Coruja 01/06/2018Eça de Queiroz foi um dos indicados deste ano para as leituras do Clube do Livro de Bolso e, não fosse tal indicação, eu talvez tivesse passado a vida sem ler nada do português. Não porque tivesse algum particular preconceito contra Eça, mas porque tem tanta coisa na minha lista de leituras, que ele nunca me chamou suficiente atenção para se tornar prioridade. Assim é que devo um agradecimento especial a turma do clube por ter eleito esse título, porque essa leitura foi um verdadeiro deleite. E ainda encaixou num dos temas do Desafio Corujesco desse ano, o que me deixou feita na vida...
Não sei bem o que esperava quando comecei a ler Os Maias. Conhecia o enredo, claro, sabia como tudo terminaria. Tinha até mesmo uma vaga lembrança de ter assistido à série inspirada nessa história, produzida em 2001 - embora tenha sido sua trilha sonora o que mais me tocou à época. Acho que imaginei algo como Machado de Assis com sotaque do Saramago... mas logo decidi que Eça me fazia lembrar de Austen, inclusive pela escolha do discurso indireto livre.
Os Maias começa com uma tragédia, isso é bem certo: o romance entre Pedro da Maia e Maria Monforte, a traição da mulher, a fuga, o suicídio de Pedro… mas depois disso, por boa parte do romance, há personagens e situações ridículas, humor fino, ferino, que vai da situação política e social da época até os janotas que entram e saem da mansão do Ramalhete, lar dos Maia em Lisboa. É esse humor que me fez pensar tanto em Austen: o romance em ambos os autores é bem temperado pela crítica social que eles fazem. Ela tem finais felizes, ele, nem tanto, mas no correr da narrativa, é possível enxergar as semelhanças.
Três gerações da família Maia passam pelas páginas do livro. Primeiro, Afonso da Maia, o patriarca, correto, firme, que parte para o exílio de Portugal por suas convicções políticas e encontra na Inglaterra seu modelo de sociedade ideal. Depois, Pedro, que cresce sufocado pelos mimos da mãe, fraco, melancólico. Por fim, há Carlos Eduardo, o neto dileto, criado pelo avô após a fuga da mãe e a morte do pai, inteligente, idealista, forte e pronto para conquistar o mundo.
Carlos se forma médico, e chega a Lisboa com grandes planos: abrir um consultório para clinicar e um laboratório para fazer experiências, escrever um livro, tornar-se um cientista conhecido e respeitado. Contudo, não lhe chegam pacientes em seu luxuoso consultório; o laboratório é deixado de lado, o livro é muito prometido, mas nunca realmente começado. A fortuna da família permite que vá levando as coisas nessa toada, sustentando amigos e parasitas que voam em torno do Ramalhete, sem encontrar real propósito nas coisas. Carlos chega até a se envolver com uma mulher casada, mais por tédio que por real sentimento… até que a figura elegante de Maria Eduarda, ‘a brasileira’ faça-o virar a cabeça, nos sentidos literal e figurativo.
O sentimentalismo de Carlos da Maia contrasta com a moderação do avô, a vulgaridade de Dâmaso e a extravagância de João da Ega; sua paixão por Maria Eduarda (que só vem aparecer perto da metade do romance) caminha ao lado de seu caso com a Gouvarinho. A fortuna faz par com a dissipação; o gênio, com a indolência. Carlos e Ega, que se destacam pela capacidade intelectual, desperdiçam seus projetos, suas carreiras, correndo atrás de amores, de cavalos, da próxima aventura. Tudo isso usando como pano de fundo uma Lisboa em decadência, que passa da monarquia ao liberalismo e à desilusão política.
A prosa de Eça é repleta de detalhes, descrições que dão sabor e que nos carregam pelas mansões, ruas e alamedas em que a história se passa. Acompanhando Carlos, subimos e descemos o Chiado, seguimos a Sintra e Santa Olávia, adentramos alcovas em casarões e hotéis centenários. Desfrutamos dos muitos banquetes, doces, vinho a rodo. E, ao mesmo tempo, mergulhamos numa estrutura clássica de tragédia, nas casualidades que levam ao encontro de Carlos e Maria Eduarda; bem como da revelação de seu parentesco. Algo mais parece pairar sobre esses fatos, a mão do destino a manobrar tantas coincidências.
Deixando de lado o verniz romântico, a realidade é que Os Maias é uma poderosa crítica social, à cultura de aparências, à política, à dita alta sociedade. Discute-se literatura, debate-se o fim do romantismo e a ascensão do naturalismo; fala-se da dívida pública, da educação portuguesa, a falta de civilidade, do atraso social, da imitação ao que é estrangeiro, da falta de conteúdo que revelam os ditos intelectuais do país. Os amores, desilusões e fracassos dos Maia são também os de Portugal, incapaz de deixar os velhos hábitos, escondendo sob a pátina de bons modos sua degeneração moral.
Fiquei encantada com o livro, com a linguagem, com a maestria como Eça conduz seus personagens, com a ironia tão bem aplicada. Vou sair à cata de mais livros do autor...
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