Felipe Holloway 22/01/2017
Mais um para o "bonde do zeitgeist": Galera e a consolidação do romance de deformação
Em termos de estrutura, nesse "Meia-noite e vinte", Daniel Galera coloca em prática uma honestidade rara entre os escritores, contemporâneos ou não, apesar de eu ter lá minhas dúvidas sobre se reconhecer uma deficiência estilística seja o suficiente para que sua existência se torne menos injustificável, numa obra literária. Desde "Até o dia em que o cão morreu", o autor, embora tenha se ocupado de personagens de um distanciamento meio mersaultiano, apresenta em sua escrita uma inegável matriz realista, manifestada por meio da profusão de descrições (geográficas, anatômicas, “figurinísticas”) e por certa linearidade temporal que, mesmo quando rompida, não apresenta grandes complexidades ao leitor – pense-se, a título de comparação, na fragmentariedade de “Se um de nós dois morrer”, do Paulo Roberto Pires. Causa espanto, dessa forma, que as três vozes narrativas que se intercalam em "Meia-noite..." soem tão homogêneas, tão quase indistintas. E se, como mencionei no início, é possível perceber como o próprio Galera tem consciência de sua dificuldade de diferenciar os narradores (pois o personagem responsável pela narrativa de cada capítulo nunca leva mais que um parágrafo para citar o narrador do capítulo anterior, evitando, assim, que nos percamos quanto à autoria do relato da vez, já que nossa tendência natural, pela homogeneidade das vozes, é imaginar que prosseguimos com o ponto de vista do mesmo personagem) – se, enfim, Galera nos situa tão cortesmente, é impossível não se perguntar, finda a leitura, qual a utilidade de pôr em prática determinado artifício, quando temos noção de que não o dominamos muito bem. Pois se a forma de contar não constituía, para o autor, e contrariando a estética literária contemporânea, elemento tão importante quanto aquilo que estava sendo contado, um narrador onisciente que nos conduzisse pelas ações e meandros psicológicos dos personagens teria sido uma escolha mais honesta. Do jeito como está estruturado, “Meia-noite...” parece um exercício de estilo malsucedido e um tanto constrangedor, como quando um bom jogador tropeça na bola ao tentar reproduzir o drible do elástico. Neste sentido, não ajudou que eu tenha lido a obra logo depois de haver passado pela segunda parte de “Os detetives selvagens”, do Roberto Bolaño, composta por uma infinidade de pequenos relatos em que o chileno exercita com maestria seu domínio das múltiplas vozes narrativas.
Feitas essas considerações formais, Galera se firma, aqui, como o patrono brasileiro contemporâneo de uma modalidade literária que um integrante de uma antiga comunidade do Orkut definiu genialmente como “bonde do zeitgeist”. São obras que costumam retratar certo niilismo geracional, marcadas pela presença de personagens que manifestam uma aversão meio desfocada ao status quo – inquietação que aos poucos vai degenerando para o conformismo, ou para a consolidação de um status quo em essência idêntico àquele contra o qual se bradava. Há uma espécie de mito primevo em torno do qual a narrativa se estrutura – aqui, ramificado na vida de Duke e na virada do milênio, bem como em seus prenúncios simbolicamente apocalípticos --, que é ao mesmo tempo motor propulsor e ponto ao qual se deseja chegar, ainda que tal intento só se concretize na memória, como um “rosebud” sussurrado à beira da morte. Os romances que integram o “bonde do zeitgeist” parecem pintar o panorama que inevitavelmente sucede ao que figurava nos bildungsroman, os famosos romances de formação, mais ou menos como certas releituras modernas dos contos de fadas apresentam hipóteses aridamente realistas a respeito do que aguardava os príncipes e princesas após o “felizes para sempre” de suas histórias originais. Emerge, dessa forma, e com o perdão do trocadilho infame, um gênero narrativo que também poderíamos chamar de romance de deformação.
Os narradores de "Meia-noite..." são três personagens profundamente insatisfeitos não apenas com a degenerescência de seus antigos ideais éticos, profissionais e estéticos -- insatisfação, aliás, ampliada pelo pioneirismo de que foram protagonistas, desbravando a quase inóspita world wide web em seus primeiros anos de existência --, como ávidos por retornar ao cenário idílico que antecedeu “o fim do mundo” pelo qual passaram sem perceber. A morte de Duke surge como um monumento imenso, de desolação infinita, à falência definitiva daquele otimismo, do antigo pendor à transgressão. Duke, o único que se mantivera relativamente fiel ao passado, à anarquia estética, ao caos “de raiz” que se opunha à gradativa institucionalização de tudo, inclusive do caos – Duke sucumbindo não a uma morte simbólica, que fosse fruto de seu projeto literário (como certo personagem em dado momento pateticamente supõe), mas a um fim de existência banal, imbecil, desprovido de grandeza artística ou de romantismo martirológico. Duke condenando todos à nostalgia, ao passadismo, seja pela aceitação falsamente relutante de se escrever sua biografia, seja ao inocular o desejo de se retornar ao lugar em que o apocalipse começou.
O final do romance, com Aurora deparando com uma cena de violência gradual e, em seguida, com uma criatura mítica, extraída dos porões de sua infância, é, tenho que admitir, por sua força simbólica, uma das mais comoventes e belas da literatura de nosso tempo.