spoiler visualizarcidasi 29/08/2021
Um cientista destrambelhado que apronta altas confusões.
Em 1895, H. G. Wells, pela perspectiva de sua época, criou uma novela que se tornou um clássico da ficção. Apesar dele ser apontado como pioneiro, já existiam outros escritos com o conceito de Máquina de Viagem no Tempo. El Anacronópete, por exemplo, um livro espanhol escrito por Enrique Gaspar, em 1887, conta sobre Sindulfo García, o inventor que vai de Paris em 1878, a China de 220, a Pompéia, e outros lugares, em sua máquina, o Anacronópete.
A Máquina do Tempo de H.G. Wells, é muito mais uma crítica pontual e sutil ao capitalismo e a desigualdade de classes, representada pela diferença entre duas raças do futuro, do que uma história de ficção científica. E essa é a melhor parte e só por isso já merece ser lido. Já há muitos escritos sobre isso, então nessa resenha quero destacar as partes em que não encintrei em nenhuma outra "critica" a obra, que no caso é a personalidade do personagem principal, seu despreparo e sua estupidez.
Apresentado como um cientista que foi capaz de criar uma máquina que viaja no tempo, o personagem principal, que não tem um nome, várias vezes durante a história é pego desprevenido em situações bobas ou se baseando em achismos enquanto procura pela sua máquina que foi roubada. Há momentos em que você começa a pensar "como pode ele ser tão estúpido e ter criado uma máquina que viaja do tempo?".
Vamos a esses ponto. Antes da sua viagem, pelo que se explica não houve, ainda alguém que de fato viajou no tempo e voltou, apenas um protótipo viaja no tempo, como demonstração e ele nem foi recuperado pra provar que ele de fato viajou ao futuro. Então, o cientista usa a máquina mesmo assim e vai totalmente despreparado. Não leva ferramentas, água ou outras coisas que possam lhe ser úteis. A explicação pra isso é que a sociedade será tão avançada no futuro que vai poder fornecer a ele tudo o que ele precisar caso necessite. Porém, se ele nunca viajou antes, como ele sabe que terá auxílio no futuro? Se ele é um cientista, não deveria ter pensado na probabilidade de algo dar errado na sua viagem? Ou que talvez o futuro não fosse como ele imaginava (e não foi mesmo)? Mas, dá pra relevar isso, aceitar como suspensão de descrença, entender que ele estava tão empolgado com a viagem que não se preocupou com essas coisas.
Outra situação que me chamou a atenção, foi quando em uma de suas primeiras noites o viajante do tempo vê de longe "vultos brancos" que somem em meio a escuridão e a explicação a priori, que ele dá pra isso, é de que esses vultos são fantasmas. Isso ignora os princípios da Navalha de Ockham, se o viajante no tempo é um cientista, porque substitui deduções científicas por achismos? Não deveria buscar uma explicação coerente pra tais acontecimentos? Nessa situação ele cita Grant Allen, pra parecer um pouco lógico, mas acho que só foi um jeito de Wells querer prestar uma homenagem a Allen, que também era romancista e descreveu uma viagem no tempo, embora com o enredo diferente.
Continuando, o viajante do tempo está sem sua máquina, não consegue se comunicar o suficiente com os Elois pra saber onde ela está e não tem nenhum recurso pra fazer outra ou algo que lhe ajude a recuperá-la. Aí ele toma uma decisão. Vai entrar em poços subterrâneos, do qual ele não sabe nem a profundidade, usando fósforos pra iluminar o caminho. Óbvio que não dá certo e ele quase é morto por Morlocks, além de gastar os poucos fósforos que ele tinha. Providenciar uma tocha ou algo semelhante seria o mínimo de esperar de qualquer pessoa que fosse explorar um lugar assim, quem dirá de um cientista.
Seguindo a história, continuam as atitudes impulsivas revelando todo seu despreparo. Depois de ir à construções antigas em busca de algo que possa lhe ajudar, acompanhado de Wenna, uma Elói, com a qual ele tinha uma relação (que não da pra entender se era 'romântica' ou não), apesar de ter achado cânfora e uma barra de metal para poder se defender, acabou sendo atacado pelos Morlocks a noite, Wenna que estava inconsciente desapareceu e ele acabou acidentalmente incendiando a floresta com uma fogueira que fez pra iluminar seu caminho e na confusão os Morlocks roubaram seus últimos fósforos também. A seguir sua máquina reaparece e ele cai em uma emboscada planejada pelos Morlocks, que pareciam coletivamente mais espertos do que um cientista.
Eu entendo que é uma história de aventura também, que se formos analisar toda obra de forma realista nenhuma vai fazer tanto sentido, mas nessa ficção, o viajante do tempo tem a vantagem de ser bem mais racional em relação às outras duas espécies no futuro e mesmo com um pouco mais de conhecimento não consegue elaborar um jeito para recuperar a sua Máquina e nem proteger Wenna. Na verdade, analisando tudo o que aconteceu, não houve nada que o personagem fez que efetivamente desse algum resultado. Ele se machucou, colocou sua vida em risco, perdeu Wenna, causou um incêndio florestal, não conseguiu nada palpável para um estudo sobre aquela época e só conseguiu de volta a sua Máquina do Tempo porque os Morlocks quiseram.
Esses destaques não empobrecem a história de Wells, porque eles não são o ponto central de discussão da trama. Mas são atitudes incoerentes pra um personagem que no primeiro capítulo dá uma palestrinha pros seus amigos sobre como conseguiu alcançar a viagem no tempo e como ela ocorre e depois não consegue nem providenciar uma tocha pra explorar o futuro tenebroso onde ele foi parar.
Em 1903, em uma entrevista Júlio Verne falou sobre H.G. Wells [...] "Suas histórias não repousam em bases científicas. Não, não há nenhuma relação entre seu trabalho e o meu. Eu faço uso da Física, ele a inventa"[...]. Não discordo de Júlio Verne, o foco de Wells é outro, mas ainda sim é ficção científica, mesmo que a "ciência" em suas histórias, sejam mais um ponto de partida pra uma aventura, do que grandes embasamentos pra faze-la acontecer.
Se você não for tão apegado em detalhes assim como eu, leia sem preocupações. A Máquina do Tempo é um clássico, serviu de inspiração pra muitas histórias posteriores, e a discussão, a crítica social expostas, assim como a luta de classes (que toca a superfície do assunto) fazem sentido e tem propósito narrativo nesse livro.