Estêvão 21/10/2010A voz da liberdadeNa primeira cena do filme Amistad, Spilberg nos oferece uma brilhante metáfora que representa o quão doloroso significou para os negros se libertarem dos grilhões da escravidão. A cena mostra, com muito realismo, um dos escravos arranca um prego que estava preso a seu pé e ligando-o às algemas.
Mas não é sobre Spilberg ou sobre Amistad que quero falar, é sobre outro artista, dessa vez brasileiro, que também construiu uma obra sobre a escravidão. Falo de Castro Alves, poeta baiano que, pelo trabalho, ficou conhecido com “o poeta dos escravos”. O livro que me refiro chama-se Os escravos. Nesta obra, Castro Alves trabalha a questão da escravidão, se colocando como um porta- voz contra a prática do tráfico e da comercialização dos negros. O poema que sintetiza essa postura combativa de Castro Alves chama-se Navio Negreiro, verdadeiro marco da poesia brasileira, marcada por um lirismo muito forte e por uma voz política ativa.
Dividido em seis partes, nesse poema é trabalhada a temática do tráfico, do sofrimento dos escravos, das péssimas condições de locomoção e, por fim, é feita uma crítica contundente ao Brasil.
As três primeiras partes do poema é totalmente narrativa. Na parte um é descrito todo o cenário marítimo por onde o navio negreiro passa: o mar, o céu, a sensação de prazer que a beleza dos dois propicia aos marinheiros, os sons do mar e outras peculiaridades da vida marinha.
Na sequência são cantados os grandes marinheiros, os navegantes de outras épocas. Essas duas primeiras partes apresentam uma visão mais bela do que era um navio negreiro. A linguagem do poema se aproxima do zoom cinematográfico. É como se o eu lírico observasse as partes do navio pouco a pouco, observando de imediato o belo para depois conhecer o que se passa nele, para isso ele sobrevoa o cenário com as asas do albatroz, uma ave que habita o oceano.
Na terceira parte do poema, de apenas uma estrofe, é registrado o impacto do eu lírico com as condições em que estavam submetidos. Nessa passagem a sensação de zoom é nítida quando ele solicita ao albatroz que desça até onde o olhar humano não vai. Ou seja, o poeta vasculha as partes mais recônditas do navio e sente o impacto descrito.
A narrativa é retomada, dessa vez descrevendo com uma língua crua, os porões do navio, as pessoas que o habitam e o quadro “de amarguras” que é encontrado. É a partir da quarta parte que emerge das linhas do poema o tom crítico e de protesto de Castro Alves. Percebe-se que o autor busca contrapor duas realidades: a dos marinheiros que se davam o luxo de desfrutar a beleza do mar, e a dos escravos que sofriam.
E é por meio de uma evocação aos céus que toda essa absurda violência e maus tratos são questionados pelo autor. Mais uma vez cenas fortes são descritas, como a da mistura da água com o sangue derramado. Nessa quinta parte é, também, comparada o modo de vida rudimentar e até certo ponto sofrido que viviam os negros capturados, com o ambiente a que foram conduzidos.
Porém, é na sexta parte que a voz política de Castro Alves surge, criticando o país por se submeter e permitir tal atrocidade. A ironia chega ao extremo quando versos da hino são apontados indiretamente, questionando as promessas feitas àqueles que moram e que chegam ao país. Por fim, assume uma postura radical afirmando que de nada adiantou o conflito pela independência se o país se permite tal postura.
As ideias e os versos do poeta são contundentes, emerge-se uma verdadeira voz à liberdade não só dos escravos, mas de todo o povo brasileiro que, por se permitir a prática da escravidão, continua, ainda, escravos dos mesmos povos que lhes conquistaram.