Renato 05/03/2018
A genialidade da inveja
Escrever um grande livro, uma obra prima é um feito de gênio, de um grande escritor. Escrever duas é um feito para poucos. Não há descrição ou nome para esta qualidade.
Quando você termina de ler ‘Extinção’, de Thomas Bernhard e acha que a grandiosidade de sua forma literária está esgotada, então você lê ‘O naufrágo’ e percebe que levou um grande soco na face de suas crenças. O mesmo estilo, a mesma forma, mas tem algo novo e igualmente genial em suas mãos.
Ambos os livros são políticos, fortes, carregados de um niilismo suicida e um auto-ódio, voltado principalmente contra o provincianismo cristão racista da Áustria, na concepção de Bernhard. Humor corrosivo, mau humor misturados nos mesmos parágrafos longos, num fluxo de ideias que gira elipticamente num crescendo cada vez mais denso. As ideias que vão se sucedendo surpreendentemente sem repetição, num sentido perfeitamente natural. Os livros de Bernahrd são de uma leitura densa, salpicada de reflexões e discussões significativas, que não permitem perda de foco. Muito Schopenhauer, Nietzsche entre outros. No caso de 'O náufrago', o livro inteiro se desenrola em um único parágrafo.
Estilisticamente os livros são próximos. Mas em termos de abordagem e discussão, espalham-se em direções distintas. Discutem inúmeros temas, mas cada um toma um sentido principal particular. Se em 'Extinção' o peso da memória e a negação da família e da origem cultural dominam, em 'O naufrago’ Bernhard visita o espaço da arte, da formação e da amizade. E principalmente da inveja. Trata-se da história ficcional do pianista Glenn Gould e dois de seus amigos e colegas de estudo de piano. O autor, anônimo, e um certo Wertheimer. Nas 234 páginas, o narrador descreve seus anos de estudo, de sucesso e fracasso (The loser = O náufrago) e enfim a morte como o resultado da construção de uma vida. Seu foco principal é a morte dos dois amigos, a de Glenn Gould, por causas naturais, e a de Wertheimer, num suicídio absolutamente significativo. Tanto na situação, na frente da casa da irmã, como no seu significado na relação com Glenn Gould.
Em 'O Náufrago' Bernhard confronta o destino desses três amigos continuamente. Na comparação entre os três, mais intensamente entre Gould, cheio de sucesso e Wertheimer, fracassado, misturam-se admiração, carinho e amizade. Até porque Glenn Gould desde os momentos mais intuitivos da formação musical era superior a todos, inclusive ao seu mestre, Horowitz. Todos os personagens estão repletos de infortúnios e deslocamentos, sem nenhuma margem para a felicidade.
A relação entre os três amigos é rica, mesmo que pareça impessoal na verborreia de Bernhard. A inveja talvez seja o tema central desta obra. Não a inveja como uma competição divertida e interessante, ou, por outro lado, como um conflito gerador de violência (e da admiração do leitor, por consequência). Na complexidade da inveja, um dos sentimentos mais estranhos e fundadores da sociedade, Wertheimer, assunto principal do livro, se nutre da sua inveja. Não se trata de torná-lo mau e pecador devido à inveja, afinal ela não pode ser pecado porque ela está na essência dos principais relacionamentos. Inveja-se o irmão, o filho, o sucesso alheio, a postagem maravilhosa e popular no Facebook. A inveja é o olhar do outro que nutre o movimento do indivíduo, é o ódio mas também é o amor. É Freud e é Bourdieu. A inveja é a construção da identidade. A inveja é o outro. Por isto que o grande enigma do livro é a razão do suicídio de Wertheimer. Por que teria se matado logo depois da morte de Gould. Na verdade, a mesma inveja que tornava Wertheimer infeliz era aquela que o mantinha vivo. A extinção de seu invejado é também seu fim. Qual seria então o sentido da sua vida após a extinção de seu outro. Em 'O Náufrago', a inveja é uma forma de amor.
Apesar do sucesso, Gould vive em isolamento e exercendo sua arte distante do público. Foi ele quem morreu de causas naturais, mesmo tendo se matado para as pessoas em nome de seu ego, sua arte. Já Wertheimer se matou (no momento errado, segundo Bernhard). Um suicida que justifica seu ato não pela solidão, mas pelo excesso de preocupação com o outro. Com a atenção daqueles que estão ao seu lado. Pode parecer um chavão, mas Gould não se importava, era autêntico, parecia desgarrado do olhar do outro, daí seu crescimento. Já Wertheimer, austríaco em todas as suas características, se inseria, se importava com o olhar alheio, gerando expectativa e infelicidade.
Mas Bernhard não gosta de navegar em águas rasas. A genialidade do artista, para Bernhard, não está num dom ou numa abstração que transformam homens em mitos, numa atitude de desprendimento e solidão frequentemente mitificados. A genialidade nasce de num parto muito mais doloroso. Está no abandono de sua identidade em detrimento da incorporacao da arte. No abandono da sociedade que no fundo despreza e valoriza. Mesmo que, aparentemente solitário, na verdade permaneça sentado enquanto artista numa jaula ou redoma, admirado sem perceber que está sendo percebido, dizendo não ao olhar do outro. Em outras palavras, sem se importar com a hipcrisia de prêmios, títulos e posições de aparente importância, outro tema recorrente na obra de Bernhard. Ele desprezava o meio intelectual e sua imortalidade nominada por decreto.
"As pessoas de caráter fraco resultam sempre em artistas também fracos, disse a mim mesmo; Wertheimer constitui uma confirmação inequívoca disso, pensei. Sua natureza era completamente oposta à de Glenn, pensei; Wertheimer tinha um conceito de arte, Glenn não precisava de conceito nenhum. Enquanto Wertheimer fazia perguntas constantes, Glenn não perguntava nada, nunca o ouvi formulando uma pergunta, pensei. Wertheimer sempre teve medo de ir além do limite de suas próprias forças, Glenn nunca chegou sequer a pensar que pudesse algum dia ultrapassar o limite das suas; Wertheimer, aliás, desculpava-se a todo momento, e por coisas que não eram motivo para seu pedido de desculpas, enquanto Glenn desconhecia por completo esse conceito; Glenn jamais se desculpou, embora tivesse constantemente motivo para tanto. Wertheimer sempre se importou com o que as pessoas pensavam dele; Glenn não dava o menor valor a isso , como de resto eu também não; assim como Glenn, sempre fui indiferente àquilo que o chamado mundo ao redor pensa de mim. Wertheimer se punha a falar quando não tinha nada a dizer, apenas porque o silêncio tinha se tornado perigoso para ele."
Bernhard não está dizendo que a arte tem que estar dissociada da realidade, que é uma entidade metafísica que carrega uma verdade além da falsidade dos valores mundanos. Esta é uma ilusão mundana, a transcendência de valores, a irracionalidade quase mística que é tudo aquilo que a arte não é. Mesmo que queira ser. Bernhard nos conduz para a alma do artista que se deixa tomar pela mediocridade dos valores mais irrisórios, a falsidade das aparência do mundo burguês da cultura alta e da vaidade que se basta em si mesma, ainda que falando pelos outros e aparentemente para os outros. A arte como construção de uma imagem, a dependência da aprovação da arte é o fim da arte em si mesma. A arte é tão pequena quanto a vida.
Outro tema comum em Bernhard, que une de certa forma 'Extinção' e 'O náufrago' é o desconforto com sua identidade, uma extensão da discussão anterior. O niilismo e o poder crítico de Bernard neste ponto se eleva e se torna difícil de ser digerido. Em 'Extinção' ele aborda a dificuldade em se aceitar sua origem, quando se enxerga nela uma raiz de deterioração. Assim ele revela seu ódio pela Áustria, a mentalidade preconceituosa e tacanha da nação, uma cultura baseada num cristianismo da separação, da superioridade e de desprezo violento pelo outro. O personagem de Bernhard se tortura remoendo os horrores de sua família, carregada de imposições e de violência por vezes velada, outras vezes explícita. Ele propõe desde as primeiras linhas a extinção de sua própria linhagem.
Em 'O náufrago' o tema da dificuldade com sua própria identidade é retomado. Mas outra identidade, a do intelectual, a do artista, do homem que tem uma boa fé racional que quer mudar o mundo. Nem com esta bem intencionada esperança Bernhard nos deixa. Ele questiona não a ação da intelectualidade, o valor do ato, mas o quanto a vontade de transformação nos redime e nos transforma em outro. Como se o artista e o intelectual ao fazer o bem deixasse de serem burgueses, mesquinhos e pequenos. Este intelectual quer transformar sua identidade através de atos. Sua ação é baseada numa vontade bem intencionada que nasce, muitas vezes, de uma culpa, de um desprezo pela própria origem e identidade. Bernhard não é nada conservador e muito menos critica qualquer ação canhota. Ao contrario, em outros livros, como em 'Meus prêmios', ele mostra que seu alvo não é criticar a vontade de transformação da sociedade, mas a hipocrisia da intelectualidade que mais se importa com o reconhecimento de seus atos do que com os atos em si. Prêmios, celebrações e fama. O foco de Bernhard em 'O náufrago' não é posicionar-se de forma certeira num local específico dentro da gama de posições politicas, mas expressar o vazio do individuo que a política não substitui. Ele só afirma que uma identidade ou uma atitude de empatia com o menos favorecido não é suficiente para transformar um indivíduo e movê-lo para aquilo que ele não é. A identidade está arraigada em todo desconforto só é resolvida com a morte, no momento em que a origem enfim pode ser apagada.
"Ele (Wertheimer), cuja casa ostentava um dos melhores endereços do centro da cidade, gostava de caminhar rumo a Floridsdorf, ao bairro dos trabalhadores, que ganhou fama por sua fábrica de locomotivas, rumo a Kagran. Kaisermühlen, onde moram os pobres mais pobres, ao assim chamado Alsegrund ou rumo a Ottakring, com certeza uma perversidade, pensei. Saindo pela porta dos fundos, vestido com roupas velhas, fantasiado de proletário, para não chamar atenção em suas expedições de reconhecimento, pensei. Postado horas sobre a ponte de Floridsdorf, ele ficava observando os transeuntes, olhando a água marrom do Danúbio, arruinada havia tempos pelos produtos químicos, onde cargueiros russos e iuguslavos navegavam rumo ao Mar Negro. Pensava então com frequência se sua grande infelicidade não tinha sido ter nascido numa família rica, pensei, pois dizia sempre que se sentia melhor em Floridsdorf e Kagran do que no primeiro distrito, que se sentia melhor entre as pessoas que moravam em Floridsdorf e em Kagran do que entre aquelas do primeiro distrito, as quais no fundo sempre odiara. Frequentava restaurantes na Praguerstrasse e na Brünnerstrasse, pedia cerveja e salsicha ao vinagrete e ficava horas sentado ali, ouvindo as pessoas, observando-as, até que o ar lhe faltava, por assim dizer e ele precisava sair, voltar para casa, naturalmente a pé, pensei. Por outro lado, vivia também sempre dizendo que era um equívoco acreditar que ele seria mais feliz se tivesse nascido em Floridsdorf, Kagran ou Alsergrund, pensei; que era um erro supor que aquelas pessoas tivessem ao menos um caráter superior às do primeiro distrito. Examinando-se melhor, disse, também os chamados desfavorecidos, os chamados pobres, os que ficaram para trás, revelaram a mesma falta de caráter, eram tão repugnantes e repulsivos quanto os outros, aqueles de cujo meio fazíamos parte e que só julgávamos repugnantes por este motivo. As camadas inferiores são tão perigosas para todos como as superiores, disse, agem com a mesma crueldade, devem ser evitadas tanto quanto as outras; são diferentes mas igualmente cruéis, ele disse, pensei.O assim chamado intelectual odeia seu intelectualismo e acredita que vai encontrar sua salvação entre os assim chamados pobres e desfavorecidos, que antes eram os chamados oprimidos e injuriados, ele disse; em vez de sua salvação, porém, o que ele encontra é a mesma crueldade, disse, pensei. Depois de ter ido umas vinte, trinta vezes a Floridsdorf e a Kagran, dizia Wertheimer com frequência, percebi o erro e passei a ir ao Bristol e a me concentrar naqueles iguais a mim. Vivemos tentando escapar de nós mesmos, mas fracassamos sempre nessa tentativa, quebramos a cara, porque nos recusamos a compreender que não podemos escapar de nós mesmos, a não ser por meio da morte."
Não adianta, não conseguimos fugir de nós mesmos. Mesmo quando nos consideramos inferiores e que os outros nos redimirão. Nossa identidade sempre será uma dor pois não conseguiremos ser os outros, ser como os outros, incorporar o que é dos outros. Viveremos através dos outros, mas nunca os possuiremos. Daí a irredutibilidade do nosso vazio. O peso que Bernhard nos escancara.
Obviamente Bernhard não termina por ai. Angustiante e desconfortável, pode ser considerado um dos maiores gênios da literatura do século XX, ainda que sua discussão não possa aliviar as angústias de nenhum leitor.
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