spoiler visualizarPaulo Sousa 28/02/2015
O livro das ilusões perdidas
CONCLUO A LEITURA DE OS MAIAS, depois de abandonar o clássico realista do escritor luso Eça de Queiros por duas vezes. Conheci o Eça há alguns anos, quando li outro livro seu, O primo Basílio. Se à época, ficara enlevado por aquelas páginas, muito mais agora, depois de não sei por que frustradamente abandonar Os Maias por duas vezes conseguir, enfim, percorrer os parágrafos descritivos da sociedade lisboeta do século XIX.
Mesmo que alguém nunca tenha lido o livro, certamente estará familiarizado com seu enredo, recentemente adaptado para uma minissérie televisiva. Conta, basicamente, a história do amor incestuoso entre os descendentes da terceira geração da família Maia, Carlos e Maria Eduarda. Os dois, irmãos consanguíneos, foram separados ainda bebê, quando a mãe, Maria Monforte, fugira com um italiano, abandonando o marido, Pedro da Maia e o filho Carlos.
Um enredo assim seria lugar-comum, não fosse o magistral talento queirosiano. Eça era um escritor refinado, seus textos são embargados de uma solar crítica ao clericalismo, à hipócrita burguesia lusitana – de quem era profundo conhecedor – que se gabava em ostentar falsos valores morais. E como era irônico, o Eça! Agora mesmo, me recordo com um começo de sorriso das peripécias de Teodorico Raposo, o caricato personagem de A Relíquia, outro Eça que li não faz nem um ano.
Mas é em Os Maias que concentro minha atenção. Sobretudo à parte final, quando Carlos, depois de alguns anos de exílio, retorna a Lisboa e, junto com seu amigo fiel Ega, erra pelas ruas lisboetas, numa tentativa pueril de ver uma Lisboa que não mais existe. Enquanto caminham contemplando as fachadas decaídas que testemunham a decadência de outros tempos, vão rememorando “aqueles” anos, quando sonharam fundar um jornal de vanguarda; depois publicarem a tão aclamada Memórias de um átomo do Ega e as impressões pessoais de Carlos no seu volume Medicina Antiga e Moderna; os intensos e ardorosos amores vividos pelos dois amigos e que, sem saberem por que, acabaram fadados à mera lembrança. “Falhamos a vida, menino”, conclui Ega…
As ilusões perdidas de Carlos e Ega. Gosto desta expressão. É terrivelmente sombria; mas incontestavelmente bela também. Como algo que causa dor ou mesmo, na melhor das hipóteses, um leve desconforto, pode, junto, trazer uma doce saudade, uma bestial necessidade de desenterrar essas lembranças? É o caso das ilusões perdidas. Todos as temos. Mas poucos os que decidem mantê-las vivas.
É o meu caso. Carrego comigo uma considerável bagagem de ilusões perdidas. São extratos de vários períodos de minha vida, alguns já resolvidos, outros ainda a cobrar o legado de equívocas escolhas. Em viagem recente, no reencontro com meu irmão Beto, parceiro de muitas delas, depois de um hiato de 17 anos, pusemo-nos a rememorar algumas de nossas ilusões perdidas. Era fim de tarde, estávamos sentados no banco da antiga estação ferroviária, como a esperar por um trem que sabíamos, nunca viria. Mas não as lembranças, aquelas perdidas. Elas sim nos levaram para outras épocas, quando eram outras nossas dúvidas, e tênues nossas certezas. “Vivemos muita coisa, concorda?”, ele me pergunta. “Sim”, concordo. Era verdade, muita coisa vimos e vivemos, e acabaram transformando-se num punhado de ilusões perdidas.
Então penso, só comigo, recordando as palavras de Ega: “Sim, não podemos negar, mas tivemos uma péssima estréia.”…