spoiler visualizargabrieus 03/05/2023
A Comédia
Por que ler A Divina Comédia? Foi a primeira coisa que me perguntei. Claro, porque esse é um hipertexto que grande parte das maiores obras da literatura se conecta e é indispensável para minha formação como leitor; por causa da curiosidade despertada por ouvir outras pessoas falando e ver obras da cultura pop que fazem referência; pela curiosidade de ler a obra mais importante da Idade Média e, com isso, ter um vislumbre da mentalidade da época; porque a viagem de Dante através do inferno é interessantíssima; porque é um poema lindo; etc, etc, etc. No fim, a pergunta que me fiz foi: Por que não ler A Divina Comédia?
Bom, após ler eu poderia dizer: misoginia, homofobia, intolerância religiosa, moralismo, hipocrisia, muitas referências a pessoas específicas daquela época que não despertam o interesse hoje, etc, etc, etc. Mas o livro é de uma época antiga em que outro pensamento vigorava. Apesar de desses trechos me despertarem raiva, é interessantemente revoltante ver como pesavam. Mas afinal, eu me arrependi?
Claro que não! Eu adorei a leitura de A Divina Comédia e em determinados momentos me peguei derramando lágrimas. É impossível não se emocionar com as almas no purgatório cantando Misere Mei, Dei, ou ao ouvir Pia pedir para Dante rezar para ela quando chegar em Terra, ou quando Dante e Virgílio se despendem, ou no encontro dentre Beatrice e Dante, entre outros. E como eu me senti feliz quando descobri que tem prostitutas no paraíso (acho que isso não soou muito bem)!
Levando pra minha interpretação pessoal, vejo Dante como alguém prestes a sucumbir a corrupção de uma sociedade totalmente mergulhada nela. Sabe quando você pensa: “Ah, pra quê eu vou ser bom? Ninguém é e só eles se dão bem. Eu não ganho nada sendo assim”? Pois é, e nesse momento surge a salvadora, os salvadores, melhor dizendo. Beatrice envia Virgílio para resgatar Dante. Quem nunca se sentiu perdido, sem norte, até encontrar alguém? Quem nunca precisou de um Virgílio que nos guiasse pelos caminhos difíceis e nos carregasse quando não podemos mais seguir? Justamente porque os caminhos certos são os mais difíceis de trilhar?
Mas todos somos limitados e nem mesmo o Virgílio pode te acompanhar por toda sua jornada. Ele não sabe de tudo e você também não. Você descobrirá que a sua razão também tem limites. Que tentar entender tudo é uma grande perda de tempo. Nossa vida é um inteiro desconhecimento de causas e porquês. Temos que seguir em frente e ter fé, no meu caso, como ateu, fé em mim mesmo e na minha capacidade de resistir, porque é isso que fazemos todos os dias. Por que não poderíamos continuar resistindo? Porque não continuar tentando, mesmo sem entender porque absolutamente tudo dá errado apesar de fazermos tudo certo?
Claro que mesmo se você se decidir por essa empreitada e resistir a escalada, não vai ser fácil aproveitar o céu. Algumas coisas que fizemos não nos deixarão ter paz, e não temos um rio Letes para esquecermos de todas as lembranças ruins, nem um Eunoé pra reforçar as boas. Você poderia ter escolhido o outro caminho, onde a perversidade é suavizada pelo hábito, mas você escolheu lutar pelo que acredita. No fim, você descobre que é muito mais fácil suportar a consciência sendo mau, do que suportá-la sendo bom. Valeu a pena tudo?
Paraíso existe?
Pra Dante, sim. E pra você?
Valeu a pena tudo?
Não sei, mas eu trilharia todo esse caminho outra vez para passar mais tempo com Virgílio e Beatrice. Foram pessoas que me ajudaram a me tornar melhor, seja o que isso signifique.