lucasfrk 09/09/2022
A Máquina do Tempo ? Resenha
?Pela primeira vez, comecei a perceber uma consequência singular dos esforços sociais em que nos engajávamos no presente.? (p. 41)
H.G. Wells foi marcado pelo tempo. Nascido na Inglaterra, no século XIX, depois da descoberta do sexto continente, a Antártida, e muito antes da vinda do homem à Lua, Wells dedicou-se a outras explorações. Este prolífico escritor notabilizou-se pelos clássicos do dito ?romance científico? ? de maneira que o termo ?ficção científica só seria cunhado um século depois, por Hugo Gernsback ? como A Ilha do Dr. Moreau (1896), O Homem Invisível (1897) e A Guerra dos Mundos (1898), mas também ficara conhecido por obras que aliam suas ideias sobre o progresso, a política e a humanidade, como Uma Breve História do Mundo (1922).
Seu primeiro romance, A Máquina do Tempo (1895), um importante sucesso editorial, trata justamente de um dos temas que mais lhe causara fascínio. O livro popularizou o conceito de viagem no tempo e ofereceu uma visão distópica do futuro, além de ter se tornado uma das mais representativas obras precursoras da moderna ficção científica. Na trama um excêntrico inventor vitoriano, personagem denominado apenas como ?O Viajante do Tempo?, desenvolve, com base em conceitos matemáticos, uma máquina capaz de se mover pela Quarta Dimensão. Ávido pelo progresso do intelecto humano, ele mergulha mais de oitocentos anos no futuro, onde encontra a humanidade em degeneração, vislumbrando uma trágica sociedade fragmentada em duas ?raças?: os debeis e ociosos Elóis, na superfície; e os selvagens predadores Morlocks, nas profundezas. O Viajante se movimenta entre esses dois mundos e tenta decifra um segredo macabro, correndo o risco de nunca mais conseguir voltar à Londres de sua época.
Escrito na virada do século, numa era vitoriana de processo científico e industrial, o livro viria a conhecer enorme êxito no bojo da literatura fantástica e do cinema. Paralelo às questões da física moderna ? sendo não a primeira, mas certamente uma das primeiras a mencionarem o tema é abordado ?, a obra pode ser lida como uma paródia das divisões de classe na Inglaterra. A Máquina do Tempo parte de duas especulações científicas básicas: a primeira consiste na possibilidade de se viajar no tempo e a segunda trabalha em cima do conceito de darwinismo social.
Wells escrevera mais de cem livros, incluindo romances, ensaios e contos. Simpatizante do socialismo, da ciência e do progresso, chocara a opinião pública com suas convicções sobre amor livre e casamentos abertos ? mostradas em romances como Ann Veronica (1909) e The New Machiavelli (1911). Wells ofere um ceticismo salutar, contraponto do pensamento corrente na sua época. Inspirara-se nas discussões de filósofos como Thomas More e Platão, que teorizam sociedades perfeitas em Utopia (1516) e A República, mas segue na contramão do pensamento da Belle Époque ao vaticinar o declínio da humanidade no futuro. A Máquina do Tempo retoma capta um tom apocalíptico que expõe a vulnerabilidade do homem ante um cataclisma. Como biólogo, Wells também fornece uma leitura darwiniana, ainda evidenciando a desigualdade social e como isso poderia afetar a humanidade diretamente, à tal ponto de evoluir para grupos diferentes, e sofrer mutações até que os humanos tornem-se irreconhecíveis.
Uma de suas características essenciais é a proposta de uma viagem temporal diretamente proporcionada pela ação humana, com base no conhecimento de sua época. Assim, a máquina fixa-se como uma materialização tecnológica de determinadas aspirações cientificas da época, ao perceber o tempo como um elemento relativo no universo natural. Isto sugere que a criação da máquina proporciona a ideia de uma viagem no tempo plausível cientificamente, apontando, ainda, para a possibilidade de uma concepção de tempo relacionada a uma determinada filosofia da história ? inclusive pelo francês Henri Bergson ? na qual as temporalidades podem ser sobrepostas em camadas intercambiantes entre a história cronológica humana e o tempo cósmico.
?Dentro das novas condições de perfeito conforto e segurança, aquela energia incansável que originara a nossa força resultaria em uma fraqueza? (p. 43)
O autor também especula, a partir do darwinismo social, para criar uma sociedade distópica, onde a luta de classes ? profundamente teorizada pelo marxismo ? é levada às últimas consequências, resultando em duas espécies diferentes. No entanto, ao contrário dos defensores dessa hipótese, que tinham uma visão otimista e uma crença cega de que a vitória dos ?mais aptos e fortes? levaria inevitavelmente ao progresso da humanidade, Wells projeta um futuro sombrio para a humanidade. Desse modo, ao pensar nas conseqüências da Revolução Industrial e do darwinismo social, H.G. Wells não somente especula sobre um futuro cientificamente possível, mas não é idealista, pensando sobretudo de forma crítica a própria situação política e social da Inglaterra do século XIX.
Em última instância, Wells mostra o quanto a ficção-científica, ao narrar um futuro plausível, pode servir tanto como uma possibilidade do que pode vir a ser como uma crítica do próprio presente, ou pode ser ambas ao mesmo tempo. Dessa forma, o texto de ficção científica se afasta da literatura fantástica convencional, ao não se limitar em alegorizar a realidade empírica, em não apenas trazer especulações de um futuro, mas também deslocar o leitor para a realidade presente. As dimensões científica e política, portanto, passam a se influenciar mutuamente. Em última análise, as descobertas científicas influenciam toda a organização política e social de uma civilização, fazendo com que o texto de ficção-científica vá além da mera especulação.