Queria Estar Lendo 17/08/2021
Resenha: O Império Final
Depois de anos e de complicações e de edições esgotadas no Brasil, chegou a minha hora de conhecer a série Mistborn - nesse caso, a primeira era - com O Império Final, primeiro volume da trilogia do Brandon Sanderson que é um estouro em questão de criatividade e narrativa.
A história se passa em um universo dominado por um grandioso e tirânico império. A maior parte da população já se esqueceu do que significa ter liberdade; há poucos entre os escravos (skaa) dispostos a se arriscar em meio a fracassadas rebeliões e levantes insignificantes. Nada nem ninguém consegue destronar o Senhor Soberano, imperador de tudo que se conhece.
Mas Kelsier está disposto a tentar. Ele reúne um grupo improvável de pilantras, saqueadores, ladrões e escravos-fugitivos em uma missão impossível: derrubar o império final e o Senhor Soberano com ele. Kelsier é um Nascido da Bruma, uma pessoa capaz de conduzir todo tipo de magia que permeia aquele universo; uma pessoa capaz de confrontar o Senhor Soberano, se tiver a coragem para isso.
Com o grupo reunido está Vin, uma adolescente que só conhecia as ruas e os roubos e a sobrevivência sem confiança em ninguém. Com esses malucos rebeldes, no entanto, ela parece encontrar uma família - ou o mais próximo disso. Kelsier se oferece para treiná-la, porque Vin também é uma Nascida da Bruma; em troca, ela vai ajudá-los em seu plano absurdo, infiltrando-se em meio à nobreza.
O Império Final foi meu segundo contato com a escrita do Brandon Sanderson e eu estou muito feliz por dizer que sim, esse homem faz tudo (e estou puta com a Denise de 2014 que perdeu de comprar o box da primeira era de Mistborn por 70 reais). Mas enfim, aprendendo com os erros da vida.
Mistborn é muito sobre política, sobre um sistema mágico extremamente criativo e inesperado e sobre esperança mesclada a caos e vingança. Um mundo que não reconhece a liberdade, que nem mesmo se lembra dela, é um mundo em que a rebeldia é difícil de inflamar. Mas a injustiça e os maus tratos e as diferenças sociais são tão gritantes e explícitas pelo decorrer da história que sentimos o que os protagonistas sentem; essa ânsia de derrubar o império final junto com eles.
É uma missão impossível, mas missões assim pedem por líderes surtados. E entra o Kelsier.
Da primeira cena dele, eu já sabia que me apaixonaria por esse personagem. Ele é bem aquele protótipo de Han Solo que eu amo tanto, com os comentários debochados e sarcásticos sempre na ponta da língua, cheio de si, com um ego do tamanho do mundo - e um coração de ouro também.
Kelsier perdeu o amor da sua vida e sua liberdade anos atrás e quer vingança; ele sabe que é possível inflamar uma rebelião entre aqueles que sofreram tudo que sofreu, mas também sabe o quanto é difícil acreditar na causa quando não se conhece ela. É ele quem dá o primeiro passo para a missão alucinada de derrubar o Império Final; é ele que começa a reunir pessoas de todos os cantos daquele mundo para criar um grupo revolucionário.
Eu gostei demais de todo o desenvolvimento do personagem, de como a narrativa equilibrou suas loucuras movidas pela sede de vingança com momentos de razão e de emoção. Kelsier é um protagonista forte em todos os sentidos da palavra, e é alguém com quem a gente consegue se identificar logo de cara. Pelo sonho impossível e pela vontade de mudar tudo que se conhece.
"O medo é a ferramenta dos tiranos. Infelizmente, quando o destino do mundo está em jogo, deve-se usar todas as ferramentas disponíveis."
Com ele, o grupo de rebeldes se forma e é um leque de personagens de personalidades marcantes e distintas que é quase impossível falar sobre todos eles; o que eu mais curti foi o Ham, braço direito do Kelsier, a razão quando nosso líder estava tomado por ideias surtadas demais. Ham é o cara dos estratagemas de batalha, a espada em meio a um grupo num conflito. Muitos momentos em que o colocavam como líder de alguma situação e ele se mostrava desconfortável porque ele é claramente o general, não o comandante.
Outro personagem muito interessante foi o Sazed, um estudioso responsável por guardar histórias e lendas e tudo que existe de conhecimento. Seu povo foi quase extinto por ordem do Senhor Soberano. Por medo do conhecimento? Das memórias? Das lembranças que se perderam, mas eles ainda guardam? Vamos descobrindo com o passar das páginas e tudo vai ficando mais e mais intrigante por causa disso.
Sazed é uma incógnita e o mistério ao redor dele é essencial para tudo que a gente entende com o passar da história. E sua relação com Vin, a ladra adotada pelo grupo para se passar por espiã, é fraternal e quase paternal, assim como Kelsier.
Eu gostei tanto da found family formada por esses rebeldes que nem sei explicar! O Kelsier e a Vin formam um laço de família tão forte; em alguns momentos parecem irmão e irmã discordando e discutindo, em outras pai e filha convivendo e aprendendo um com o outro. Essa sensação de irmandade e família que o livro constrói é perfeita e ajuda a fisgar nossa emoção para todos os personagens.
A Vin, aliás, é maravilhosa. Uma garota que não conhecia confiança e esperava traição de todo mundo, porque foi tudo que ela conheceu durante a vida vivendo nas ruas, que encontra pessoas dispostas a confiar e se arriscar por ela.
A mudança na personalidade arredia e tensa da Vin é notável com o passar dos capítulos. Ela se torna firme, decidida, inclusive herda algumas características da impulsividade do Kelsier, da certeza do Sazed, e outros traços de coadjuvantes que passam a conviver com ela.
E, claro, desabrocha em uma personagem forte, determinada e extremamente importante para a causa. Eu adorei os momentos de espionagem dela entre as casas nobres; rola até espaço pro começo de um romance que tem carisma e surpreendente por apresentar uma reviravolta na história principal.
Angústia e tensão e desespero são três palavras que a narrativa do Brandon Sanderson sabe trabalhar bem. Por se tratar de uma causa impossível, o tempo todo fica a sensação de que algo vai dar errado. De que ter esperança demais é perigoso. De que o Senhor Soberano é mesmo um deus, e como você confronta um deus? Como mata um deus?
O sistema de magia de Mistborn é uma das coisas mais brilhantes e bizarras que já li em livros de fantasia! É muito criativo e diferente, lidando com metais e propriedades mágicas e pessoas que conseguem controlar alguns deles - até os Mistborn, que conseguem controlar todos.
O modo como o autor constrói esse universo aos poucos, apresentando as diferenças do mundo, a chuva de cinzas, a vegetação estranha, a falta de detalhes que tornam o que conhecemos um mundo mais humano e civilizado - quando aquele foi relegado a um império cruel e um líder monstruoso - dão a ambientação que a gente precisa para imergir completamente na história.
Se tem algumas coisas datadas - porque Mistborn é de 2006 - é aquela coisa de faltar personagens femininas, recair no man pain para alguns personagens masculinos serem motivados, ter uma construção de universo um pouquinho misógina (com o papel das mulheres relegado a servas, ladies da nobreza, prostitutas, etc). Poderia ser muito pior, porque tem sensibilidade na maneira com que a história desenvolve essa construção. É um mundo desgraçado, então todo mundo tá bem ferrado nele.
Mas, considerando as histórias mais recentes do Sanderson, a gente sente que esses detalhes ficaram para trás - e a Vin por si só, para a época que o livro saiu, é um marco que eu sinceramente não esperava ler. É uma personagem feminina tão bem escrita que nem parece ter sido escrita por um homem cis (isso é um baita elogio).
"Há beleza na compaixão, mas é importante ter sensatez também."
Mistborn tem ação, reviravoltas chocantes, mistério e fantasia na medida certa. É uma pena essa série ter se perdido aqui no Brasil, porque ela merecia toda a atenção do mundo em questão de criatividade, personagens cativantes e história incrível.
Se você lê um pouco de inglês e quer se arriscar numa série de fantasia, eu super indico O Império Final. A narrativa é fluida e fácil de acompanhar e você vai encontrar nela uma história sobre esperança e rebeldia em um mundo tomado por cinzas.
site: https://www.queriaestarlendo.com.br/2021/08/resenha-mistborn-o-imperio-final.html