Lucio 04/07/2021
Contra a Hierarquia de Valores da Sociedade Capitalista
INTRODUÇÃO
Este é um livro que busca analisar a psicologia humana em torno do seu desejo de status, de reconhecimento e prestígio diante dos olhos das pessoas. Botton busca, com enorme didatismo, explicar as causas deste desejo, apontar para a angústia e sofrimento dele decorrente e, então, sugerir cinco formas de solução. Conquanto seja um livro que pretenda analisar um fenômeno psíquico, logo se converte em uma discussão política, analisando as várias formas sociais de concepção do que confere status elevado e convertendo-se principalmente a uma crítica à ideologia capitalista e sua valorização da riqueza como fator de valorização do indivíduo. Vejamos como o autor desenrola o assunto.
RESUMO
A primeira parte é designada como ‘causas’ e é destinada a explicar o fenômeno, suas causas e problemas que acarretam ao homem. Botton começa observando que nosso desejo de status é o desejo de amor, de ser considerado importante aos olhos do outro e a expectativa de receber cuidados e atenção. Tal como ansiamos pelo amor fraternal e romântico, ansiamos pelo amor do mundo.
Depois, Botton observa que existe uma atitude de desconsideração e desprezo aos que são de status baixo, a qual denominamos ‘esnobismo’. O esnobismo é divulgado por várias vias e mídias e é uma atitude bastante nociva, diante da qual os que não conseguem status adequado se vêem afligidos.
Na sequência, o autor observa que o capitalismo gerou nos indivíduos expectativas altas sobre suas realizações e do que necessitam para se realizarem, tornando disponível aos homens o acesso a bens e ao progresso pessoal nas posses. Aqui, o autor estabelece um importante conceito em relação ao status, a saber, o de que nos incomoda o sucesso apenas daqueles que consideramos iguais. E a sociedade capitalista permitiu o avanço e a prosperidade de alguns do nosso meio, o que gerou a comparação inevitável e a insatisfação com o que se tem. A inveja foi aflorada com tal situação cultural e econômica. As barreiras à expectativa foram derrubadas, e todos julgam-se aptos ao sucesso, o que gera a sensação de fracasso para aqueles - a maioria - que não o alcançam. Botton propõe aqui, pela primeira vez, seguindo a Rousseau, uma forma cínica de diminuição das expectativas para conseguirmos alcançar satisfação.
O próximo capítulo é dedicado à análise da meritocracia. O autor analisa a mudança de perspectiva em relação ao pobre que ocorreu entre a antiguidade e medievo para a era moderna, capitalista. O pobre era considerado a base da sociedade e seu sustento, sendo, por isso, digno de honra. Também se considerava que a condição financeira de alguém nada dizia em relação ao seu caráter e virtudes. E, finalmente, muitos pensaram que o rico só era rico por ter usurpado sua posição, alcançado níveis mais altos por fraude e extorsão do pobre, que, subjugado pelos maus, eram impedidos de prosperar. No entanto, passou-se a contestar tais visões. Primeiro, observou-se que a produção é demandada pelos ricos e seus gastos, tornando-os a base e sustentáculo da sociedade. Depois, numa sociedade democrática, passou-se a considerar que as qualidades individuais é que determinavam a o status do indivíduo, pois dependiam dessas qualidades a posição em que ele se encontrava. Isso levantou peso sobre os pobres, considerados em tal situação por sua culpa. Por isso, toda forma de reformas que levaram à buscar uma igualdade de condições que permitissem uma aristocracia das virtudes e do mérito foi empregada. No final das contas, tornou-se imperativo reconhecer que há vencedores e perdedores segundo seus próprios méritos e qualidades.
Para contestar a meritocracia, Botton escreve um capítulo demonstrando que o sucesso não está sob nossa responsabilidade. Primeiro, argumenta que as habilidades, talentos e qualidades que nos fazem ter sucesso não estão sob nosso controle, vindo e indo como que por inspiração. Depois, diz que mesmo essas qualidades precisam aparecer no momento e lugar corretos, de modo que dependemos da sorte. Então, observa que dependemos da boa vontade dos empregadores. Observa que os empregadores estão mais preocupados com a empresa e que, portanto, o indivíduo depende do sucesso da empresa como um todo para manter seu emprego. E, por fim, nota que as empresas dependem do mercado global, da economia em escala macro. Com isso, o autor considera refutada a noção meritocrática.
A segunda parte é onde soluções aos problemas são apresentadas. O indivíduo se vê oprimido pelo sucesso por seus méritos na sociedade capitalista - méritos ilusórios, como o autor buscou mostrar. Então, precisa de alternativas em prol de sua sanidade e bem-estar. A primeira apresentada é a da ‘filosofia’. Botton nota que filósofos antigos buscaram ignorar as opiniões públicas e revela que o motivo era justamente que as considerava sem critérios racionais e justos. O convite, portanto, é ao de filtrar as opiniões públicas pelo crivo filosófico para julgarmos se devemos ou não dar razão a elas. E Botton segue a Schopenhauer e Chamfort para notar que geralmente a opinião das pessoas é tola e mesquinha. O resultado é que nos tornamos mais e mais isolados das pessoas, pois são raras as almas nobres que merecem ser ouvidas.
A segunda solução para o desejo de status nocivo é a arte. Botton segue a Matthew Arnold na tese de que a arte é a crítica da vida. Seu papel é basicamente moralizante e, por isso, não poderia deixar de se voltar também para a questão do status. Aqui, o autor se vale da pintura, dos romances, das tragédias e das charges cômicas como formas de apontar algo em torno daquelas teses favoráveis aos pobres e à simplicidade e virtude e contrárias aos ricos e detentores de status.
A terceira solução é a política. Botton nota que há, em diferentes épocas, características distintas para o que confere status elevado para os indivíduos. O autor entende, assim, que são os grupos dominantes que lutam para fazer de seus valores o que determina o status elevado em uma determinada sociedade, de modo que é a luta política que está em questão para a sua determinação. Aqui, Botton apresenta o conceito de ideologia, segundo o qual a classe dominante estabelece sua forma de pensar como se fosse natural e óbvia, e conecta o conceito de status a ela. A consciência política consiste em reconhecer e desnudar as ideologias, revelando sua genealogia e nos tornando capazes de conscientizar outras pessoas e alcançar uma mudança.
A quarta solução é o cristianismo. Botton nota como os cristãos observaram o poder da morte para a reconsideração de nossas prioridades e, assim, o questionar da busca de status. Em suma, em função da morte, somos levados a dar atenção ao que realmente tem valor. As questões espirituais e as virtudes tomam o lugar das preocupações materiais. Acrescenta-se que a morte torna nula todas as realizações, e Botton acredita que isso é mais penoso principalmente para os que se apegam às suas glórias terrenas. Mas não só o tempo nos leva a tal atitude, como também a própria dimensão gloriosa da natureza, diante da qual percebemos que todos nós nada somos. Botton também observa o conceito de igualdade essencial proposta no cristianismo, e como a sensação de se pertencer a uma comunidade pode substituir o desejo de distinção e destaque gerado pelo desejo e status. Finalmente, nota pelos conceitos de ‘Cidade de Deus’ e ‘Cidade dos Homens’ que o status que temos não está conectado com o que temos na outra, podendo até mesmo ser seu oposto.
Finalmente, a última solução é a boemia, que se tratava de uma forma de vida essencialmente antiburguesa, i. e., que busca rejeitar o puritanismo e materialismo (ambos no sentido estritamente ético) da burguesia, rejeitando, assim, qualquer envolvimento com os negócios e preferindo, em seu lugar, uma vida dedicada aos relacionamentos interpessoais sinceros, à contemplação da natureza e à apreciação da arte. Os boêmios, tal como o cristianismo, era antimaterialista e buscava enaltecer os valores ‘espirituais’. Neste intuito, buscaram agir de forma a desrespeitar os princípios burgueses, a chocar seu senso de respeito e a incomodá-los. Enalteceram os ‘fracassados’ no sistema capitalista, e observaram que os bons não poderiam subsistir com sucesso neste mundo de valores invertidos. Assim, muitos mártires do movimento largaram seus empregos respeitáveis para se dedicar à arte e ao romance, vivendo em privações, dispostos até mesmo a preferir a morte de fome. E tal movimento conferiu legitimidade aos poetas, ensaístas e artistas, dando a eles a credibilidade e o status elevado aos olhos de muitas pessoas que pensavam de forma alternativa.
Botton então conclui o livro mostrando que o desejo de status é algo natural a nós e, por isso, é inevitável. O problema não é ele em si, mas a suposição de que há apenas um modo de se considerar que alguém teve sucesso na vida. Botton se refere à perspectiva burguesa, capitalista. E, portanto, a grande questão é estabelecer os critérios que realmente são importantes para nós, identificar o público que os abraça e, então, buscar alcançar sucesso segundo esses princípios, ouvindo o juízo daqueles que respeitamos.
AVALIAÇÃO CRÍTICA
O livro começa trabalhando os aspectos psicológicos e existenciais do desejo de status, e eventualmente recobra o assunto, mas logo as digressões se tornam tão volumosas que o livro fala mais de política do que do tópico que o intitula. Com efeito, se um subtítulo fosse acrescentado, tal como ‘a superação do sucesso no capitalismo’ ou algo do tipo, o livro encontraria coerência e fidelidade temática. Na forma como está, fica difícil distinguir se seu tema principal é o do título ou uma crítica à meritocracia - que parece tema adjacente e poderia ser ilustrativo, mas se torna proeminente.
Este, contudo, é o menor dos problemas. Botton se equivoca na apresentação de vários temas, seja por equívoco, ‘espantalho’, desinformação ou incompletude. Pretendemos apontá-los aqui. Comecemos pelo conceito adjacente que domina boa parte do livro, a saber, o capitalismo - embora o termo seja estranhamente evitado.
Falando sobre a perspectiva de pensadores liberais clássicos, que julgavam ser meritório o fato de alguém conseguir não apenas um emprego, e nem somente manter-se nele, mas alcançar níveis mais altos na carreira e, consequentemente, nas posses, Botton até aponta, num determinado momento, que tal perspectiva mercadológica prima por algumas virtudes específicas, como a inteligência, criatividade, perseverança e coragem. Mas logo confunde as coisas e vê no reconhecimento dos bem-sucedidos uma espécie de atribuição de outras virtudes morais em geral. Ou seja, o autor dá a entender que liberais acreditam que os ricos são moralmente superiores por serem ricos, que a riqueza prova sua superioridade espiritual e até mesmo que o cristianismo passou a adotar tal discurso, vendo a riqueza como recompensa à santidade. Isso é evidentemente um lamentável equívoco. Primeiro que não conhecemos nenhuma das grandes figuras, tanto do liberalismo quanto do conservadorismo - as posições ligadas ao capitalismo - que afirme algo do tipo ou mesmo que forneça as bases para inferi-lo. Reconhecer que algumas virtudes influenciam - como as mencionadas - não quer dizer atribuir outras virtudes morais. Essa é uma confusão sutil mas devastadora. E dá a impressão mais banal possível da posição contrária ao progressismo. Daí a ênfase desnecessária de Botton à questão de que a grandeza de espírito pode acompanhar o pobre. Qualquer autor não-progressista que já lemos concordaria em gênero, número e grau! Entretanto, essa tese é fundamental para a questão do autor contra a forma com que ele imagina que a sociedade capitalista distribui o status.
E, somado a esse erro, temos essa caricatura do cristianismo - erro comum na obra. O que Botton menciona é o germe da teologia da prosperidade. Suas referências são a duas figuras absolutamente sem notoriedade no pensamento cristão, tanto na época quanto posteriormente. Jamais foi adotado, senão em reconhecidas distorções da fé, a noção de que quanto mais se é próspero, maior a santidade do indivíduo. O único mérito de Botton aqui é não mencionar Weber como sua referência - se é que ele a tinha em mãos -, que igualmente se equivoca a respeito do tema, atribuindo tal mentalidade a Calvino.
Ainda sobre a questão meritocrática, que está no cerne da discussão central do livro, vale mencionar os méritos de Botton em mencionar Carlyle a esse respeito e a questão da aristocracia das virtudes. Isso, de fato, corresponde ao pensamento liberal e liberal-conservador. Entretanto, a noção de inícios absolutamente iguais já extrapola a homogeneidade e mesmo a hegemonia dessas vertentes, pois para tal o autor faz o Estado intervir e promover ações afirmativas. Na verdade, numa concepção meritocrática e livre, deve-se reconhecer as condições de vantagens que alguns têm por conta de seus pais. E isso não nos parece injusto ou imoral, mas natural. Evidentemente, torna mais difícil - não impossível - a ascensão dos que começam com tal desvantagem, mas a culpa aí - se é que esse é o termo apropriado - recairia sobre seus pais, antepassados, seu povo e escolhas econômicas inadequadas e/ou à própria sorte - ou ‘providência’, no caso de cristãos, o que dá outra percepção da situação. Naturalmente, o que os pais decidem fazer da vida, conforme as capacidades que receberam de Deus ou da natureza - conforme cada um vê - influenciará os filhos, e interferir nisso pode contemplar a pusilanimidade de muitos pais, enquanto pune todo o esforço, sacrifício e perseverança de outros. Não podemos nos estender aqui, mas basicamente há o equívoco de confundir justiça e igualdade e de desconhecer o princípio da desigualdade injusta - que é tangido pelo texto mas não a contento.
Ainda na tentativa de desacreditar a meritocracia, Botton aponta um primeiro argumento bastante equivocado. Segundo o autor, não temos controle sobre os méritos que nos promovem, sendo eles emergentes de forma eventual e involuntária. A verdade é que somente para algumas poucas profissões isso é verdade - como para o músico, poeta, artista e afins, que carecem de inspiração. Para as demais profissões, as capacidades naturais, os talentos e virtudes que nutrimos estão perfeitamente à nossa disposição. Portanto, é mais uma crítica equivocada à meritocracia.
Quando aponta um segundo argumento, observa, com felicidade, que tais talentos devem estar presentes numa ocasião propícia, i. e., na hora certa e no lugar correto. Isso é verdade sob certo prisma. Com isso, Botton acredita que os méritos são gravemente diminuídos, pois no final das contas, dependemos da sorte. Antes de mais nada, não é totalmente verdade, pois as oportunidades para uma parte significativa de exercícios dos dons e talentos são oferecidas constantemente aos homens em geral. Por exemplo, concursos públicos para os perseverantes em estudar e/ou que se interessam pelos assuntos cobrados nas avaliações de ingresso estão sempre à disposição. Portanto, a oportunidade não aparece de forma fortuita tal como Botton dá a entender, e não poderia depreciar os méritos de muitos desses indivíduos com base no argumento da ‘sorte’.
Mas, ainda assim - pode-se argumentar -, é bom que o indivíduo com tais qualidades nasça numa cidade, estado ou país que haja tais oportunidades. Isso é verdade. Mas essas oportunidades aparecem em maior profusão justamente na medida em que os países são capitalistas. Portanto, mais uma vez, o argumento da sorte sofre uma reviravolta e acaba salientando aspectos positivos do sistema para o qual foi usado para destruir.
Finalmente, cristãos podem reconhecer a proviência como determinante, no final das contas, das condições do indivíduo. Isso é diferente do argumento medieval que supostamente obstruía a mobilidade social - isso, segundo Botton. Tanto os talentos quanto a ocasião para que se manifestem são dados por Deus, de modo que, de fato, é Deus o responsável pela posição dos indivíduos quando consideramos seu progresso respeitando os princípios morais. Ainda se pode falar da liberdade do indivíduo em negar sua vocação, mas mesmo assim ela ainda vem de Deus, caso ele resolva atendê-la. Além disso, pode-se legitimamente condenar, atacar e buscar destituir aqueles que alcançaram uma posição de destaque por meios fraudulentos ou perversos.
Isso nos leva a relembrar o que parece ser necessário dizer em toda resenha de pensadores progressistas, a saber, a crítica à noção de exploração de matiz marxista. Não há exploração tal como os marxistas concebem por seu conceito de valor estar equivocado - e, assim, cair sua concepção de mais-valia. Aqui, seguimos a Menger, Böhm-Bawerk e Mises para a conceituação do valor e preço. Sendo assim, não se poderá usar tal recurso para acusar as pessoas de terem se tornado ricas por meio perverso e fraudulento de extorsão por terem sido patrões, capitalistas, investidores.
A propósito, Botton também diz que os méritos são desconsiderados por conta da dependência que temos dos patrões, dos empregadores. Isso é leve e parcialmente verdadeiro. Entretanto, em uma pujante economia de mercado, os patrões disputam os melhores empregados e oferecem melhores condiçẽos para mantê-los. Além disso, o patrão seria todo, principalmente diante de trabalhos qualificados, em demitir alguém cujas competências oferecem enorme benefício para a empresa. Assim, os patrões seguem os méritos na maior parte das vezes numa economia próspera, onde há grandes demandas de serviço e oportunidades, e o argumento de Botton tem pouquíssimo peso. Pode apenas desculpar, em alguns casos, o desemprego de pessoas desqualificadas, principalmente em economias menos capitalistas.
Ainda no mesmo famigerado capítulo de crítica ao capitalismo, Botton apresenta o sucesso da empresa e os fatores macroeconômicos que determinam nossa ‘sorte’. Para começo de conversa, isso é verdadeiro para uma grande parte dos serviços, mas não para todas. Um escritor não depende tanto desses fatores, por exemplo, bem como artistas em geral podem se esquivar do problema. O mesmo em relação aos servidores públicos. Entretanto, é bem verdade que muito do nosso sucesso diz respeito à cooperação próxima e remota. Isso, contudo, não nos parece desfazer os méritos no final das contas, mas apenas considerá-lo em uma perspectiva coletiva na qual a parte do indivíduo pode ser decisiva. Basta uma metáfora com qualquer esporte coletivo e poderemos entender. Num time de futebol, um jogador extremamente talentoso pode fazer toda a diferença, mas ele não joga sozinho, e os méritos dos demais devem ser reconhecidos. Isso, contudo, não apaga os méritos individuais do jogador e nem omitem o fato de que seu talento pode ser o maior responsável pelo sucesso da equipe. Portanto, em situação análogas, o mérito não é diluído pela cooperação na competição do mercado. Mesmo numa perspectiva macroeconômica podemos considerar que o bom funcionamento de cada parte determinará o sucesso do todo - embora isso possa realmente ser relevante para majorar ou minorar os resultados finais.
Um último comentário de ordem econômica é, em certo sentido, também histórica, a saber, diz respeito à denúncia das condições do proletariado - também muito comum nos escritos progressistas. Aqui, recorremos às observações de Mises para considerar a situação em seu devido contexto. É preciso observar a situação anterior à dos trabalhadores industriais no início da Revolução Industrial, e notar que estavam em condições ainda piores - e que bem poderiam voltar a elas se não achassem aquela que estavam como vantajosa. Além disso, aquela foi uma etapa importante para que se alcançasse as condições posteriores, onde o proletário prosperou, ao contrário do que Marx pensava - e que foi reconhecido por autores como Horkheimer e Marcuse. Ignorar esses fatores é apresentar de forma desonesta a situação real dos trabalhadores - como Engels e Marx o fizeram.
Do ponto de vista moral, é preciso algumas avaliações críticas também. Confirmado por Engels, Botton denuncia o burguês de ganância extrema, fazendo de ganhar dinheiro sua regra máxima pela qual sacrifica todos os demais valores. Embora, evidentemente, haja tal tipo numa sociedade capitalista, sempre houve em todas as épocas. A ganância e ambição vil não são prerrogativas do capitalismo. Ademais, a experiência que qualquer um tem com qualquer comerciante ou empreendedor revelará que tal imagem, amiúde, não passa de uma caricatura. A própria produção cultural burguesa reforça o desmentir de tal tese. Inclusive o fato de que não poucos ‘burgueses’ patrocinaram a arte, exerceram caridade e valorizam a sua família e Deus acima de qualquer lucro.
Botton está cheio de razão ao criticar, várias vezes, o fato de que as posses não podem nos satisfazer e que é uma ilusão acreditar que quanto mais rico formos, mais felizes seremos. Se algum cidadão moderno for pego com tal pensamento, deve logo ser repreendido. Mas conservadores já faziam tal crítica há séculos! E igualmente - ao menos isso reconhece o autor - os cristãos em geral. Mesmo muitos liberais valorizam a liberdade como fator preponderante para a felicidade, vendo o livre mercado como ferramenta indispensável para isso, não como fim em si. Nunca vimos, igualmente, ninguém defender algo nesse sentido. O mais próximo teria sido Mises defendendo que há uma satisfação provisória nos bens que adquirimos, e que é melhor ter condições de adquiri-los e liberdade do que não ter nem um nem outro.
A esse respeito, entendemos que Botton não consegue oferecer uma solução definitiva para nosso anseio de amor por ele ser transcendente. Nem consegue lidar a contento com o problema da morte, contentando-se em observar que ela pode nos tirar a angústia da pressão por status, mas colocando no seu lugar, sem o considerar apropriadamente, o fato de que a vida parece ser algo sem sentido. Todos os problemas existenciais ignorados em termos de matéria de reflexão, senão para dizer que os que possuem glória terrena são humilhados por eles. Talvez por não ser a temática principal do livro, mas pelo menos algum apontamento rápido de um ou dois parágrafos traria uma completude necessária ao texto. Daí surgir a opção boêmia como aparentemente viável, quando nos parece claro que toda a revolta contra a burguesia aponta para um protesto vão e tolo - há um limite de exagero que mesmo Botton reconhece, mas não a contento a ponto de denunciar a anti-arte explícita no que é produzido, visando não mais o belo, mas primeira e proeminentemente a política - contra a existência.
Há ainda alguns detalhes que nos incomodaram mas que não carecem - ou não comportam - tratamento exaustivo, como as menções bíblicas imprecisas e uma perspectiva socialista de Jesus e do ideal cristão. Trata-se Agostinho como um pessimista, o que também é um grande equívoco. E o autor fala também da ‘filosofia’ como se fosse um todo harmônico, quando o que apresenta é - como não poderia de ser - uma vertente filosófica específica, meio cínica meio estóica, quiçá ‘moralista francesa’.
REFERENCIAL TEÓRICO
Botton é um autor com uma alta bagagem. O texto é carregado das mais variadas referências. A discussão em termos psicológicos ganham a presença significativa de WIlliam James, e os destaques a respeito na obra de Smith, Hume, Tocqueville, Rousseau. Rousseau, aliás, é figura importante para a perspectiva progressista que dá o tom do livro. Mas não poderia faltar Marx e Engels, naturalmente. A eles, Botton acrescenta G. B. Shaw como um autor do século XX a seguir o mesmo espírito. Woolf levanta o tema do feminismo. Orwell aparece eventualmente. Thackeray aparece na crítica ao esnobismo. Baudelaire é uma das figuras representantes do espírito boêmio, bem como Thoreau e, em certo sentido, Emerson. Os ingleses Ruskin e Carlyle também na crítica ao materialismo moral. Para a perspectiva filosófica, são citados principalmente Schopenhauer e Chamfort. Na arte, a figura proeminente é Matthew Arnold, mas seção sobre a literatura temos Jane Austen, Georg Eliot e Zadie Smith. Na tragédia, Sófocles, Aristóteles e Gustave Flaubert. São mencionados os seguintes pintores: Jean-Baptiste Chardin, Thomas Jones e Christen Kobke. No cristianismo, há uma tímida referência a Agostinho e Dante, e uma atenção maior a Tolstoi e outras (bem poucas) figuras menos prestigiosas. A propósito, os temas existenciais tratados careceram da presença mais significativa de Agostinho e, principalmente, de Pascal e/ou Kierkegaard. Empobrece bastante as observações de Botton não lidar com tais autores óbvios. Para perspectivas medievais, Botton recorre a Aelfric de Eynsham, Gerard de Cambrai, Hans Rosenplüt e John de Salisbury, mas não as figuras mais importantes, como Agostinho, Boécio, Tomás de Aquino, Bernardo de Claraval, Boaventura… o que também empobrece a obra. O livro, como obra recente - escrita no século XXI - também careceu de referências contemporâneas. Embora tenha o mérito de tratar o liberalismo diretamente com Smith e Hume (Locke aparece apenas de forma esporádica e de passagem), faltou considerar os desenvolvimentos novecentistas dos austríacos (Menger, Böhm-Bawerk), para não falar das figuras recentes mais famosas (Mises, Hayek, e. g.), inclusive liberais de escolas distintas, como Friedman. Para o conservadorismo, temos apenas Tocqueville, e este considerado sob outros prismas. Burke e cia. nem se pensou em mencionar.
RECOMENDAÇÃO
Primeiro, Botton escreve muito bem, de forma muito didática e de fácil compreensão. Por isso, o livro é acessível a qualquer um. Isso não quer dizer que lhe falte profundidade, mas apenas que é elaborado de tal modo que não demanda conhecimento prévio - cada conceito importante, por exemplo, recebe explicação suficiente. A formação prévia a respeito dos assuntos só colaboram com uma perspectiva crítica da obra, não com sua compreensão. Dito isso, o livro é especialmente interessante para quem adotar uma perspectiva progressista. É basicamente mais uma forma de culpar o capitalismo, a burguesia e a sociedade moderna dos males da humanidade. É, também, uma forma de protestar e de buscar alternativas que confortem o indivíduo a viver em tal sociedade que julgam opressora em todos os sentidos. Estudantes de política, sociologia, psicologia, bem como dos temas existenciais e culturais podem se beneficiar mais da obra. Para quem for conservador ou liberal não achará uma leitura agradável a partir do terceiro capítulo em diante, vendo na obra uma paulatina explicitação de seu objetivo progressista para no final se tornar quase panfletária. Mas enquanto material de pesquisa para entender como, equivocadamente, os progressistas imaginam que conservadores e liberais pensam, é um excelente material e fornecerá pontos de contato significativos para esclarecimento.