Núbia Esther 26/07/2017Não sou muito de ler contos. Sempre dei preferência aos romances na hora de escolher minhas leituras e foi por isso que o lançamento do livro de contos do Ted Chiang passou despercebido. É bem provável, que se não tivessem feito o filme A Chegada (baseado em um dos contos da coletânea) e eu não tivesse ficado com vontade de vê-lo, nunca teria dado uma chance para a coletânea. Ainda não vi o filme, mas a obra de Ted Chiang com certeza me fez prestar mais atenção às coletâneas de contos. Agora até mesmo posso dizer que concordo com o que Neil Gaiman escreveu na introdução de sua própria coletânea de contos Alerta de Risco – contos são como “as mais puras e mais perfeitas criações possíveis: nos melhores, nenhuma palavra era desperdiçada. Um autor fazia um gesto com a mão e subitamente surgia um mundo, pessoas, ideias. Um início, um meio e um fim que nos levavam aos confins do universo e nos traziam de volta” (Alerta de Risco, página 12). E é isso que Ted Chiang faz muito bem (em alguns muito melhor) nos oito contos que compõem esta coletânea. Contos que no total ganharam nove importantes prêmios, dentre eles o Nebula, o Hugo e o Locus, e nos quais, ele trabalha muito bem a ciência, mesmo que muitas vezes ela adquira um tom bastante fantasioso. Leitura mais do que recomendada para os fãs de ficção-científica. É realmente uma pena que Chiang seja conhecido por escrever com pouca frequência. Agora, para apresentar História da sua vida e outros contos com mais detalhes, acho melhor falar mais especificamente sobre cada um dos contos.
A torre da Babilônia, o primeiro conto da coletânea, também foi o primeiro conto publicado por ele, em 1990. O conto é inspirado no mito da Torre de Babel. Na versão de Chiang, a torre já atingiu a abóbada do céu e agora mineradores terão de escavá-la de modo a permitir que a torre continue a crescer. É mais fantasioso que científico, mas há muitos elementos de ciência ali. E mesmo os disparates, são congruentes com o mundo construído pelo autor e antigas teorias (como a geocêntrica) hoje refutadas. Eu nunca imaginaria que o mito da Torre de Babel poderia render um conto de sci-fi, mas Chiang conseguiu unir os dois temas muito bem. E com uma conclusão realmente sagaz. De quebra, ele também carregou seu conto com um grande teor filosófico e até mesmo ético. Até onde podemos ir pelo conhecimento? Estamos preparados para encarar o desconhecido?
Entenda é o conto mais antigo desta coletânea, ainda que tenha sido publicado em 1991. E é daqueles contos que parece um thriller sci-fi (se é que posso chamá-lo assim). A história começa despretensiosa, mas atinge um ritmo frenético e quase que sinestésico. Está ente os meus favoritos da coletânea. Nele, Leon Greco, um paciente que quase morreu afogado e foi resgatado praticamente em estágio vegetativo, foi submetido a um tratamento experimental que não só o curou como também aumentou sua inteligência consideravelmente. A cura acabou se transformando em um experimento que chamou a atenção de agências governamentais e Leon passa a fugir para manter suas habilidades cognitivas apenas para si. Foi impossível mão traçar paralelos com o filme Lucy de Luc Besson.
Divisão por zero, publicado em 1991, vem na contramão. Não é sci-fi e ainda que haja beleza no conceito matemático que inspirou o conto. A história dos personagens não empolga.
Logo depois, vem aquele que me fez querer ler o livro. História da sua vida, publicado originalmente em 1998. É fácil entender a escolha do conto para adaptar para o cinema. É sci-fi, mas com um drama humano bastante aflorado, o que arremata facilmente a empatia do público. Ainda que “Entenda” seja ótimo e tenha um ritmo frenético facilmente aplicado às telas, lhe falta essa pitada de humanidade que foi bem utilizada aqui. O conto traz a narrativa de quando naves surgiram na órbita terrestre e artefatos apareceram nos campos. À dra. Louise Banks, uma linguista, foi solicitado que ela estabelecesse contato com os alienígenas para decifrar sua forma de comunicação e quem sabe aprender coisas úteis, sempre aquela pitada de interesse em busca de algo de valor.
“O universo físico era uma língua com uma gramática perfeitamente ambígua. Todo fenômeno físico era uma expressão que podia ser analisada de duas maneiras completamente diferentes, uma causal e a outra teleológica, ambas válida, nenhuma delas desqualificada, não importava a quantidade de contexto disponível. ” (Página 178)
A forma como a trama e a nossa experiência de leitura vão se moldando conforme aprendemos mais sobre a linguagem dos heptápodes (como os visitantes foram chamados) é embasbacante. O mais interessante foi que nessa história, teve espaço para a mulher cientista apaixonada por códigos e linguagens e a mulher mãe e todo seu amor por sua filha e, apesar da aparente dicotomia, a trama segue una em todos os seus elementos. O final é surpreendente. Fiquei curiosa para descobrir como ele foi trabalhado no filme.
Comecei a leitura de Setenta e duas letras, publicado em 2000, com um pé atrás. Vida a partir do barro? Conferida pelo nome? Teoria do pré-formismo (homúnculos)? Fixidez das espécies? Geração espontânea? Eram tantas “teorias científicas” disparatadas que foi difícil acreditar que dali sairia um conto de ficção científica coeso. E não é que saiu! Chiang incorporou todas essas “teorias” com conhecimento científico embasado, para criar uma sociedade única, na qual os nomes têm importância primordial e o futuro da humanidade passa pelas escolhas éticas dos responsáveis pelo desenvolvimento da ciência neste mundo.
O sexto conto, A evolução da ciência, foi publicado em 2000 em um número especial da Nature (a revista de ciências na qual 10 em cada 10 cientistas gostaria de ter um trabalho seu publicado). O conto é curto, mas traz à tona discussões pertinentes sobre o desenvolvimento da ciência e o acesso universal ao conhecimento científico produzido.
Em O Inferno é a ausência de Deus, Chiang traz os anjos como figuras centrais, esses seres fazem aparições frequentes, associadas à eventos catastróficos semelhantes à desastres naturais, e a separação entre a vida terrena, o Céu e o Inferno é bem tênue. Nesse cenário, um homem acabou de perder sua esposa durante uma aparição e ela ascendeu ao Céu, agora, determinado a reencontrá-la, ele precisa encontrar a sua fé e diminuir suas chances de ir parar no Inferno.
E, finalmente no último conto, Gostando do que vê: um documentário, a aparência física entra em discussão. Aqui temos novamente um texto puramente científico, no qual a tecnologia e as manipulações dos sentidos (percepção neuronal) podem ser utilizadas para combater situações sociais excludentes. Aqui, a ditadura da beleza. Até que ponto é válido utilizar dessas artimanhas para forçar uma realidade de cooperação? Essa sociedade benéfica é realmente real? Tem bases fortes para continuar? Viver em uma sociedade que valorize quem você é e não como você se parece não seria melhor? A sociedade não seria mais igualitária se o fator beleza fosse descartado? Chiang nos mostra os dois lados com imparcialidade, ainda que no posfácio ele deixe claro qual seria sua escolha.
Exposto tudo isso, a única coisa que me resta dizer é: se permita conhecer a obra de Chiang (na amostra abaixo, o primeiro conto está completo, leia!). É ficção científica de qualidade, com tramas curtas, mas poderosas.
[Blablabla Aleatório]
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