágrimas, mas saímos inteiros. Cobertos de cicatrizes, mas sobreviventes. Melhores, mais fortes do que antes. Isso nos traz um estado de felicidade plena.
A palavra tem poder de transformação e de destruição muito maior do que qualquer tratamento. Muito maior do que qualquer cirurgia ou remédio. (...) Não me refiro apenas às palavras boas. Às vezes é necessário dizer: ?Isso que você fez não está bom!?
Porém, dependendo de como dissermos, quem ouviu a crítica poderá concordar com ela ou se irritar profundamente. Se não for possível encontrar a palavra impecável, fique em silêncio. O silêncio tem tanto poder quanto a palavra. Quando estou muito irritada prefiro ficar quieta. E se alguém pergunta: ?Você não vai dizer nada??, respondo, atenta: ?Não tenho nada de bom para dizer nesse momento?.
(...) não tire conclusões. Encontro você na rua e não cumprimento. Você pode pensar: ?Ela não me cumprimentou! Será que falei alguma coisa que não devia no nosso último encontro?? As maiores brigas começam com as palavras: ?Eu achei que você, eu pensei que você...? Essa rede de conclusões exclui os demais personagens da história, ao mesmo tempo que nos envolve e sufoca.
As pessoas à nossa volta tornam-se simples personagens de histórias malucas que construímos em nossa mente, tantas vezes perversa. O caminho mais simples seria dizer assim: ?Ana, por que é que você não me cumprimentou ontem?? E eu posso dar uma resposta impensável para uma mente perversa: ?Olhe, desculpe, estava tão distraída, tão atrasada... Não vi você!? Tudo pode ser mais simples do que imaginamos.
?Não leve nada para o lado pessoal.? Isso é bem difícil. Uma pessoa com baixa autoestima acredita que todos a acham péssima. Os outros estão simplesmente vivendo a própria vida, mas ela imagina que só se ocupam de pensar que ela não é importante.
A baixa autoestima é um jeito torto de ser egocêntrico. Não somos tão especiais a ponto de todos pensarem que não somos bons o suficiente.
O mundo não está girando em torno do nosso umbigo, ou apesar dele.
O contrário também é verdadeiro. Receber elogios não deve ser levado para o lado pessoal. Se alguém nos acha importantes e interessantes, isso não necessariamente tem a ver conosco.
?Fazer o seu melhor? é o quarto compromisso. Às vezes nosso melhor é estar de mau humor, não sair de casa ou ficarmos zangados.
Com meus filhos, com meus amigos, com meu amor, se tenho um dia difícil chego em casa e aviso: hoje não estou bem. Misteriosamente, a louça surge lavada, meu café fica pronto, aparece um chá, alguém põe a minha música favorita para tocar. Ganho sorrisos e carinhos. É mágico perceber como estamos e avisar ao outro.
Quando estamos muito mal, melhor não fazer, se calar ou avisar que não estamos bem.
Entender que tudo o que fizemos, certo ou errado, fizemos tentando acertar, é algo que melhora nossa vida ? e o final dela. Estávamos dando o nosso melhor. Hoje podemos pensar que poderíamos ter feito diferente, ter seguido outro caminho, mas naquele momento demos o nosso melhor.
Talvez o jeito mais fácil de viver bem seria se pudéssemos incorporar no nosso dia estas cinco nuances da existência: demonstrar afeto, permitir-se estar com os amigos, fazer-se feliz, fazer as próprias escolhas, trabalhar com algo que faça sentido no seu tempo de vida, e não só no tempo de trabalhar. Sem arrependimentos.
?JÁ POSSO PARTIR! QUE MEUS IRMÃOS SE DESPEÇAM DE MIM! SAUDAÇÕES A TODOS VOCÊS; COMEÇO MINHA PARTIDA. DEVOLVO AQUI AS CHAVES DA PORTA E ABRO MÃO DE MEUS DIREITOS NA CASA. PALAVRAS DE BONDADE É O QUE PEÇO A VOCÊS, POR ÚLTIMO.
ESTIVEMOS JUNTOS TANTO TEMPO, MAS RECEBI MAIS DO QUE PUDE DAR. EIS QUE O DIA CLAREOU E A LÂMPADA QUE ILUMINAVA O MEU CANTO ESCURO SE APAGOU. A ORDEM CHEGOU E ESTOU PRONTO PARA A MINHA VIAGEM.?
RABINDRANATH TAGORE
AS NOSSAS MORTES DE CADA DIA
Passamos a vida tentando aprender a ganhar. Buscamos cursos, livros, milhares de técnicas sobre como conquistar bens, pessoas, benefícios, vantagens. Sobre a arte de ganhar existem muitas lições, mas e sobre a arte de perder? Ninguém quer falar a respeito disso, mas a verdade é que passamos muito tempo da nossa vida em grande sofrimento quando perdemos bens, pessoas, realidades, sonhos.
Vivemos buscando discursos que nos mostrem como ganhar. Como conquistar o amor da nossa vida, o trabalho da nossa vida. Acredito, porém, que ninguém se inscreveria num curso que se chamasse: ?Como perder bem? ou ?Como perder melhor na vida?.
No entanto, saber perder é a arte de quem conseguiu viver plenamente o que ganhou um dia.
Cada perda existencial, cada morte simbólica, seja de uma relação, de um trabalho, de uma realidade que conhecemos, busca pelo menos três padrões de sentido. O primeiro diz respeito ao perdão, a si mesmo e ao outro. O segundo é saber que o que foi vivido de bom naquela realidade não será esquecido. O terceiro é a certeza de que fizemos a diferença naquele tempo que termina para a nossa história, deixando um legado, uma marca que transformou aquela pessoa ou aquela realidade que agora ficará fora da sua vida.
Aceitar a perda tem uma função vital na nossa vida que continua.
Sem a certeza do fim, sem a certeza de que algo acabou, é difícil partir para outro projeto, para outra relação, para outro emprego.
Ficamos presos em um limbo do ?deveria?, do ?poderia?. Ficamos encalhados no: ?E se?? É como se parássemos nossa vida entre a expiração e a inspiração. O ar já saiu dos nossos pulmões, mas não deixamos entrar ar novo por nos prendermos ao último suspiro.
Quando terminamos um relacionamento, mas não aceitamos que ele acabou, ficamos no intervalo. Viramos zumbis afetivos.
Muitas relações apodrecem dentro de nós e contaminam todas as outras.
Entendemos que é muito mais difícil vivenciar a perda do que ficar no velório dela, mas superar a perda é muito mais fácil do que ficar no ar irrespirável da putrefação afetiva.
Só conseguiremos passar para a próxima etapa se tivermos uma destas três confirmações: de que perdoamos, deixamos nossa marca ou levamos a história conosco, tirando dela os aprendizados possíveis.
(...) na condução de processos de luto que não estão relacionados com a morte em si. Primeiro nos perguntamos se tem algo de que nos arrependemos, algo que contribuiu para aquela morte.
Ter dito o que não devia ou deixado de falar o que devia. Se a resposta for sim, nos sentimos responsáveis pela construção daquela morte.
Então existe um arrependimento.
O segundo ponto é se não seremos esquecidos. Isso acontece especialmente com ex-mulheres e ex-maridos. Alguns fazem de tudo para se tornarem eternamente presentes; não querem ser esquecidos de jeito nenhum. Mas deixam marcas profundas de ódio e vingança, apenas. Seria libertador se se fizessem lembrar não pelo mal, mas sim pelo bem que causaram.
O terceiro ponto pode ser uma experiência de imortalidade.
Seguimos em frente, mas deixamos algo de nossa essência, de nossa história, naquele tempo, naquele ambiente, naquela pessoa que sai da nossa vida.
Vamos falar sobre fim de uma relação de trabalho. A morte pode ser boa, dependendo de quem decidiu sobre ela. Quando pedimos demissão, o fim é mais tranquilo. Encaramos o muro, entendemos que aquela etapa se encerrou e já buscamos outros horizontes
Esse trabalho vai morrer com data e hora marcadas, tudo está sob controle. Se somos dispensados, a dor é maior, e a questão é como vivenciar aquilo que foi terminado à revelia do nosso desejo.
A dor maior sobrevém quando voltamos a atenção para o nosso umbigo e nos damos conta de que o mundo não está girando em torno dele. A melhor forma de continuarmos vivos, apesar dessas mortes que vão acontecendo ao longo da vida, é estar presente nelas.
É a entrega total à experiência que permite o desapego.
Entramos naquela relação, naquele trabalho, naquela realidade com o melhor de nós; transformamo-nos, entregamo-nos àquele encontro, e uma hora ele acabou. Seguimos nosso caminho levando o que aprendemos, e é isso que fará com que possamos entrar em outra relação, em outro emprego, em outra carreira, em outro sonho de vida.
Conseguiremos lidar bem com a morte no dia a dia se pararmos de viver felizes somente no futuro.
A última impressão é a que fica, não a primeira. Conhecemos a pessoa mais incrível da nossa vida, nos casamos com ela, mas depois ela nos decepciona muito. Então a pessoa se torna irreconhecível para nós, um monstro. A impressão que fica é somente a última.
O primeiro passo para aprendermos a perder é aceitarmos que perdemos.
A posição de vítima é sempre muito perigosa, porque não nos oferece a possibilidade de superar a dor. A questão não é assumir nossa culpa pelo mal que nos fizeram. A questão é: ?Fui maltratada, fui humilhada. O que EU vou fazer com isso?? Afinal, o processo já aconteceu. Vingança e mágoa não curam. Nada do que acontecer mudará a nossa experiência. A escolha do que fazer com essa experiência é o grande poder.
Ninguém escolheu conscientemente ter câncer ou demência; ninguém escolheu conscientemente morrer em um acidente de carro. Existe a crença de que escolhemos a vida que temos, bem como nosso pai, nossa mãe, nossas histórias. Mas, de fato, o que temos ao nosso alcance é a forma de viver essas experiências.
Aqueles que não se entregam a esse processo da perda não se renovam para o próximo passo. É como se ficassem presos no canal de parto. Saíram de um lugar, mas se recusam a chegar a outro.
Entregar-se a essa dor é o melhor jeito de deixá-la ir embora. Terminou uma relação? Viva o luto da relação. Foi demitido de um emprego? Viva o luto dessa perda. Viva, experimente essa dor, não fuja, não minimize covardemente aquilo que foi vivido antes.
(...) não podemos simplesmente assassinar todo esse tempo.
Quando entramos em uma história nova, é preciso vivê-la intensamente para que possamos dizer: ?Valeu muito a pena! Deixei um legado, entrei nesse emprego para dar o meu melhor, entrei nessa relação para dar o meu melhor.?
Os lutos mais complicados vêm das relações ambíguas, onde havia amor e ódio; restam muitas arestas. Quando existe amor, a morte vem, mas não mata o amor. O amor não morre.
Quando, porém, se trata de uma história de trabalho, trágica, em que puxamos o tapete de muita gente, em que passamos noites e noites maldormidas por causa um projeto de que não gostávamos, o luto é muito mais caro, porque você deixou ali coisas muito valiosas: seu caráter, seu nome, sua sensibilidade, sua qualidade de vida... Quando nos mandam embora, pensamos: ?Paguei um preço muito alto por esses anos todos.? Agora, quando perdemos um trabalho que adorávamos, que nos transformou, onde crescemos, onde alimentamos sonhos... Claro que dói, mas sabemos: ?Valeu a pena por tudo o que eu aprendi!? É algo que nos projeta para um mundo verdadeiro e muito mais intenso do que aquele em que estávamos vivendo.
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