Mr.Sandman 19/09/2024
Multiverso da Imaturidade
Repeteco é um gibi de Bryan Lee O'Maley, que segue a mesma linha do que ele fez em sua série de sucesso: Scott Pilgrim. Assim como em Scott Pilgrim, temos aqui um mundo que equilibra uma vida cotidiana com elementos sobrenaturais, misturando ambos de formas inusitadas e excêntricas, com o intuito de ilustrar de forma criativa as angústias da vida adulta. O autor opta em Repeteco, por layouts com quadros menores e por uma vibrante paleta de cores. Em termos narrativos, é uma história decente, mas que poderia ser mais densa e com uma mitologia melhor elaborada. Um dos maiores problemas aqui é uma das maiores virtudes de Scott Pilgrim. Os protagonistas de ambas as histórias são babacas individualistas.
Katie tem 29 anos e é uma chef renomada. Mas ela é um Scott Pilgrim de 29 anos, basicamente. Scott Pilgrim era um babaca de 22 anos. Por mais que o gibi realmente busque explorar essa ideia de imaturidade na vida adulta, acaba que os comportamentos da Katie não servem tanto como uma base pra você se identificar, mas como uma base para uma indignação e uma raiva. Katie é imatura até demais. Ela está com seus 29 anos, está abrindo seu segundo restaurante e deve ter lidado com uma infinidade de problemas no primeiro (que é renomado) e ainda assim é uma pessoa extremamente difícil de conviver. A personagem é super carismática (visualmente) e tem seus momentos, mas eu queria que aqui ela fosse pelo menos alguém mais decente. A Hazel por exemplo, poderia muito bem tomar o protagonismo dessa história. Tudo que foi apresentado sobre ela é mais interessante que a Katie. A Katie literalmente rouba um certo brilho dos outros personagens, que servem apenas para alavancar as paranoias dela e as decisões impulsivas que ela toma. Quase todas essas atitudes descambam em cenas de humor que se repetem até o final da história (como a obsessão dela por atenção e pelo ex).
Os temas são até bem colocados, por mais que não fujam muito de uma sucessão de acontecimentos meio óbvia. A melhor parte da criatividade aqui está na arte e nas composições, ao invés do texto e do imaginário. Sinto que a grande parte da substância e do que realmente me prendeu ao gibi foi a arte, os layouts criativos e as cores. De resto, eu realmente preferia que a Hazel fosse a protagonista. O final parece refletir bem pouco sobre as consequências das ações da protagonista. A reflexão sobre estar em paz com os ambientes que você ocupa, é muito bonita, mas poderia ser feita a partir da perspectiva de uma Katie um pouco menos imatura ou talvez de uma Katie mais jovem mesmo. A cena no escritório do Ray no final (que é sensacional) deixa até uma pista por meio de uma piada de que existe uma autoconsciência sobre isso, mas ainda assim acaba tirando um pouco da magia da história. Eu ainda acho uma história boa com reflexões boas, mas que acaba perdendo muito de seu potencial pela forma como a protagonista lida com as coisas. Não existe problema em ser babaca e achar redenção e melhorar depois, mas a forma de mostrar isso, pelo menos em Repeteco, foi cansativa e meio deslocada. Seria interessante ver a Katie montando o repeteco e então lidando com os espíritos do lar. Construir talvez, uma série, e essa parte da história vir depois (que foi contada aqui, sobre o novo restaurante e tudo mais). A mitologia é bem interessante, mexe com o "multiverso" de uma forma bem legal e mística, mas como tudo acaba girando em torno da Katie, sinto que muito do que foi exposto acaba sendo menos impactante do que poderia. É o grande Multiverso Imaturo da Katie.
No mais, Repeteco vale a pena, mesmo com as opiniões que revelei acima. Ensina uma lição importante de que sempre podemos mudar e recomeçar, que leva tempo e carinho com os espaços que ocupamos. Temos que pensar para além de nós mesmos. É uma excelente mensagem. Só acaba se arrastando um pouco para mim, já que achei a protagonista bastante caricatural em vários momentos e com atitudes que mais me afastavam dela do que me aproximavam. A arte é maravilhosa e bastante criativa e as cores são muito lindas.