Kelvin 25/08/2021
Um livro não indicado pra leitor jujuba
Neste livro, o escritor russo Leon Tolstói procura definir o que é arte. Em primeiro lugar, por que se preocupar em definir o que seja a arte é tão importante? São muitas as tentativas de definir o significado dessa palavra e muitos os que se debruçaram nessa empreitada. A arte, a principio, é uma das coisas que nos diferenciam dos animais, daí o primeiro motivo plausível para nos preocuparmos em defini-la. O selvagem se orienta pelo prazer que temos ao nos alimentar, enquanto o civilizado se interessa também pela investigação desse mesmo prazer. Mas o livro é uma caixinha de surpresas, especialmente para os pedantes. Tolstói vai nos brindar com críticas fulminantes a sumidades da literatura universal, como o poeta francês Charles Baudelaire, que defendia que um rosto pintado era mais aprazível que o natural e advogava pela primazia da Beleza sobre a Moral?. Arte sem função moral, para Tolstói, é pervertida; para fazer essa distinção, entendemos que o Bem envolve a busca pelo que é agradável, algo que, a depender da situação, pode contrariar o objetivo da busca pela Beleza?? que busca a satisfação dos sentidos. Por essas páginas, identificamos, durante a leitura, o mesmo estilo cru do niilismo de 1860 que consagrou seus romances. Dessa forma, é um livro gostoso de se ler, porque é como lidar com um soco no estômago a todo momento (e é porque estamos falando de um livro teórico).
No capítulo II, o autor nos apresenta a primeira crítica oficial à lei Rouanet (perdoem-me pela piadinha infame, não resisti) muito antes de ela existir, colocando os artistas como pessoas que desfrutam de uma existência luxuosa à custa do verdadeiro trabalho dos outros. O problema é que, para fazer arte, eles não fazem todo o trabalho sozinhos e ganham mais do que realmente entregam à sociedade. O problema desse artista padrão está em achar que existe algo de muito mais belo e sublime na atividade que exerce do que existiria na atividade de um padeiro, por exemplo. Mas esse tipo de pensamento só ocorrerá àquele que nunca deu uma passada nas páginas de ?Marco Aurélio?, livro de Renan, que fala sobre como a costura pode ser encarada como uma forma de arte.
"Não haveria problema se os próprios artistas fizessem todo o trabalho, mas não, eles precisam da ajuda de trabalhadores, não apenas para produzir arte, mas também para manter a própria existência? quase sempre luxuosa?, e conseguem isso de uma maneira ou de outra, sob forma de remuneração recebida de pessoas ricas ou de subsídios governamentais? que em nosso país, por exemplo, lhes são dados em milhões, para teatros, conservatórios, academias."
No capítulo V, Tolstói explica os pontos negativos em alguns autores (ele chega a mencionar algumas concepções célebres de Beleza, como a de Baumgarten, Schopenhauer, Kant, Darwim e muitos outros). Ele aponta que o erro da ideia fisiológico evolucionária (de Darwin), por exemplo é a sua incompletude, porque fala das origens da arte, não da sua essência, e pode facilmente se encaixar na arte como a ideia de fazer roupas e perfumes. Já a definição prática, que entende a arte como expressão das emoções, esquece que expressamos algo até desenhando um ponto, sem necessariamente contagiar as pessoas (algo que, no entender do autor, deve ser o verdadeiro objetivo da arte). Nesse sentido, ele usa o exemplo de um garoto que conta uma experiência falsa com um lobo e mesmo assim consegue provocar nas pessoas o sentimento de uma experiência verdadeira. Em suma, a arte envolve a capacieade de contagiar e trasmitir sentimentos às outras pessoas. É por isso que o autor também critica a concepção metafísica, que, por acreditar numa ideia misteriora de beleza, ignora que a arte na verdade é um meio para contagiar as outras pessoas e levá-las ao bem.
Mesmo sendo um meio para algo de caráter absoluto, a definição de boa arte historicamente variou de ponto de vista. Por exemplo, se a religião coloca a felicidade terrestre como o centro de tudo, a boa arte será aquela que expressa o gozo da vida. Os nacionalistas considerarão boa arte aquela que mostra a alegria do sacrifício pessoal pelo bem da nação. Os tradicionalistas, por sua vez, enaltecerão a arte que valoriza os antepassados. A concepção de arte como expressão da beleza, ressalta o escritor, é produto de uma elite que se depravou nos três quesitos mencionados (religião, nacionalismo e tradicionalismo). Em outras palavras: o prazer (a beleza) virou o centro de tudo. Essa ideia, que vemos nos gregos, já foi condenada por Platão. Os grandes pensadores - Sócrates, Platão e Aristóteles - não conseguiram desvincular a beleza do bem (da moral).
"Os principais pensadores? Sócrates, Platão, Aristóteles? intuíram que o bem pode não coincidir com a beleza. Sócrates subordinou a beleza ao bem; Platão, para unir as duas ideias, falava de uma beleza espiritual; Aristóteles exigia que a arte afetasse as pessoas moralmente (ka?aqa?i?). Mas mesmo esses pensadores não conseguiram renunciar inteiramente à noção de que a beleza e o bem coincidem."
Veremos, por conseguinte, que certas teorias vão surgir muito mais para justificar a posição das classes privilegiadas, como também se sucede com as teorias de Malthus e de Marx. Mas esse conceito grego de beleza, segundo Tolstói, está errado, porque o bem na maioria das vezes exige que renunciemos às nossas preferências, enquanto a beleza nos instiga a abraçar esse prazer. Preferimos nos deleitar na ilusão do que ter que engolir uma verdade dolorosa. É por isso que Tolstói acredita que se a massa tivesse acesso à flor da arte contemporânea não elevariam sua alma, mas a corromperiam. É uma arte só para os eleitos, dizem os românticos, ou para o super-homem, diz Nietzsche. A plebe ignara, na cabeça dessa gente, não tem condição de participar do "belo supremo". O problema é que uma arte tão depravada jamais seria o "belo supremo" (como idealizava Platão). Foi esse afastamento da alta classe de uma consciência religiosa nos levou a uma arte pobre de conteúdo. A tríade de sentimentos que forma a arte das classes ricas é: orgulho, desejo sexual, tédio. Por isso, a concupiscência e o adultério se tornaram temas "sérios" retratados por esse tipo de arte, forjada por gente que sofre de mania erótica.
"O adultério não é só o tema favorito, mas o único de todos os romances. Uma performance não é uma performance, a menos que mulheres despidas na parte de cima ou na de baixo apareçam nela, sob algum pretexto. Baladas, canções? todas expressam a concupiscência, em vários níveis de poetização."
A ideia de profissionalismo dentro da arte também não é muito bem vista pelo autor. A arte profissional inclui a crítica, que para ele são "os burros que discutem os inteligentes", o artista talentoso que começa a dar ouvidos à crítica, nesse sentido, acaba se tornando ruim e perdendo seu talento porque viciou sua imaginação às regras dos críticos. Dessa forma, nem a ópera de Wagner escapa ao raio-x do escritor russo, que é criticada por tentar alinhar a música à poesia sem alcançar a sincronia ideal, tornando-se artificial. Mais à frente, ao meter o pau em apresentações malucas que a classe pseudo-intelectual venerava, de repente me lembrei desses espetáculos progressistas, como a peça "Macaquinhos", o caso do "Queer museu" ou mesmo o filme "Bacurau". Tolstói diz que, de tanto consumirmos esse tipo de arte acreditando que é boa, traindo até mesmo o nosso próprio juízo apenas para satisfazer a rodinha de amigos, acabamos por admirar o absurdo sem nos darmos conta disso. É o que acontece no conto "A roupa nova do ?rei", em que ninguém queria dar o braço torcer e admitir que "o rei está nu".
Mas em que realmente consiste a boa arte? Nos enganamos quando somos tomados pela arte extravagante e imaginamos estar diante de uma grande obra de arte. O escritor Arnold Bennet já comenta algo mais ou menos nesse sentido em seu livro "Gosto literário: como formar", a verdadeira arte requer certa modéstia, ela não causa aquele sentimento efusivo logo de cara, mas uma inquietação que, apesar de ser pouco perceptível, é permanente e duradoura. A arte extravagante nos leva a confirmar nossos sentimentos baixos e tendemos a pensar que é grande coisa porque estamos em nossa zona de conforto. É por isso que a época religiosa é condenada entre a classe falante, pois essa classe se perverteu de tal forma que passou a considerar os antigos heróis da arte (Odisseu, Jacó, etc.) como anátemas, ao passo que o ideal cristão, que exalta a humildade e a castidade, condições para satisfação de universalidade, é muito superior à arte moderna, que foi perdendo essa universalidade com o tempo. Para exemplificar um tipo de obra moderna que levou a arte a essa decadência, Tolstói cita uma pessoa que jamais imaginaríamos que seria criticada por um grande autor da literatura: Beethoven. O escritor russo tece duras críticas ao músico e, mais do que isso, chega a dizer que as pessoas "aprenderam" a gostar de Beethoven e se acostumaram à "excitabilidade nervosa" que a música dele causa.
?Como, a Nona Sinfonia pertence à categoria de arte ruim?!?, ouço vozes indignadas exclamando. ?Sem nenhuma dúvida?, respondo. Tudo o que escrevi foi somente para encontrar um critério claro e razoável pelo qual julgar os méritos de obras de arte. E esse critério, que coincide com o simples e com o bom senso, mostra-me inquestionavelmente que a sinfonia de Beethoven não é uma boa obra. É claro que para pessoas educadas na adulação a certas obras e seus autores, para pessoas cujo gosto é pervertido precisamente porque foram criadas nessa adulação, reconhecer uma obra tão famosa como má é espantoso e estranho."
Mas não é só ao ver a opinião do autor sobre Bethooven que ficamos surpreendidos. Ele também chega a criticar a instrução formal e a ideia de que crianças dominando gramática e tocando consertos em tenra idade seja algo agradável de se ver. Nesse momento, chego a me lembrar das passagens de "Anna Kariênina" em que Levine, personagem alterego do autor, expressa opiniões similares sobre a educação, deixando seus interlocutores chocados. Na ideia do russo, o maior problema não é a falta de escolas, mas a superstição, as crenças enganosas e inúteis, algo que afeta até mesmo a classe letrada; esta é uma ideia que ja vimos Tolstói expressar no personagem Levine.
Nos dois últimos capítulos o autor se mostra esperançoso. Apesar de ter demonstrado no livro inteiro o retrato da decadência da arte, profetiza que haverá uma arte autêntica no futuro, que não será prolixa e cheia de enfeites, mas clara, simples e ao mesmo tempo profunda. A arte do futuro também deverá se despojar de quaisquer preocupações mercenárias e entender a segurança material assegurada aos artistas como algo prejudicial. Ao traçar esse panorama esperançoso, ele também chega a vislumbrar, a respeito da ciência, uma evolução humanitária, a ciência com função moralizante e preventiva, e não necessariamente focada em "grandes descobertas". Tolstói critica a ciência da época por querer investigar seres tão irrisórios como os micróbios e ao mesmo tempo ignorar um problema sério como a pobreza. A ciência do futuro, dessa forma, será uma ponte entre a arte do futuro e o Reino de Deus, que naruralmente é o Reino do Amor.
"O propósito da arte de nossa época consiste em transferir do campo da razão para o do sentimento a verdade de que o bem-estar das pessoas reside na união e em estabelecer, em lugar da violência que hoje impera, o Reino de Deus? isto é, de amor?, que todos consideramos o mais alto objetivo da vida humana."