jota 17/04/2024 MUITO BOM: a biografia (parcial) de um romancista escrita por ele mesmo e criticada por seu próprio personagemCom Os Fatos: A autobiografia de um romancista, completo a leitura de vinte volumes da obra de Philip Roth (1933-2018) e isso significa ser ele o autor que mais li até hoje, não me lembro de outro e nem li ainda tudo o que ele escreveu. Ao mesmo tempo em que Roth fala de sua vida e carreira de escritor, esse livro incomum tem um tanto de autoficção porque ele coloca um personagem, Nathan Zuckerman, seu alter ego, a escrever-lhe uma longa carta em que critica suas habilidades (dele, Roth) ao escrever a própria biografia, coisa curiosa no mínimo.
É bom lembrar que Os Fatos foi publicado originalmente em 1988 (no Brasil apenas em 2016) e, para nossa felicidade de leitores, Roth viveu ainda mais trinta anos, escreveu outros livros marcantes (por exemplo, O Teatro de Sabbath, que é de 1995) então se essa não é uma autobiografia pela metade, tampouco é completa e completamente real (nomes de suas mulheres foram alterados). Outro livro dele, o ótimo Patrimônio, é extremamente autobiográfico, foi publicado em 1991 e nos conta com muitos detalhes os altos e baixos de sua relação com o pai idoso, doente, viúvo.
O episódio da mencionada carta tem o título de “Agorra podemos começar, não podemos?”, assim mesmo: agora com dois erres. A carta de Zuckerman (seu alter ego, mas também seu “filho” porque foi criado por ele) nos remete para a famosa Carta ao pai, de Franz Kafka, um dos autores que Roth mais admirou e também traz ecos da psicanálise de Sigmund Freud. Daí que se pode dizer que a literatura de Roth, pelos temas tratados, é em grande parte uma síntese das influências de Kafka e Freud somadas a sua origem judaico-americana, envolvida em diversas complexidades religiosas e culturais. Isso fez uma grande diferença em sua escrita, que resultou sobretudo em O Complexo de Portnoy, seu livro mais famoso e lido até hoje.
Mas antes de chegar a esse ponto, que é parte final do livro, passamos por outros episódios de sua vida, carreira e livros: no primeiro, “Seguro em casa”, temos histórias de sua infância, com o pai, mãe e o irmão mais velho em Newark, NJ. Roth conta que na sua infância os maiores temores externos eram os alemães e os japoneses, inimigos dos norte-americanos, mas havia também a ameaça dos próprios norte-americanos contra eles (família e amigos), por serem judeus, embora fossem tolerados e aceitos por outros grupos de cidadãos.
“O queridinho da universidade” é o segundo episódio de Os Fatos e, claro, trata de sua vida como estudante do ensino superior. A segurança de sua vida em casa já não o seduzia mais aos dezesseis anos: Roth queria ir embora, não importava para onde, qualquer universidade servia. Tudo o que ele precisava eram professores, cursos e uma biblioteca. E lá foi ele para a longínqua Lewisburg, Pensilvânia, estudar na Universidade Bucknell, já que dificilmente conseguiria estudar, se manter, em Harvard, Yale ou Princeton. Reconhece numa professora de escrita uma grande influência em sua futura carreira de escritor.
Philip Roth foi um homem de muitas mulheres, sua vida sexual foi bastante intensa, mas uma certa Josie (nome fictício), uma neurótica, transformou sua vida num inferno porque cometeu a tolice de se apaixonar e se casar com ela. Uma história que ele conta no terceiro episódio de Os Fatos, “A garota dos meus sonhos”. Josie era quatro anos mais velha do que ele, tinha dois filhos, era divorciada e sem dinheiro. Ele teve de sustentá-la durante vários anos porque ela não lhe concedia o divórcio, além de enganá-lo com falsos exames de gravidez.
No quarto episódio, “Tudo em família”, Roth trata de seus embates com a comunidade judaica por conta da publicação de Adeus, Columbus, uma coletânea de contos, livro que o convenceu de que escrever ficção era seu, digamos assim, destino. A comunidade se sentiu bastante incomodada pelo modo como apresentou seus personagens judeus. Foi acusado de antissemitismo, de odiar a si próprio, criticado em sermões nos púlpitos das sinagogas, em discussões familiares, nos debates nas organizações judaicas avaliando o perigo que ele representava etc. Somente depois que Adeus, Columbus ganhou significativos prêmios literários em 1960, foi convidado a falar para grupos e centros comunitários judaicos também em sinagogas em todo o país. Eles não sabiam o que viria em 1969, quando O Complexo de Portnoy foi lançado... O resto é História, mais histórias de Philip Roth, muitas.
Lido entre 14 e 17 de abril de 2024.