Lauraa Machado 02/10/2018
Pode ser brilhante ou ridículo, depende de você
Eu não costumo ter dificuldade de decidir a nota que vou dar a algum livro. Quando fico indecisa, normalmente é sobre aumentar ou diminuir 0,5 estrela só. São raríssimos os livros como Shadowsong, em que suas mesmas partes parecem merecer duas e cinco estrelas ao mesmo tempo. As mesmas frases, reviravoltas e epífanes aqui podem ser vistas tanto como brilhantes quanto como ridículas. É bastante estranho ler um livro tão excepcional e absurdo quanto esse.
Se Shadowsong é bom ou não depende de você, por mais do que o normal que acontece com todos os livros, em um sentido que vai além de gosto próprio. Depende do quanto você está aberto à loucura dos personagens e à magia dos goblins, do quanto você está disposto a abrir mão das regras comuns da razão que a maioria dos livros tende a seguir. Amores intensos e desesperados sempre parecem ridículos a quem não os sente. Se você se entregar ao universo desse livro e às emoções e sensações dele, sua leitura será maravilhosa, daquelas que mudam a vida, que te tocam em lugares e níveis que você nem achou serem possíveis.
Mas, se começar a ler cético e apreensivo, vai achar tudo exagerado, inútil e redundante. Vai achar o desespero e a intensidade da protagonista ridículos, sua contradição irracional e toda a questão mágica absurdas. Esse livro consegue ser bem ruim se você não estiver disposto a se entregar de vez às suas leis e sua lógica. E, infelizmente, você estará perdendo um mundo riquíssimo e mágico em todos os sentidos.
Como o primeiro de sua duologia, Shadowsong consegue ser lírico e complexo ao extremo, como estar dentro da cabeça de uma pessoa real, que em tudo se prova parte da época em que vive (final do século dezoito) e alguém que conhece e vive mais do que o mundo "real". As provas de que a autora realmente entende o universo e as crenças da época da Liesl me deixaram sempre impressionada. Sem entender essa base de sua personalidade, muita coisa vai parecer insignificante ou deslocada. Mas, quando você se lembra da mentalidade da época, percebe como as características dela se encaixam e crescem em significado. Tudo fica ainda mais rico quanto você percebe que o encaixe com o mundo dos goblins parece mais natural do que o mundo sem ele. É realmente surpreendente o quanto a autora entende todo o universo em que se baseou e no qual criou o resto da sua história.
Além do próprio leitor, a autora também se mostrou disposta aqui a explorar sem limites toda sua racionalidade ou irracionalidade e a cabeça da protagonista. Essa é uma história muito corajosa e complexa, que lida com a sanidade da Liesl e do Josef mais até do que com a magia. E o final foi o que realmente fechou tudo com chave de ouro. É estranho, mas parece até que foi ele que deu a base para o começo. No meio da narração da Liesl, tem também a história do rei Goblin, de quem ele era como humano, e todos esses capítulos são mágicos como contos de fadas. Além deles, tem também aqueles pelo ponto de vista do Josef. Fica completamente claro como a narração da Liesl é introspectiva quando a autora muda para uma na terceira pessoa. Ficam claros também o talento e a competência da S. Jae-Jones para escrever sem medo do que cria e de como sua criação se desenvolve sozinha.
Em questão de acontecimentos, a história tem poucos, mas ainda é bastante fácil de ler, porque ficar dentro da cabeça de um personagem sempre me faz ler como se eu pensasse no lugar deles. O clímax aqui é um pouco menos intenso que o do livro anterior, mas a reviravolta do final, ainda que tenha sido previsível, só foi porque fez sentido perfeitamente. E a poética da narração deixou tudo mais bonito e ressonante.
Já falei para o primeiro livro, mas esse merece também. Essa história é o mais perto de magia que eu já encontrei. Mas depende do próprio leitor se entregar para enxergá-la.